quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A incrível Brigada Revolucionária Plunct Plact Zum!, a que carimbava, rotulava, avaliava e não deixava ir a lugar nenhum


– Não permitimos vacilo quanto à firmeza dos nossos princípios políticos! Nem de nossa fundamentação revolucionária! Nem mesmo sob as piores situações de pressão, adversidades, tortura, nem mesmo perante acirrada artilharia!
Essa era a base de tudo quando, em um dos recônditos rincões do 3º mundo, surgiu, como fruto da síntese de múltiplas circunstâncias, a Brigada Revolucionária Plunct Plact Zum! (BRPPZ!). Nasceu inspirada numa muito peculiar concepção raulseixista-leninista de mundo, mais especificamente na canção que expressava o seu modus operandi político e sua razão existencial de viver: registrar, carimbar, avaliar e rotular qualquer um que quisesse fazer a revolução e explodir pelos ares as estruturas caducas reinantes na sociedade capitalista. Somente com o aval e a bênção dos brilhantes estrategistas da BRPPZ! o intrépido aspirante ao combate contra a ordem vigente podia partir para… Zuuum!, o campo de batalha das classes. Antes disso, nunca.
– Apenas admitimos uma marcha firme e linear em direção ao alvo! Nenhum ziguezaguear! Nenhum recuo! Nem tático, nem estratégico! Nem mesmo por enfraquecimento ou golpe mortal que se tenha levado no peito! Nenhuma escorregada, camaradas, nenhum descuido! Em frente! Em frente! Em frente! Nós somos a Brigada Revolucionária Plunct Plact Zum! – dizia Edgar Borin, sub-chefe da 13ª seção e correspondente internacional da facção francesa da organização (aspirante à IV Internacional).
Era deveras curioso, para o observador atento, constatar as suas passadas largas em direção à revolução. O que dominava, entre os membros da BRPPZ!, era a mais completa e absoluta seriedade. Eram sérios em praticamente tudo: na rua, nas aglomerações estudantis, nos protestos, nos acontecimentos públicos e, principalmente, nas redes sociais – estas, seus locais preferidos de combate.
– A seriedade é o nosso mantra e nosso método, nosso alfa e nosso ômega. Se Karl Marx quisesse que os revolucionários fossem elétricos e espevitados, teria escrito um tratado sobre o riso. Aliás, não há nenhum relato, salvo engano de nossa parte, de que Marx tivesse dado uma risada alguma vez na vida! – assegurou Michel Maffesolips Moreno, jornalista e porta-voz da Brigada. 

Um dos líderes da organização, o militante Armando Badanha, foi entrevistado certa vez e asseverou:
- Pois é, é assim que a coisa funciona: se não pudermos construir, vamos destruir; se não pudermos juntar, vamos dispersar; se não pudermos agregar, vamos desagregar; se não pudermos fundir, vamos quebrar; se não pudermos organizar, vamos desorganizar; se não pudermos somar, vamos dividir; e se a coisa toda estiver andando sem o nosso carimbo de aprovação e sem que nós estejamos na cabeça do movimento, a gente chuta o pau da barraca e manda todo mundo à merda. – disse ele, explicando alguns dos princípios fundamentais da organização.
– A gente já sabe de antemão quando tudo vai dar errado… é porque, quando a gente quer, a gente faz dar errado, sabe? Hehehehehehe – disse Marieta Zambetta, chefe do serviço secreto da Brigada, rindo e esfregando alegremente as mãos.
Donos de teorias altamente sofisticadas, solidamente constituídas, amplamente fundamentadas, irretorquivelmente desenvolvidas e perfeitamente adaptadas às suas formidáveis carrancas, não havia um dos seus membros que não soubesse como chegar à revolução. Pelo contrário: todos – absolutamente todos! – sabiam.
Diretórios e centros acadêmicos, moradias estudantis, instituições públicas e privadas, escolas, universidades, parlamentos, conselhos tutelares, secretarias de assistência jurídica, juizados de pequenas causas, círculos de auto-ajuda, serviços de atendimento psicológico, grupos de oração e até mesmo centros espíritas eram considerados espaços de disputa, visto que em todos eles se podia plantar a sementinha vermelha da revolução.
A consciência da regulamentação ideal e da forma progressista para toda política do governo também era uma das suas características principais. Políticas públicas, aliás, eram suas especialidades. Adoravam discutir tais temas em qualquer local que se apresentasse disponível. A Brigada, nesse domínio, teve a felicidade de ser conduzida, durante muito tempo, por um líder infalível, Roberto Lero, cujas ideias era necessário propagandear sempre, principalmente no que concernia aos novos giros históricos e à filiação em massa de novos membros para a organização. Essas filiações eram muito úteis, pois garantiam vantagem ao posicionamento político do líder quando em votações de plenárias, assembleias e congressos.
– O novo giro histórico exige filiações em massa! – afirmou Lero, em entrevista televisiva. Abaixo a corrupção! – completou, em seguida, enérgico, sendo secundado em coro por meia-dúzia de fiéis correligionários: Abaixo a corrupção!
Seus cursos de formação política eram altamente sofisticados e reconhecidos internacionalmente: Módulo 1 (iniciante, para movimento estudantil): como falar grosso e inibir adversários em público; Módulo 2 (complementar): retórica avançada; Módulo 3 (intermediário): como quebrar militantes de outras organizações; Módulo 4 (nível pro): boatarias, infâmias, tramoias, fofocas, enrolações e intrigas; Módulo 5 (optativo, sem pré-requisito): introdução às redes sociais. Completando esses módulos, o militante se tornava apto a integrar as fileiras de frente, isto é, a vanguarda da BRPPZ!
O triste fim da Brigada Revolucionária Plunct Plact Zum! se deu quando, em determinada ocasião, seus já combalidos membros se reuniram em plenária para discutir e decidir qual o método mais apropriado para quebrar militantes de organizações alheias. Depois de se reunirem por 148 dias seguidos, dormindo mal, comendo pouco e fumando muito, o pequeno amontoado de vinte e cinco militantes acabou por rachar em onze reduzidos grupos, todos com opiniões divergentes sobre todos os assuntos tratados, e, por tal razão, nunca conseguiram descobrir, na realidade, qual seria o método correto de neutralizar, neurotizar e alijar da luta política militantes de organizações concorrentes. Esta foi a história da Brigada Revolucionária Plunct Plact Zum!, aquela que registrava, carimbava, avaliava e não deixava ninguém ir a lugar nenhum.

A escrita como arma revolucionária


O livro O estilo literário de Marx, do venezuelano Ludovico Silva (São Paulo: Expressão Popular, 2012), traz uma série de análises importantes para o conhecimento de elementos até hoje pouco explorados a respeito do autor de O Capital. O traço marcante do estudo está no fato de que Silva toma Marx não apenas como teórico, mas como escritor, isto é, como sujeito que imprime qualidades literárias - artísticas, estéticas - no material escrito que produz, seja ele de caráter filosófico, político ou científico-social.


Em Marx, a palavra escrita não serve apenas para apresentar conceitos, mas, também, fundamentalmente, para provocar efeitos sobre a sensibilidade daqueles que recebem suas mensagens: quer causar espanto, estranheza, comoção, cólera, revolta, excitação. Numa palavra: quer mobilizar e canalizar as energias sensíveis da coletividade oprimida para o projeto da transformação revolucionária do mundo. É por esse motivo que, segundo Silva, o sistema científico do pensador alemão está apoiado, de forma consciente, sobre um rigoroso e muito refinado sistema expressivo.

altTal sistema toma corpo através de um peculiar e inconfundível estilo literário. Silva explica o que isso quer dizer: “Literário porque, assim como a poesia abarca um espaço que vai mais além dos versos e se estende na prática a muitos tipos de linguagem, do mesmo modo a literatura, como tal, como conceito e como prática, ultrapassa as obras de ficção ou imagética e se estende por todo o largo campo da escritura. Ademais, o sistema expressivo de Marx constitui um estilo, um gênio expressivo peculiar, intransferível, com seus módulos verbais característicos, suas constantes analógicas e metafóricas, seu vocabulário, sua economia e seu ritmo prosódico. Um gênio posto intencionalmente a serviço de uma vontade de expressão que não se contenta com a boa consciência de utilizar os termos cientificamente corretos, mas que a acompanha com a consciência literária empenhada em que o correto seja, ainda, expressivo e harmônico, e disposta a conseguir, mediante todos os recursos da linguagem, que a construção lógica da ciência seja, também, a arquitetônica da ciência” (p. 11).

Para corroborar essa tese, Silva sublinha um elemento da formação intelectual de Marx comumente esquecido por muitos de seus seguidores: sua origem no campo das letras. Antes de se tornar experimentado teórico da sociedade capitalista, o pensador alemão dedicou-se de corpo e alma à literatura: estudou línguas clássicas, pesquisou temas estéticos, realizou traduções, escreveu poemas, epigramas, narrativas e até as primeiras cenas de um drama em verso. Não realizou grandes façanhas nesses domínios, é certo, mas soube converter seus fracassos em fonte de criatividade e de vigor expressivo.

O estudo das línguas mortas, o latim e o grego, por exemplo, serviu para dar-lhe uma profunda consciência da essência de alguns dos idiomas vivos pelos quais se expressava: sua constituição íntima, suas possibilidades criadoras, seus recursos composicionais etc. Também foi importante para despertar no filósofo o gosto pela perfeição expressiva na forma escrita, pela “impetuosidade das frases”, como afirma Silva.

A poesia, por sua vez, ajudou-lhe a aprimorar sua prosa, visto que o exercício do verso “obriga ao aprofundamento nas qualidades plásticas e rítmicas do próprio idioma, na prosódia mesma” (p. 29). Nesse contexto, é interessante lembrar a afirmação feita pelo linguista e crítico russo Mikhail Bakhtin de que “é só na poesia que a língua revela todas as suas possibilidades. Ali as exigências que lhe são feitas são as maiores. Todos os seus aspectos são intensificados ao extremo, alcançam seus limites. É como se a poesia espremesse todos os sucos da língua que aqui se supera a si mesma” (1). Se levarmos em consideração esse fato, teremos uma boa ideia do que os exercícios literários foram capazes de proporcionar ao estilo de composição textual de Marx.

É dessa formação intelectual sui generis que vêm os elementos característicos de sua prosa, que Silva, em seu livro, se dedica a enumerar: a arquitetônica da ciência, a dialética da expressão, a grande criatividade metafórica, os espíritos concreto, polêmico irônico de seus escritos, tão necessários para a denúncia e o combate da realidade alienada e alienante do sistema do capital. Daí os peculiaríssimos efeitos que o estilo literário de Marx causa na sensibilidade de seus leitores: a sensação do sangue fervendo nas veias ao se ler as inflamadas páginas do Manifesto Comunista, a impressão do estranhamento que se desprende das memoráveis passagens dos Manuscritos econômico-filosóficos, a indignação e a revolta que brotam das magníficas sentenças que perpassam todo o sistema categorial de O Capital são alguns exemplos do poder evocativo dessa prosa vigorosa e inspirada.

O resultado disso, certamente, é prenhe de consequências políticas. Porque a qualidade estética de um texto, o elemento artístico intrínseco a ele, ao tocar o leitor, provoca uma espécie de curto-circuito em suas vias perceptivas, subverte momentaneamente sua forma ordinária de experimentar o mundo e traz à luz novas maneiras de apreender o real que podem servir de combustível e faísca para futuras ações transformadoras.

A arte, justamente, amplia para o sujeito a capacidade de sentir coisas novas. Sobre isso, escreveu o filósofo brasileiro Leandro Konder: “se não ampliamos o campo daquilo que sentimos (ou que podemos sentir), nossa capacidade intelectual fica prejudicada, nossa racionalidade se deforma. Ou o sensível e o racional se apoiam mutuamente ou ambos sofrem prejuízos” (2). Ou seja, tanto quanto o pensamento, a sensibilidade coletiva deve ser tocada se se quer auxiliar as lutas dos trabalhadores pela emancipação humana.

Marx sabia disso. Tanto que seus livros não visam apenas transmitir o conhecimento resultante de suas incansáveis pesquisas. Querem, também, transformar algo muito sutil existente no interior de seu público leitor: a apatia em tensão crítica, a resignação em ímpeto fervilhante, a passividade em vontade de movimento. Por certo, esta é uma tarefa tão importante quanto a veiculação de conceitos úteis para o combate e a superação da sociedade do capital.

Aqui vale lembrar o psicólogo soviético L. S. Vigotski, que acreditava que a arte exerce uma influência especial sobre a vontade e as paixões. Não para mobilizá-las, de pronto, para a ação, mas para produzir um estado de espírito que tenda para a ação futura. A reação artística é, desse modo, algo predominantemente adiado, “porque entre a sua execução e o seu efeito sempre existe um intervalo demorado”. Conforme assinala o célebre autor: “a arte introduz a ação da paixão, rompe o equilíbrio interno, modifica a vontade em um sentido novo, formula para a mente e revive para o sentimento aquelas emoções, paixões e vícios que sem ela teriam permanecido em estado indefinido e imóvel. (...) A arte é antes uma organização do nosso comportamento visando ao futuro, uma orientação para o futuro, uma exigência que talvez nunca venha a concretizar-se, mas que nos leva a aspirar acima da nossa vida o que está por trás dela” (3).

O elemento estético pertencente a uma determinada elaboração textual ajuda, assim, o leitor a desidentificar-se com o seu mundo ordinário e a identificar-se com algo até então insólito. Abre para ele a possibilidade de se descentrar de sua individualidade e se sentir parte do gênero humano. A criatura solitária, acabrunhada, tímida e hesitante pode ser levada a sentir o que os gigantes são capazes de sentir. Desnecessário dizer o quanto isso tudo é fundamental para um projeto político alternativo de regulação da vida em sociedade.

A tradução da obra de Ludovico Silva, que agora temos em mãos, é bem-vinda por permitir aos leitores brasileiros aprenderem a forma como Marx procurava fazer uso constante dessa premissa.

Notas:
(1)  BAKHTIN, M. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. Em: Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. São Paulo: Ed. Hucitec/UNESP, 1993, p.48.

(2)  KONDER, Leandro. As artes da palavra: elementos para uma poética marxista. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 16.

(3)  VIGOTSKI, L. S. Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1998 p. 315-20, grifo nosso.

Ficha
Título: O estilo literário de Marx
Autor: Ludovico Silva
Tradutor: José Paulo Netto
Editora: Expressão Popular
Ano: 2012
Páginas: 110
Preço: R$ 15,00

O autor: Ludovico Silva (Luis José Silva Michelena) nasceu em 1937 e faleceu em 1988, na cidade de Caracas, Venezuela. Foi escritor, filósofo, ensaísta e poeta. É considerado um dos mais importantes intelectuais venezuelanos do século XX. Sobre ele, escreveu seu tradutor brasileiro José Paulo Netto: “Ele está, para a cultura da esquerda na Venezuela nos anos 1960/1970, como Mariátegui esteve para a peruana nos anos 1920”.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

DISCURSO SOBRE O BUNDA-MOLE


Camaradas!

Não é difícil constatar, e a realidade empírica está aí para não nos deixar mentir, que, no Brasil do início do século vinte e um, a figura do bunda-mole se tornou predominante em quase todos os círculos. Progresso econômico, estabilidade da inflação, aumento do poder aquisitivo, fusão carnal entre a esquerda e a direita e onipresença televisiva dos reality shows fizeram do bunda-mole um personagem típico do nosso tempo.

Já há algum tempo se observa, por exemplo, que as ideologias bunda-moles proliferam e fazem grande sucesso nestas terras. Uma ideologia bunda-mole pressupõe, por certo, uma sociedade bunda-mole. Uma sociedade bunda-mole é, por definição, aquela em que os indivíduos que a compõem são incapazes de sair de casa por motivos que não sejam de interesse exclusivo do seu próprio umbigo.

É nesse contexto que florescem as mencionadas ideologias de alto teor bundamolista. Ama-se o que é fofinho e cor-de-rosa, ama-se apaixonadamente a enfadonha estabilidade da vida e tudo aquilo que é incapaz de fazer mal a uma mosca. E essa fofura toda acaba, enfim, por se tornar o padrão de avaliação comportamental de uma época, o ideal de valor e de prática social que todos devem seguir. Enfim, o “politicamente correto” que se tem de aceitar. Que grande ironia da história! O teocentrismo, o antropocentrismo, o etnocentrismo, o egocentrismo, o sociocentrismo - e até mesmo o “especiocentrismo” - foram rejeitados para que imperasse em seu lugar o modo bundamoleocêntrico de olhar e de entender as coisas.

Essa divindade apocalíptica, surgida das entranhas de nosso desenvolvimento histórico tardio, devidamente resguardada pela sombra generosa do anonimato e equitativamente repartida por todos os meandros da sociedade, possui uma existência real, palpável e da qual ninguém mais pode, hoje, duvidar. Apesar da flacidez sugerida pelo nome de bunda-mole, a sua influência é, de modo paradoxal, lamentavelmente sólida.

O bunda-mole está aí, de fato, para quem o quiser ver. Não é difícil reconhecê-lo, seu estilo de viver o denuncia. Jeito inofensivo de ser, meiguice desmedida e concentrada (em alto grau de pureza), maciez de espírito no trato com os conflitos da existência, concepções floridas a respeito do universo, cumprimento rigoroso de horários, respeito absoluto das hierarquias, filosofias de vida água-com-açúcar, culto ostensivo da própria imagem, roupinhas e adornos corporais fashion e bom-mocismo inveterado são alguns dos traços através dos quais o bunda-mole costuma se apresentar.

(É claro que isso é parte, apenas, do potencial de comportamento dessa entidade que capilarmente abunda em nossas plagas. O bunda-mole é, em verdade, um espectro com as possibilidades de um camaleão e sua presença insípida é capaz de assumir as mais variadas aparências, a depender do contexto em que por acaso se insira).

O bunda-mole não anuncia sua presença: ele simplesmente aparece. Está nas revistas, nos jornais, nos programas de TV, academias de ginástica e também – ora vejam - no interior do quarto ao lado. Mora em todos os lugares, anda por todas as avenidas, vagueia em todas as praças e vai à praia como qualquer um. Come, dorme e consome. Quando muito, produz - se bem que há quem duvide, não sem uma boa dose de razão, que o bunda-mole seja capaz de produzir alguma coisa.

Discute e discursa, tranquilamente, sobre todos os assuntos que julga por bem debater. Não se irrita com nada que não seja algo que interrompa a sua inestimável inércia. Ama aquilo que consigo se pareça e, não raro, se torna semelhante àquilo que ama: um automóvel, um móvel e, não raro, um chinelo velho.

Há bunda-moles discretos e bunda-moles chamativos, bunda-moles bem vestidos e bunda-moles maltrapilhos, bunda-moles musculosos e bunda-moles raquíticos. Luminosos e opacos, esclarecidos e ignorantes, tradicionais e pós-modernos, viciados e caretas, tímidos e extrovertidos, usando pomposos ternos e gravatas e usando apenas chinelos e bermudas. Bunda-moles retraídos e bunda-moles comunicativos, analfabetos e letrados, com diploma e sem diploma, bunda-moles palestrantes e bunda-moles ouvintes, bunda-moles crentes e bunda-moles ateus, bunda-moles de esquerda e bunda-moles de direita, bunda-moles na vida pública e bunda-moles na privada.

Há ambientes em que eles preferem, certamente, estar: dentro de sua casa, por exemplo. Ali, protegido da efervescência do mundo exterior pelos 1.800 canais de sua TV de 200 polegadas, pelo seu sofá inescrupulosamente aconchegante e pelo seu home theater de última geração, o bunda-mole desfruta de sua confortável mediocridade. Nada o estimula, nada o tira do sério, nada o preocupa, a não ser a hora de comer, a hora de dormir e a hora de sair para o trabalho – quando tem, é claro, um trabalho.

Os bancos universitários podem ser, também, objetos da sua mais sincera predileção. A razão é bem simples: aí encontram o ambiente propício para o proferir de suas requintadas teorias sobre tudo o que se possa imaginar.

Há bunda-moles que, por outro lado, preferem frequentar os lugares da moda, sejam bares ou boates. Há os que se sentem em casa em seus belos carrões e iates. Há os que se entretêm deveras com coreografias esdrúxulas, vídeo-games, blockbusters, aeromodelismo ou com informações sobre tecnologia de ponta. Há os que fazem cooper, os que fazem caminhada e os que jogam frescobol. Há, ainda, os bunda-moles do ecoturismo, que fazem rafting e rapel, e os bunda-moles do turismo religioso, que gastam sola de sapato em procissões e romarias. Podemos pensar, finalmente, no intragável bunda-molismo que pulula por aí em saraus literários, círculos culturais e academias nacionais ou regionais de letras, materializado em prosa ou em versinhos tão com cara de receitas de bolo ou de livrecos de auto-ajuda.

O bunda-mole fica imensamente feliz tão logo arrume uma teta para poder se pendurar e mamar. “Tetas”, aqui tomadas genericamente, são as situações em que na vida se pode desfrutar de uma situação de relativa comodidade e conforto, mediante ganho financeiro razoavelmente estável, via emprego público, privado, herança, favor obtido por empréstimo ou chantagem, cargo eletivo e/ou qualquer outro tipo de parasitismo que o sujeito for capaz de obter por meio astuto e sorrateiro.

De posse de sua tão sonhada teta, o bunda-mole se dá por satisfeito e deixa de realizar qualquer esforço, sonho ou projeto de vida, passando a desfrutar as benesses de sua condição de “terneiro novo”, situação esta costumeiramente criticada pela sabedoria popular por meio dos adágios como: “se fazendo de leitão pra poder mamar deitado” ou “se fazendo de leitão vesgo pra mamar em duas tetas”. Tais adágios se aplicam perfeitamente ao bunda-mole que é, por definição, o sujeito que está sempre em busca de alguma protuberância mamária saliente capaz de aplacar a sua amarga sede de imobilismo e proteção.

O bunda-mole sabe tudo mais ou menos, conhece tudo mais ou menos, se mobiliza mais ou menos para fazer as coisas. Tudo, enfim, na sua vida, tem essa aparência de metade, de mornura, de bandeira a meio mastro. Isso, a princípio, por si só, não representaria um mal, visto que cada qual pode, a seu bel prazer, exercer a decisão de ser um bunda-mole e desfrutar individualmente o gozo perverso que esse estado anímico faculta. O grande problema está no fato de que o bunda-mole nunca quer ser bunda-mole sozinho. Ele está sempre empenhado em persuadir o outro – seu amigo, conhecido, familiar ou cônjuge - a se tornar, como ele, bunda-mole. Isso porque lhe causa tremendo pânico a solidão. Por meio de propaganda, discursos, jornais, campanhas midiáticas e artigos acadêmicos, portanto, o bunda-mole está frequentemente engajado em arrebanhar, para junto de si, um séquito numeroso de palermas e atoleimados.

A bem da verdade, é justo esclarecer que o bunda-mole não é mero reflexo passivo de nossa conjuntura. De forma alguma! Dizer isso seria o mais completo disparate. Não, ninguém está condenado a se tornar bunda-mole. O bunda-mole, isto sim, é o sujeito que faz a si mesmo a partir das condições transmitidas a ele pela enorme cadeia de bunda-moles do passado. Partindo disso é que ele se envolve no projeto, participa de sua realização, delibera de forma consciente sobre os melhores meios para executar a herança nefasta e concretizar a bunda-molice secularmente cultivada pelos seus predecessores. E tão logo se consolida nessa condição, o bunda-mole se esforça para imprimir essa particularidade em todos os terrenos existentes nos campos da matéria e da ideia, criando assim um mundo a sua imagem e semelhança.

BILBOQUET DE TOILLETE, François. Le bundamolisme expliqué aux enfant. Paris: Gallimard, 2012, p. 15-8.

terça-feira, 22 de maio de 2012

István Mészáros e o partido como ferramenta de luta ofensiva dos trabalhadores

“Todo mandato é minucioso e cruel, eu gosto das frugais transgressões” 

Mario Benedetti

Um dos pontos culminantes da teorização política desenvolvida por István Mészáros em Para além do capital [1]é quando o filósofo estabelece a atualidade histórica da ofensiva socialista. Essa atualidade nada tem a ver com a ideia de que o capitalismo esteja em vias de acabar ou de que o sucesso da ação socialista seja hoje assegurado por alguma condição objetivamente dada na história. O que Mészáros, na verdade, afirma é que, em virtude da profunda crise estrutural do sistema do capital, na qual estamos inseridos, “a necessidade de instituir algumas mudanças fundamentais na organização e a orientação do movimento socialista se apresentou na agenda histórica” [2]. Para podermos delinear o sentido dessas mudanças fundamentais, devemos compreender as contradições que compõem o ser do capital na presente etapa histórica da humanidade.

A crise estrutural de que fala o filósofo – que de modo algum começou com as complicações no setor financeiro da economia, nos países de centro, em 2007 – foi o produto do fim da chamada “fase ascendente do desenvolvimento do capital” e da consequente confrontação desse sistema com algumas contradições que se lhe afiguraram insolúveis. Em razão disso, o capital se viu obrigado a se reestruturar de uma maneira em que a produção destrutiva passou a ser o elemento predominante de seu movimento autoconstitutivo. 

Tal produção destrutiva – com seu correspondente consumo destrutivo - é que dá a forma da crise estrutural e faz com que a atual dinâmica sociometabólica da humanidade se assemelhe, no dizer de Mészáros, a um câncer em progressão [3].

O aprofundamento dessa crise estrutural – uma crise que é rastejante e não cíclica, e que é visível, por exemplo, na preponderância imperialista do Complexo Militar-Industrial e na sua incessante necessidade de guerras e conflitos, que arrastam atrás de si o conjunto da economia mundial – apresenta-se, segundo o filósofo húngaro, como a tendência fundamental de nossa época. Como tal, esse fenômeno não pode ser combatido lançando-se mão simplesmente de reformas, por mais engenhosas que estas venham a ser, e sim por intermédio de uma reestruturação completa e radical das relações de produção e dos processos de tomada de decisão política vigentes em nossa sociedade.

É, portanto, por generalizar a destrutividade a uma escala jamais vista – a escala planetária – e torná-la o “motor” da produção que a crise estrutural do capital se constitui no elemento fundante da atualidade histórica de um projeto alternativo, qualitativamente superior, de regulação do metabolismo social humano.

Aqui, é preciso esclarecer um ponto: afirmar a atualidade histórica da ofensiva socialista, como o faz Mészáros, não significa que a revolução possa ser feita a qualquer momento ou de qualquer modo. Significa apenas que ela, a revolução, é a perspectiva da qual se parte para se analisar a realidade concreta e, consequentemente, para se tomar as decisões nas questões estratégicas referentes à práxis socialista. Somente a partir desse parâmetro – a atualidade da revolução, e não o reformismo -, é que os proletários podem organizar coerentemente suas ações emancipatórias e aspirar ter êxito na realização de um projeto societário alternativo.

A perspectiva da atualidade da revolução é a que nos faz colocar, sempre, diante dos olhos, a superação do capital, e não apenas de alguma de suas partes constituintes ou expressões fenomênicas, como princípio orientador último e determinante de nossa estratégia política. O capital, como assinala Mészáros, é um sistema de controle do metabolismo social, composto por certo número de mediações [4], que se realiza no sentido de explorar a maior quantidade possível de trabalho excedente, num movimento sempre acumulativo e expansivo. A tarefa premente dos revolucionários, nesse contexto, é a de eliminar a totalidade desse conjunto de mediações e instaurar uma nova forma de organização social que restitua aos produtores associados aquilo que o capital lhes cerceia: o poder de determinar autonomamente os rumos da atividade produtiva.

Nessa luta encarniçada contra o inimigo visceral, é preciso que os sujeitos interessados na construção de um mundo novo não tenham ilusões a respeito de uma das mediações essenciais da composição do sistema: o Estado.

O Estado, diz Mészáros, não pode ser identificado e confundido com os indivíduos – ou com os cargos ocupados por esses indivíduos – que preenchem sua intrincada estrutura. Ele é, em realidade, um conjunto de relações sociais, com uma correspondente base material, que está atrelado a um conjunto mais amplo, o sistema do capital, que o determina e o faz retroagir sobre sua dinâmica sociorreprodutiva. Por ser, portanto, mera parte dessa totalidade, o Estado não pode controlá-la. Ao contrário, é pelo sistema controlado, como bem explica o filósofo húngaro.

O Estado recebe do capital a incumbência de realizar a harmonização dos conflitos que frequentemente irrompem de seu bojo, frutos dos processos fetichistas de exploração e acumulação de trabalho excedente. Imbuído dessa exigência, o Estado é até capaz de atender, aqui e acolá, algumas das demandas feitas por grupos oprimidos da sociedade, mas ele assim procede, única e exclusivamente, a fim de evitar mudanças que atentem contra a condição fundamental de existência do sistema: o controle hierárquico absoluto estabelecido pelo capital sobre o trabalho.

Essa constatação tem implicações políticas importantes para as lutas dos trabalhadores, pois mostra que não se pode pretender “encilhar” o capital por meio de reformas feitas a partir do Estado. O capital é, como explica Mészáros, uma força material que, para ser batida, precisa ser golpeada, sem vacilações, em suas raízes extraparlamentares [5].

Por consequência, o desafio central, para os proletários, passa a ser o de, sem dispensar as batalhas no interior do Estado – batalhas defensivas, por definição, mas extremamente importantes na medida em que buscam oferecer resguardo contra os ataques perpetrados pelo capital -, conseguir compor uma força material que seja, também, extraparlamentar, crítica e radical, capaz de promover a reestruturação completa das mediações antagônicas vigentes nas múltiplas esferas da sociedade.

Isso significa, em outras palavras, que as lutas no interior das instituições estatais, além de precisarem ser feitas com a maior firmeza possível, devem estar articuladas com as disputas extraestatais que visam à formação das associações coletivas capazes de regular, de maneira autônoma e horizontal, a atividade produtiva humana. A ofensiva socialista de que fala Mészáros é, justamente, o projeto que objetiva combinar dialeticamente essas modalidades de combate a fim de trazer à luz tais associações e fazer com que estas sirvam de base às grandes transformações a serem implementadas nos âmbitos da economia e da política.

É preciso, então, nesse contexto, forjar as ferramentas de luta proletária em conformidade com essa orientação estratégica geral, de coadunar negação e afirmação, combate defensivo e ofensivo, no sentido da efetivação da transição socialista.

Ora, como é sabido, nos últimos anos, com as manifestações mais explosivas da crise estrutural do capital, muitas foram as tentativas de construção de mediações de combate que possibilitassem aos trabalhadores do mundo realizar reivindicações de variados tipos. Diversos foram os países em que homens e mulheres saíram organizadamente às ruas para questionar uma multiplicidade de acontecimentos, entre eles o fato de que as decisões fundamentais, de cunho político, econômico e social, que afetavam diretamente suas vidas, estavam sendo tomadas à revelia de suas vontades[6]. Até mesmo o Brasil, guardadas as devidas proporções, foi palco para o pronunciamento de numerosas vozes, que, descontentes, clamavam por melhores condições de existência [7].

Essas organizações desempenham uma tarefa verdadeiramente árdua e indispensável: tomam ruas, ocupam praças, elaboram modos criativos de protesto, montam piquetes, pressionam, fazem agitação, enfrentam a repressão violenta do Estado, executam princípios de uma ação que se pode considerar como negativa em relação a essa ordem na qual a dinâmica sociometabólica se desenvolve sem que os sujeitos que a sustentam tenham a possibilidade de dar a ela um rumo consciente e coletivamente planejado.

A grande limitação de tais movimentos – e este é o seu calcanhar de Aquiles – é que são incapazes de transcender a ação meramente negativa (ou defensiva) e avançar no sentido de afirmar, na prática e em escala de massa, uma nova forma de regulação do metabolismo social que aponte para a superação definitiva do complexo contraditório do capital enquanto controlador fetichista e destrutivo da atividade produtiva humana.

Portanto, por mais valorosas que possamos considerar essas mediações, devemos forçosamente concluir que elas precisam, para levar suas batalhas adiante, até as últimas consequências, orientar-se de maneira ofensiva contra o capital. E esse salto programático só pode ser efetuado se os trabalhadores souberem fazer bom uso do instrumento cuja tarefa essencial é a de organizar as lutas de classes de uma forma em que se consiga ir além das reivindicações concernentes aos interesses parciais (econômicos) dos diversos setores da classe e, consequentemente, colocar em questão a própria relação antagônica – uma relação que é política, isto é, que envolve poder - existente entre capital e trabalho, que permeia a classe como um todo.

Esse instrumento de que estamos falando é o partido [8]. A atribuição específica do partido é a de, justamente,politizar as lutas econômicas dos trabalhadores, ou seja, tornar-se veículo para que a consciência proletária ultrapasse o nível da particularidade e atinja o da totalidade concreta acerca do ser da sociedade na qual estão inseridos e que atualmente é controlada pelo sistema do capital. Numa palavra: o partido deve servir de mediação entre a classe revolucionária e a consciência revolucionária [9].

Para tanto, o partido necessita ter a melhor preparação teórica e política possível – profissionalizar-se, em todos os âmbitos da práxis revolucionária -, ao mesmo tempo em que se mantém organicamente vinculado às fileiras proletárias. Ele não é, nesse contexto, o causador da revolução, mas a ferramenta dialética que ensina e aprende com os trabalhadores e que lhes possibilita apreender concretamente as múltiplas determinações sociometabólicas que afetam as suas existências.

Comprando diariamente as lutas da classe trabalhadora, inserindo-se em seu interior, realizando denúncias sobre as arbitrariedades do capital, fazendo agitação político-ideológica, usando as palavras de ordem adequadas, educando e preparando material, tática e estrategicamente as massas para a atividade revolucionária – as batalhas ofensivas com o fim de formar mediações alternativas de regulação da produção -, o partido se converte em elemento efetivo de emancipação.

O partido não pode, portanto, em hipótese alguma, permanecer a reboque das causas economicistas dos trabalhadores, mas sim buscar a elevação da consciência das massas a partir da conjugação de ações negativas e afirmativas em todos os espaços passíveis de intervenção política.

Sua própria forma de constituição interna, nesse contexto, precisa ser prenunciadora de uma formação social qualitativamente superior. Organização e orientação estratégica são, aqui, duas faces de uma mesma moeda. Isso quer dizer, em outras palavras, que as mediações alternativas da luta proletária – partido incluso – não podem se estruturar de uma maneira que reproduza a lógica de funcionamento sociometabólico do capital – um modo de controle hierárquico e fetichista da atividade produtiva. A proposta da ofensiva socialista, de que fala Mészáros, exige, dos interessados na superação do sistema, esforços para a efetivação progressiva, já no presente, de um tipo de organização diverso do que está posto pela realidade alienante do capital.

Conclusão: o desafio histórico de construir uma política socialista para além do capital

As tarefas dos trabalhadores são, portanto, imensas e urgentes. A crise estrutural que se aprofunda empurra-os cada vez mais para uma encruzilhada: seguir na trilha da produção e consumo destrutivos do capital, que perpassa e contamina negativamente as várias esferas da vida, ou estabelecer um modo alternativo de regulação do metabolismo social humano, não perdulário, não barbarizante, verdadeiramente sustentável, isento de hierarquias estruturais e fetiches e sob a responsabilidade autogestora dos produtores associados?

Se optarem pelo segundo caminho, deverão enfrentar o problema da construção das ferramentas de luta, da articulação das mediações de combate que lhes possibilitarão enfrentar e tentar superar, de uma vez por todas, o complexo do capital. Tais mediações precisarão ter um caráter ofensivo em relação ao atual sistema, isto é, orientar-se e organizar-se de uma maneira em que se possa combatê-lo a partir de suas raízes e visando ir além de sua lógica de processualidade interna. A atuação extraestatal, articulada com e dando sustentação às batalhas no interior do Estado, necessitará ser o princípio orientador indispensável do processo de transição revolucionária socialista.

O partido, como ferramenta de combate, há de ter, nesse contexto, tremenda importância, visto que será o encarregado de executar tarefas incontornáveis: interligar dialeticamente os diversos setores da classe trabalhadora; orientar seus embates contra o inimigo comum; politizar as variegadas lutas que, em razão das circunstâncias, se apresentam; conscientizar os proletários acerca da forma como se constituem e agem as mediações a serviço do capital; e dinamizar sua ação crítico-prática na direção da realização de novos modos de mediar o metabolismo social humano.

Tal é o sentido, lucidamente apontado por Mészáros, das modificações fundamentais a serem feitas no movimento socialista de nossa época histórica.

NOTAS
[1] István Mészáros, Para além do capital: rumo a uma teoria da transição (São Paulo, Boitempo, 2002).

[2] Ibidem, p. 858.

[3] Infelizmente, não é possível, dentro dos marcos deste artigo, detalharmos a explicação sobre o choque do capital com essas contradições – a ativação dos seus assim chamados “limites absolutos”, ocorrida por volta de 1970 – e o surgimento da produção destrutiva. Remetemos os interessados no assunto à leitura de Para além do capital, cit.

[4] Essas mediações – os meios alienados e os objetivos fetichistas de produção, o trabalho “estruturalmente separado da possibilidade de controle”, o dinheiro, a família nuclear, o mercado mundial e as várias formas de Estado do capital -, juntamente com as mediações que compõem a atividade produtiva humana, são analisadas por Mészáros em sua teorização sobre a crise estrutural do capital. Não é possível, aqui, entrarmos em minúcias a respeito de tais temas. Mais uma vez, remetemos os interessados à leitura de Para além do capital, cit.

[5] Mészáros afirma que o capital é uma força extraparlamentar par excellence. O termo extraparlamentar tem, groso modo, na sua argumentação, o significado de algo que está além do Estado, ao mesmo tempo em que o incorpora. Ou seja, o capital, para realizar seus propósitos, age dentro do Estado (isto é, por seu intermédio) e fora dele. É um sistema, portanto, que engloba as instituições estatais e as transcende. Para ser vencido, precisa ser confrontado, a partir dos seus fundamentos, em todos os espaços onde exerce sua ação.

[6] O ano de 2011 foi marcante nesse sentido. Para uma boa leitura acerca de tais acontecimentos, vale a pena conferir a entrevista de Ricardo Antunes para Valéria Nader e Gabriel Brito, “Luta pelos direitos do trabalho é hoje vital diante da crise cabal do capitalismo”, Correio da Cidadania, 08/09/2011. Como explica o sociólogo brasileiro, ainda que cada uma dessas manifestações tenha tido a sua singularidade, todas elas revelam um traço comum: expressar um profundo descontentamento em relação à ordem em que se inserem – ordem esta marcada, de uma forma ou de outra, pela grave crise do capital.

[7] Sobre esse ponto, é útil ler o bom artigo de Fernando Marcelino “Quatro lições sobre a nova dinâmica da luta de classes no Brasil”, Correio da Cidadania, 17/02/2012. Ressalte-se, ainda, nesse contexto, o fato de que, entre os anos de 2009 e 2010, houve 964 greves no Brasil.

[8] Apesar de não ser um tema central de sua vasta obra, Mészáros afirma que os partidos podem ser mediações efetivas nas lutas de classes a favor dos trabalhadores. Apresentamos algumas de suas concepções a respeito num pequeno artigo, “Por um partido socialista de orientação estratégica ofensiva: notas a partir de István Mészáros”, Correio da Cidadania, 18/11/2011, disponível em.

[9] Mészáros usa o termo – retirado d’A ideologia alemã – consciência socialista de massa para se referir à consciência revolucionária dos trabalhadores. Esse tipo de consciência deve dar conta de compreender não somente o que precisa ser negado pela práxis transformadora – o sistema de mediações do capital -, mas, também, fundamentalmente, aquilo que necessita ser afirmado em seu lugar, a comunidade dos homens e mulheres que regulam, de forma consciente e autônoma, o metabolismo social humano.

POR UM PARTIDO SOCIALISTA DE ORIENTAÇÃO ESTRATÉGICA OFENSIVA: NOTAS A PARTIR DE ISTVÁN MÉSZÁROS


 Dedicado aos valorosos camaradas militantes do Coletivo Opção Socialista (de Santa Maria, Rio Grande do Sul), que compõe o Campo Debate Socialista do PSOL.

Em uma infeliz resenha de Para além do capital, escrita em 2003, Hector Benoit passou longe de compreender o essencial da teorização política de István Mészáros. Nela, o professor da Unicamp afirma que, para o filósofo húngaro, “a noção de ‘transição’ designa uma espécie de programa de governo para o futuro” (2003, 7). Não se trata disso. A teoria da transição de Mészáros é uma estratégia que tem como cerne o processo de reestruturação completa e radical das antagonicamente estruturadas mediações que regulam a atividade produtiva humana, hoje sob domínio do capital.
Não satisfeito com sua caracterização desleixada e errônea – feita com uma má vontade evidente -, Benoit ainda faz troça de Mészáros pelo fato de o filósofo não seguir as propostas de Trotsky (seu programa de “reivindicações transitórias”) e por descartar o partido de tipo leninista, bem como as organizações aos moldes das antigas Associações Internacionais dos Trabalhadores, criticados em Para além do capital por terem se erigido a partir de uma forma que o autor conceitua como defensiva.
De maneira fetichista, a argumentação de Benoit eleva tais instituições à qualidade de critérios de julgamento, como se fossem ainda hoje adequadas em sua orientação estratégica, mas sem fazer uma única avaliação da viabilidade dessas entidades com base em uma análise da conjuntura histórica atualmente estabelecida. Suas propostas soam, por isso, abstratas, fato que, aliado à má leitura que faz de Mészáros, torna sua resenha absolutamente inconsistente e não merecedora de crédito.
Esse tipo de crítica, aliás, é uma das piores leviandades que se pode cometer em nome do marxismo: tentar enquadrar, arbitrariamente, numa espécie de “marxímetro” – ou “trotskímetro”… –, um autor que tenta atualizar a teoria e se apegar a citações dos clássicos como se nelas estivessem resolvidos todos os problemas concernentes à superação do capital. O nosso trabalho enquanto intelectuais militantes deveria ser bem outro: proceder exaustivamente na crítica da realidade concreta, fazendo emergir daí os lampejos teóricos capazes de nos orientar no rumo da emancipação humana.
No transcurso dessa jornada, podemos chamar, evidentemente, em nosso auxílio, os clássicos do pensamento crítico, a fim de verificar em que medida suas colocações têm ainda validade. Mas, nesse movimento, é a própria realidade, teoricamente compreendida, que precisa ser o parâmetro principal de avaliação de um autor, e não passagens de Trotsky (ou de quem quer que seja) pinçadas de forma abstrata e aleatória.
O próprio Mészáros procura direcionar seu trabalho nesse sentido: busca uma crítica radical das mediaçõesreais – bem como de suas expressões teóricas – envolvidas no processo de reprodução sociometabólica da humanidade, com vistas a evidenciar sua formação histórica, sua lógica e contradições internas e, assim, auxiliar os trabalhadores do mundo em suas lutas por emancipação. Uma teoria, portanto, da transição, guiada pelo “espírito da obra de Marx”, capaz de incorporar os clássicos e ser, ao mesmo tempo, autocrítica a ponto de reavaliar o arcabouço ricamente constituído à luz das transformações históricas e de enfrentar as novas questões que nossa época impõe.
A estratégia política delineada em Para além do capital se fundamenta em um procedimento desse tipo, no qual, à maneira de Marx, a crítica se centra, sem vacilações, sobre o capital e suas múltiplas formas de expressão. Tal complexo sociometabólico, segundo Mészáros, é formado por um “sistema de mediações” que subjuga e domina a atividade produtiva, visando explorar a maior quantidade possível de trabalho excedente. A superação do capital exige, pois, a eliminação completa e definitiva de todos os elementos contraditórios que configuram esse sistema1.
O capital é, no dizer do filósofo húngaro, uma “força extraparlamentar par excelence”, isto é, uma estrutura de controle (mediação) do metabolismo social que transcende o campo do Estado e se espraia pela sociedade inteira. Enquanto tal, só pode ser vencido por outra força extraparlamentar, conscientemente articulada, advinda do mundo do trabalho, que se lhe contraponha de forma decidida e radical. A estratégia socialista, para ser consistente e efetiva em seu propósito revolucionário, precisa ter como princípio fundamental esse objetivo, a criação da “livre associação dos produtores” capazes de regular, de maneira auto-determinada, a atividade produtiva humana. Só então a estratégia se torna ofensiva nos termos que Mészáros define.
Nesse contexto, explica o filósofo, o Estado não pode controlar o capital, visto que não passa de uma de suas “vértebras” constituintes (isto é, uma das mediações que compõem a base material do sistema). Sua tarefa primordial consiste aí em harmonizar os “microcosmos” (unidades produtivas) do capital que, em virtude de seu movimento centrífugo, perdem ocasionalmente a coesão e entram em rota de colisão.
Apesar disso, diz Mészáros, a atuação no interior do Estado ainda é importante para uma práxis socialista conseqüente. Esta é a luta defensiva de que fala o filósofo: os combates que, realizados no âmbito interno da instituição estatal, buscam defender direitos dos trabalhadores historicamente conquistados. Tais embates são necessários, sem dúvida, mas precisam ser complementados pela formação das associações coletivas conscientes e organizadas em torno do projeto de auto-regulação do processo de trabalho humano – eis aofensiva socialista!
A crítica de Mészáros ao partido de tipo leninista se deve, justamente, ao fato dessa organização ter reproduzido, em sua forma constitutiva, muito do modo de se estruturar do próprio Estado que procurava negar, permanecendo, assim, circunscrita aos limites de uma práxis defensiva – embora Lenin, é claro, em sua época, estivesse consciente da necessidade de uma atuação ofensiva em nível amplo.
Mas a recusa desse tipo específico de organização política não significa, para o filósofo húngaro, que partidosnão possam se constituir como mediações eficientes para as lutas de classes a favor dos trabalhadores. Eles podem e devem. Precisam, no entanto, estar estabelecidos e orientados de forma ofensiva, tal como explicitado acima.
Mészáros deixa isso claro, por exemplo, em uma entrevista na qual, ao ser questionado sobre “qual o papel do partido revolucionário?”, responde: “Nesta dinâmica [de crise estrutural do sistema do capital], as forças parlamentares da política devem se articular, não de forma autônoma e auto-suficiente, mas com as forças extraparlamentares. Essa extraparlamentariedade não significa opor-se ao partido (…). A reestruturação da política, no sentido social, deve se manifestar dessa forma (…), as forças extraparlamentares devem agir em conjunto com as forças políticas, isto é, os partidos”(2009, 158).
Sintetizando, então, a diferença, temos que uma alternativa é a estratégia delineada a partir do princípio orientador da tomada do Estado com vistas a tentar controlar daí o sistema do capital; outra, completamente diferente, é a que visa, acima de tudo, à formação de associações conscientes de trabalhadores imbuídos do objetivo de planejamento e regulação horizontal do metabolismo social, e que faz uso, para esse fim, de ações no interior do Estado. A primeira estratégia pode tomar como meio a práxis extraparlamentar para fins de ocupação do Estado; a segunda, ao contrário, subordina a ação estatal à necessidade de construção da livre associação dos produtores. É apenas a partir da última perspectiva que os partidos de trabalhadores poderão ter êxito em seus propósitos revolucionários, segundo István Mészáros3.
Num contexto histórico como o nosso, em que a profundamente grave crise do capital desencadeia ondas de contestação e protesto por todo o planeta, tais reflexões adquirem suma importância. Elas mostram que os partidos socialistas precisam se efetivar como mediações capazes de dar coesão a esses movimentos e fazê-los ir além de suas posturas meramente defensivas e negativas em relação à ordem social imposta.
Para tanto, tais partidos necessitam atuar dentro e fora do Estado, de modo articulado e complementar. No plano extra-estatal, sua inserção deve se dar junto às lutas populares, servindo de ferramenta para a auto-organização dos trabalhadores, no sentido de que possam exercer o controle consciente da atividade produtiva. No âmbito do Estado, os mandatos socialistas precisam retro-alimentar tal dinâmica auto-organizativa, sem esquecer, obviamente, a defesa de tudo aquilo que já foi conquistado. Em ambas as frentes de batalha o objetivo a se cumprir é o de distribuir o poder de decisão sobre os processos de trabalho humano aos produtores livres e associados4, poder de decisão este desgraçadamente usurpado pelo capital há séculos.
NOTAS:
Como assinala Mészáros, as “mediações de segunda ordem” do sistema do capital são: os meios alienados de produção, os objetivos fetichistas de produção, o trabalho “estruturalmente separado da possibilidade de controle”, o dinheiro, a família nuclear, o mercado mundial e as várias formas de Estado do capital.
Evidentemente, a mesma reflexão vale para as Associações Internacionais de Trabalhadores e seus novos tipos a serem construídos. O tema do internacionalismo é caro a Mészáros a ponto de o filósofo utilizar o termo internacionalismo positivo como sinônimo para a sua estratégia da ofensiva socialista. O livro Para além do capital é, entre outras coisas, uma crítica radical à famigerada teoria do “socialismo num só país”.
É importante frisar que, para Mészáros, o próprio modo de se estruturar do partido socialista deve ser diferente do modo de se articular do capital. Nas suas palavras, a reorganização interna do movimento revolucionário precisa apresentar, em seu processo constitutivo, “prenúncios de uma nova forma – genuinamente associativa – de cumprir as tarefas que possam se apresentar” (2004, 52).
A socialização do poder de decisão sobre todos os âmbitos da atividade humana é, bem entendido, algo diverso da mera estatização das coisas levadas a cabo por projetos políticos anteriores que se consideravam socialistas.

REFERÊNCIAS
BENOIT, Hector. Uma teoria da transição aquém de qualquer além? Revista Crítica Marxista, nº 16, 2003. Disponível em <http://www.unicamp.br/cemarx/criticamarxista/sumario16.html>. Acesso em 29/10/2010.
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.
MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.
MÉSZÁROS, István. Tempos de Lukács e nossos tempos: socialismo e liberdade. in Verinotio: revista online de educação e ciências humanas. n.10, Ano V, out./2009. Disponível em <http://www.verinotio.org>.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

20 Infalíveis Princípios para o Progresso e o Sucesso das Ciências Sociais no Século XXI


1. Adote como princípio metodológico o relativismo. Esta é a única regra absoluta absolutamente válida para todas as ocasiões.

2. Evite os temas “macro”. Delimite microscopicamente seu problema de pesquisa, abstraindo seu objeto de todas as relações com o contexto em que ele se insere. Escolha estudar, por exemplo, a dinâmica de socialização hetero-afetiva no interior de uma lanchonete de subúrbio às seis horas da tarde de domingo. Depois, tire dali conclusões teóricas capazes de serem aplicadas a qualquer campo de estudo das ciências sociais.

3. Se estiver com o prazo apertado para a entrega de seu trabalho, deixe a questão do método para segundo plano. Fora os professores de epistemologia e metodologia científica, que ficaram nos semestres anteriores, ninguém vai se preocupar em verificar se estão bem fundamentadas as suas categorias de análise.

4. Há quem ache que a verdade objetiva não existe. Há quem jure de pé junto que existe. Não se demore muito em questões desse tipo. O tempo urge. Em assuntos científico-sociais de ponta, mais do que verdadeiro é importante ser convincente.

5. Max Weber é o mais fecundo, profundo e prolífico intelectual de todos os tempos. É possível passar uma vida inteira estudando e descobrindo novas informações e insights em suas obras. Sua metodologia se aplica a praticamente tudo. Sua explicação do capitalismo é insuperável.

6. Em diálogos com colegas de orientações teóricas diversas, esteja sempre no ataque. Não é necessário ouvir e meditar demoradamente sobre o argumento do adversário. Aconteça o que acontecer, demonstre, de pronto, que ele está errado.

7. Não importa se o conteúdo do seu trabalho é estapafúrdio. O que importa é, sem sombra de dúvida, o aval de quem lhe banca.

8. Max Weber é o mais fecundo, profundo e prolífico intelectual de todos os tempos. É possível passar uma vida inteira estudando e descobrindo novas informações e insights em suas obras. Sua metodologia se aplica a praticamente tudo. Sua explicação do capitalismo é insuperável.

9. O ideal é ser sempre politicamente correto e deixar os preconceitos sob controle. Fazendo isso, você atinge a condição intelectual necessária que lhe permitirá tripudiar à vontade e colocar no devido lugar aquele seu colega cabeludo impertinente, que usa camisetas do Che Guevara.

10. Em uma discussão pública, fale grosso. Em ciências sociais, retórica é fundamental.

11. Use os livros da coleção “Primeiros Passos” – principalmente “O que é poder?”, “O que é etnocentrismo?” e “O que são classes sociais?” -, mas não comente com ninguém sobre esse assunto.

12. Max Weber é o mais fecundo, profundo e prolífico intelectual de todos os tempos. É possível passar uma vida inteira estudando e descobrindo novas informações e insights em suas obras. Sua metodologia se aplica a praticamente tudo. Sua explicação do capitalismo é insuperável.

13. Mantenha sua subjetividade sob atenta vigilância epistemológica, não tome partido sobre nenhum conflito, esqueça a política do lado de fora da sala de aula. A neutralidade é a meta. Observe tudo a partir da perspectiva celestialmente sublime e imperturbável de Deus.

14. Trate com grande seriedade e respeito os temas mais simplórios e irrelevantes. Prefira os mais mínimos particularismos. Aquilo que afeta a vida de todo mundo não merece interesse (não existe).

15. É de bom tom usar os termos “pós”, “neo” ou “novo” quando estiver tecendo considerações críticas sobre fenômenos do mundo contemporâneo.

16. Tenha opinião formada e seja capaz de falar sobre todos os assuntos. Principalmente quando estiver fora do ambiente acadêmico ou discutindo com um novato.

17. Se você for da ciência política, descarte Marx como sociólogo; se for da sociologia, descarte como filósofo; se for da antropologia, descarte como economista e reducionista; se for "pós-moderno", descarte como "moderno".

18. Se você for positivista, use bons gráficos para exemplificar a realidade social. Mantenha-se atualizado sobre as estatísticas e não se esqueça de utilizar modelos interpretativos do tipo “input” e “output”.

19. O ecletismo teórico te salva de muitos impasses, principalmente em monografias de conclusão de curso e em entrevistas de TV.

20. As classes, as lutas de classes e as ideologias estão terminantemente mortas e enterradas desde a queda do Muro de Berlim, em 1989.