segunda-feira, 24 de outubro de 2011
Giorgio Agamben: Política da profanação versus Religião do consumo
O capitalismo seria, em primeiro lugar, uma religião essencialmente cultual: o dinheiro, a riqueza, etc., representam as divindades às quais se deve impreterivelmente servir, sem vacilação. Segundo: o culto preconizado pela religião capitalista não possui um dia ou uma ocasião específica para sua realização: ele é, de fato, permanente. Afirma o filósofo: “Não há dia que não seja de festa, no terrível sentido da ostentação sagrada, da tensão extrema que reside no adorador.” O terceiro traço: o culto que esse sistema produz é culpabilizador, mas sem a possibilidade de expiação. Como consequência, as pessoas são tomadas de um desespero renitente e cruel, sem qualquer chance de redenção.
Mais tarde, em 1924, ao travar contato com a obra do húngaro György Lukács, o filósofo alemão acabou abandonando algumas dessas idéias. Aproximou-se do marxismo, deixou de condenar o capitalismo como religião e passou a criticar o culto fetichista da mercadoria, analisando as galerias parisienses como “templos do capital mercadológico”. Em nossos dias, coube ao italiano Giorgio Agamben retomar e desenvolver algumas das antigas reflexões benjaminianas sobre o capitalismo como religião, dando a elas uma fundamentação um pouco diferente.
É verdade, diz Agamben, que o capitalismo possui cultos, que esses cultos são permanentes e que a culpabilização gerada não oferece possibilidade de redenção. Mas o que é mais fundamental, e que justifica a comparação do capitalismo com uma religião, é o fato de essa forma de organização social estabelecer, em sua própria substância, uma cisão radical que cria a esfera do sagrado em contraposição ao mundo meramente humano, onde subsiste a maioria das pessoas.
Para fundamentar teoricamente sua reflexão, o filósofo serve-se dos escritos dos juristas romanos do passado, tema este em que é especialista. Na Roma antiga, afirma Agamben,“Sagradas ou religiosas eram as coisas que de algum modo pertenciam aos deuses. Como tais, elas eram subtraídas ao livre uso e ao comércio dos homens, não podiam ser vendidas nem dadas como fiança, nem cedidas ao usufruto ou gravadas de servidão. Sacrílégio era todo ato que violasse ou transgredisse esta sua especial indisponibilidade, que as reservava exclusivamente aos deuses celestes (nesse caso eram denominadas propriamente ‘sagradas’) ou infernais (nesse caso eram simplesmente chamadas ‘religiosas’).” (Agamben, 2007, p. 65)
Religião é, portanto, aquilo que retira coisas, lugares, animais ou pessoas do contato com o vulgo e as transfere para uma dimensão à parte da existência. Não há religião sem separação, e todo tipo de separação feita nesses moldes contém algo de religioso (o dispositivo que realiza a transposição de um determinado ente do mundo dos homens para as regiões divinais é o sacrifício).
Muitas pessoas acreditam, explica Agamben, que o termo religio deriva de religare (isto é, o que une o humano e o divino), mas essa relação não é verdadeira. Religio deriva, de fato, de relegere que significa precisamente “a atitude de escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as relações com os deuses, a inquieta hesitação (o ‘reler’) perante as formas – e as fórmulas – que se devem observar a fim de respeitar a separação entre o sagrado e o profano” (ibid., 66). Religião, então, é exatamente aquilo que separa (e reforça a distinção) entre os mundos humano e divino.
Por outro lado, o que em verdade supera a cisão entre ambas as esferas não é a deferência em relação ao divino, e sim uma atitude de “negligência” para com as normas que a religião estabelece. É essa atividade que Agamben, na esteira dos juristas romanos, denomina de profanação: “Profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso particular.” (ibid., 66)
Nesse sentido, explica o filósofo, uma das maneiras de se fazer esse “uso particular” do sagrado e burlar o conjunto de normas que realizam a separação entre humano e divino é a atividade lúdica, o jogo. Conforme suas palavras:“Brincar de roda era originalmente um rito matrimonial; jogar com bola reproduz a luta dos deuses pela posse do sol; os jogos de azar derivam de práticas oraculares; o pião e o jogo de xadrez eram instrumentos de adivinhação. Ao analisar a relação entre jogo e rito, Émile Benveniste mostrou que o jogo não só provém da esfera do sagrado, mas também, de algum modo, representa a sua inversão. A potência do ato sagrado – escreve ele – reside na conjunção do mito que narra a história com o rito que a reproduz e a põe em cena (grifo nosso). O jogo quebra essa unidade: como ludus, ou jogo de ação, faz desaparecer o mito e conserva o rito; como jocus, ou jogo de palavras, ele cancela o rito e deixa sobreviver o mito. (…) Isso significa que o jogo libera e desvia a humanidade da esfera do sagrado, mas sem a abolir simplesmente. O uso a que o sagrado é devolvido é um uso especial, que não coincide com o consumo utilitarista. Assim, a ‘profanação’ do jogo não tem a ver apenas com a esfera religiosa. As crianças, que brincam com qualquer bugiganga que lhes caia nas mãos, transformam em brinquedo o que pertence à esfera da economia, da guerra, do direito e das outras atividades que estamos acostumadas a considerar sérias. Um automóvel, uma arma de fogo, um contrato jurídico transformam-se improvisadamente em brinquedos.” (ibid., 66-7)
Note-se, então, que no jogo, que é uma das formas exemplares de profanação, as coisas são retiradas de suas relações costumeiras e inseridas em novas relações completamente distintas das primeiras. Um objeto com uma função específica, como por exemplo uma vassoura, pode virar, numa brincadeira, um cavalo. Uma estrutura que envolve determinadas práticas sociais e significados quebra-se para que outra venha à tona.
Contudo, diz Agamben, o “jogo como órgão da profanação está em decadência em todo lugar” (ibid., 67). Em nossos dias, de “religião capitalista”, os homens e mulheres já não tomam mais o jogo como meio de restituir o sagrado ao mundo humano. Não que não haja mais jogos – ou festas e danças, também concebidas originalmente como práticas anuladoras da separação – no contexto contemporâneo. Mas é que, naqueles que hoje existem – os “jogos televisivos de massa”, por exemplo – o objetivo realizado é apenas a instauração de uma nova liturgia, que seculariza por um breve momento o que nas situações diárias é considerado como objeto de culto e reverência. Mas secularização, adverte o filósofo, é diferente de profanação.“A secularização é uma forma de remoção que mantém intactas as forças, que se restringe a deslocar de um lugar a outro. Assim, a secularização política de conceitos teológicos (…) limita-se a transmutar a monarquia celeste em monarquia terrena, deixando intacto, porém, o seu poder. A profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso.” (ibid., 68)
A secularização, portanto, muda de lugar um elemento no interior de um determinado sistema de relações que permanece, por sua vez, intacto. A profanação, ao contrário, desativa esse sistema. É por isso que é a profanação, e não a secularização, que deve ser perseguida por aqueles que não querem se deixar aprisionar pelo culto culpabilizador (e desesperador!) da religião capitalista.
O capitalismo, diz Agamben, generaliza e absolutiza o princípio definidor da religião. Em todos os âmbitos da atividade humana pode-se verificar o processo multiforme de separação que o sistema implementa. É interessante observar, nesse contexto, como o filósofo italiano aproxima tal fenômeno do fetichismo da mercadoria de que falava Marx. Conforme suas palavras:“Na sua forma extrema, a religião capitalista realiza a pura forma de separação, sem mais nada a separar. Uma profanação absoluta e sem resíduos coincide agora com uma consagração igualmente vazia e integral. E como, na mercadoria, a separação faz parte da própria forma do objeto, que se distingue em valor de uso e valor de troca e se transforma em fetiche inapreensível, assim agora tudo o que é feito, produzido e vivido – também o corpo humano, também a sexualidade, também a linguagem – acaba sendo dividido por si mesmo e deslocado para uma esfera separada que já não define nenhuma divisão substancial e na qual todo uso [no sentido de profanação] se torna duravelmente impossível. Esta esfera é o consumo.” (ibid., 71. Grifos nossos)
Portanto, tudo que é feito, produzido e vivido torna-se mercadoria – tudo é interiormente cindido. A existência social como um todo divide-se e o consumo passa a ser a esfera onde a consagração das coisas é consumada. As coisas tornam-se reverenciáveis por si mesmas, sagradas, veneráveis e acima do universo do humano.
Qual a alternativa? Fazer outro uso das coisas, diz o filósofo: estabelecer uma forma de relacionamento social que elimine a separação instaurada pelo capitalismo e que restitua ao domínio humano o que o sistema aliena para o plano do sagrado. Numa palavra, é preciso profanar.
“A profanação do Improfanável é a tarefa política da geração que vem”, assevera Agamben, sem hesitação. Se estiver certo, as revoluções do século XXI deverão ter um caráter profundamente lúdico e profanatório.
Referências: Agamben, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.
Sonhar, realizar o sonho, sonhar mais alto: Dialética e revolução em Slavoj Zizek
I
Uma transformação social de grande envergadura pode ser considerada pejorativamente, por muitos, um sonho. Pode ser sonho ingênuo, do ponto de vista dos senhores da ordem, uma condição em que superamos um modo de vida no qual existimos como meros meios para fins que nos são alheios. No entanto, há que se levar em conta, são sonhos que não emergem isoladamente nem são eventos acidentais no fluxo constante que é a história.
O que é, pois, sonhar? O que é que são os sonhos (diurnos ou noturnos)? Por que, afinal, sonhamos e desejamos tão ansiosamente, tão entranhadamente a emancipação que nos escapa? O que sabemos, de fato, pela simples constatação empírica diária, é que esse fenômeno existe, é que sonhamos e frequentemente sonhamos acordados (devaneamos). Em algumas situações, na realidade, chegamos a estar face-a-face com o objeto dos nossos sonhos. No entanto, raras são as vezes em que os tocamos. E mais raras ainda são as vezes em que com eles conseguimos permanecer. Por que isso acontece?
Slavoj Zizek arrisca uma resposta em seu brilhante ensaio Mao Tsé-Tung, “Senhor do Desgoverno” marxista, em que apresenta elementos-chave de suas concepções sobre cultura e revolução. Esse escrito foi concebido para servir de apresentação a uma edição de Sobre a prática e a contradição, possivelmente a obra mais célebre do velho líder chinês. Trata-se de um balanço crítico das razões teóricas do fracasso da revolução chinesa em conseguir realizar a “livre associação dos produtores”, a comunidade humana emancipada de que falavam Marx e Engels.
Quais as limitações do pensamento e da práxis política de Mao? Segundo Zizek, o grande problema de seu projeto revolucionário estaria na recusa da ideia hegeliana de síntese enquanto unidade superior entre os contrários. Mao teria razão, explica o filósofo esloveno, em romper com as noções padronizadas de síntese enquanto mero equilíbrio e conciliação entre os opostos, pois, de fato, o conceito de Aufhebung (isto é, de síntese dialética), desenvolvido por Hegel, é muito mais complexo que isso. No entanto, ele insiste unilateralmente em priorizar a luta dos opostos e rejeitar qualquer tipo de síntese (ou de unidade) entre esses pólos.
Ou seja, Mao rejeita a noção vulgar de síntese, mas recusa também, de antemão, que exista qualquer forma possível de superação dialética. A processualidade do real se daria, assim, meramente, por meio do confronto entre tese e antítese e nunca se verificaria o momento da negação da negação. Como explica Zizek:
“Mao rejeita de forma cáustica a categoria da ‘síntese dialética’ dos contrários, promovendo sua própria versão da ‘dialética negativa’ – toda síntese é, para ele, em última instância, o que Adorno em sua crítica a Lukács chamou de erpresste Versöhung (reconciliação forçada), na melhor das circunstâncias momentânea pausa na luta verdadeiramente em processo, que ocorre não quando os contrários estão unidos, mas quando um lado simplesmente vence o outro.” (Zizek, 2008, 19)
Para Mao, em sua “ontologia”, tudo está condenado a se dividir, e nada realmente se sintetiza. Quais são as consequências políticas desse tipo de orientação teórica?
A grosso modo, para a filosofia hegeliana, o real é composto de uma unidade de contrários em permanente luta. Há, para cada afirmação, uma correspondente negação. Desse processo, emerge uma terceira coisa, que é produto da negação da negação. Dito de outro modo: existe, num primeiro “momento”, a tese, que, em seguida, é negada pelo seu contrário; a sua antítese e, desse conflito, surge a síntese, o “terceiro elemento”, um ente que nega a negação realizada pela antítese sobre a síntese.
A síntese é o ápice do processo em que os contrários lutam entre si e o ser emerge numa terceira configuração, “qualitativamente diferente” das duas primeiras. Há, dessa maneira, dois momentos na transformação do ser: o primeiro é a negação; o segundo, o decisivo, corresponde à negação da negação, à síntese hegeliana. Para designar a síntese, Hegel utiliza a palavra alemã Aufhebung, que significa, simultaneamente, negação, conservação e superação. É esse tipo de raciocínio que Mao rejeita por completo. Para ele, explica Zizek, só tese e antítese se sucedem, nada de fato se sintetiza e tudo permanece sempre dividido.
Se não há a síntese, pensa Mao, o próprio comunismo deve se constituir em uma realidade inerentemente cindida, produzindo antagonismos fundamentais, teses e antíteses, sem a possibilidade de alguma Aufhebung. Por recusar a noção de síntese dialética e assumir apenas a realidade do conflito que se desenvolve em interminável sucessão de teses e antíteses, Mao acabou abrindo a possibilidade prática para a reafirmação do conflito entre as classes, o que, por sua vez, eliminou, segundo Zizek, a viabilidade da realização do comunismo na China.
A Revolução Chinesa conseguiu, então, negar a tese original – a ordem social anterior -, mas não pôde ir além disso, não realizou a negação da negação. Verificou-se uma mudança na ordem, mas não da própria ordem, como necessariamente deve haver se se pretende levar a efeito um processo genuinamente transformador. Nas palavras do filósofo esloveno,
“O problema de Mao foi justamente a falta de ‘negação da negação’, o fracasso das tentativas de transpor a negatividade revolucionária em nova ordem verdadeiramente positiva. Todas as estabilizações temporárias da revolução equivaliam a outras tantas restaurações da velha ordem, de tal modo que a única forma de manter a revolução viva era a ‘infinidade espúria’ da negação repetida interminavelmente, que atingiu seu ápice na Grande Revolução Cultural.” (ibid, 30)
É nesse preciso sentido que, segundo Zizek, Mao foi o “Senhor do Desgoverno” marxista. O que significa isso?
Na Europa da Idade Média, um dos costumes das casas feudais era escolher um “senhor do desgoverno”, um sujeito que, num dia qualquer de festividade, seria considerado o mentor das atividades gerais. Durante esse dia, a ordem e a hierarquia usuais estariam abolidas. Os papéis de gênero eram revertidos, os aprendizes tomavam o lugar dos mestres etc. Mas, quando esse momento de exceção acabava, os “senhores do desgoverno” e os antigos amos voltavam às suas ocupações habituais.
O fracasso de Mao, pois, tem a ver com essa incapacidade de, uma vez instaurado o “desgoverno” – a reversão da ordem tradicional -, não ter conseguido “negar a negação”, isto é, transcender completa e radicalmente a própria ordem que foi brevemente negada. Houve, portanto, uma negação dentro da ordem (isto é, no interior da ordem mesma), mas não da própria ordem.
Dito de outro modo: por um curto período de tempo, no âmago de uma determinada estrutura de relações sociais, alguns elementos trocaram de posição. Mas o processo decisivo, de alterar o sistema que exigia a presença de hierarquia e antagonismo, em direção a outro, qualitativamente diferente, organizado de forma horizontal, não se logrou alcançar.
Por isso Zizek afirma que a revolução levada a cabo pelo líder chinês foi certamente negativa, mas de forma alguma foi sintética, ou “superadora”, isto é, não estabeleceu na prática a “negação da negação”. Tal foi a fraqueza central do pensamento e da política de Mao. Faltou-lhe a radicalidade para, uma vez transformada a ordem dentro de certos pressupostos, modificar, em seguida, os próprios pressupostos em que a ordem se assentava. Como explica o filósofo esloveno,
“A verdadeira revolução é a ‘revolução com revolução’, uma revolução que, em seu transcurso, revoluciona seus próprios pressupostos iniciais. Hegel pressentiu essa necessidade quando escreveu: ‘É uma loucura moderna alterar um sistema ético corrupto, sua constituição e legislação, sem mudar a religião, ter uma revolução sem reforma.’ Hegel anunciava, assim, a necessidade de uma Revolução Cultural como condição para o sucesso da revolução social. Isso significa que o problema com as tentativas revolucionárias até agora não é que elas tenham sido ‘demasiado extremadas’, mas que não foram suficientemente radicais, que não questionaram seus próprios pressupostos.” (ibid, 33).
Aqui começamos a chegar ao ponto talvez mais interessante da reflexão do filósofo esloveno. Para ele, como dissemos, há dois momentos no processo revolucionário: o primeiro é o que se dá dentro da ordem; o segundo diz respeito à transformação da ordem mesma. A primeira atitude é a da negação; a segunda é a da negação da negação. A Revolução Chinesa, com todas as transformações sociais, econômicas, culturais e políticas que promoveu, conseguiu varrer com violência um velho mundo que, até então, afirmava-se oprimindo a grande nação oriental. Um ato desse tipo é, sem dúvida, segundo Zizek, a precondição para que outra formação social nova possa nascer. Mas uma segunda etapa, a da “invenção da nova vida”, deve acontecer na sequência. Uma situação em que ocorra “não apenas a construção da nova realidade social na qual nossos sonhos utópicos serão realizados, mas a (re)construção desses próprios sonhos” (ibid, 34.) [grifos nossos].
Entra agora em cena o referencial psicanalítico com o qual Zizek analisa a sociedade e a cultura no contexto do capitalismo. Seguindo uma linha interpretativa desenvolvida anteriormente por intelectuais ligados à chamada Escola de Frankfurt, o filósofo esloveno toma a cultura como uma objetivação que, no âmbito da sociedade, corresponde àquilo que o sonho é no plano da existência psíquica individual: a realização de desejos originados por conflitos desencadeados no pretérito e que continuam a existir, numa instância “inconsciente”, no presente.
II
A cultura seria uma espécie de “sonho coletivo”, no qual se verificam alguns fragmentos de consciência envoltos num grande oceano de inconsciência. Nas sociedades divididas em classes, observamos esse conflito fundamental se expressar, de várias formas, nas obras de arte, na disposição da cidade, na arquitetura, na moda, nos interiores etc. – e certamente nos ideais políticos, que são, algumas vezes, o produto mais ou menos acabado da interpretação dos sonhos coletivos produzidos em sociedade.
Na sociedade de classe vigente, o sonho que muitas vezes a população de oprimidos e infelizes alimenta, ora velada, ora abertamente – e que as teorias políticas tentam dar conta de interpretar, de modo a proporcionar que, uma vez que os sujeitos coletivos estejam conscientes dos seus conflitos, possam vir a superá-los -, é o sonho, justamente, da emancipação do profundamente arraigado conflito de classes vigente. Nesse contexto, a revolução comunista é como se fosse, literalmente falando, a realização de um sonho cultivado coletivamente.
Ora, no século XX assistimos a várias revoluções desse tipo, ainda que cada uma delas tenha tido a sua configuração e o seu desfecho específicos. No caso particular da Revolução Chinesa, o que é que de fato ocorreu para que esse sonho, momentaneamente tangido, se esvaecesse no ar de forma a produzir o retorno do capitalismo, mas, dessa vez, numa configuração muito mais brutal, chegando ao ponto de, conforme Zizek, constituir-se na China um “Estado capitalista ideal”, onde o capital explora o trabalho a seu bel-prazer e o Estado faz o “trabalho sujo” de manter o rígido controle sobre as classes proletárias?
Sigamos o raciocínio do filósofo esloveno. Conforme explicamos acima, em condições de grande opressão, os seres humanos tendem espontaneamente a fantasiar, idealizar, devanear, ansiar por uma realidade diferente, um mundo de redenção, utopia, emancipação, onde as condições do sofrimento vigente estejam definitivamente abolidas. Se isso, quiçá, vier a nos acometer de novo um dia no século XXI – e isso pode estar acontecendo neste exato momento -, talvez uma vez mais venhamos a nos organizar, lutar, reivindicar, aprender, analisar, teorizar, compreender os nossos sonhos mais íntimos de outrora, agir, refazer estratégias, reinvestir contra a ordem opressora até que uma conjuntura surja na qual esta ordem atual comece a ser negada por completo.
Aparecerá então uma situação nova em que poderemos assumir a condição de sujeitos de nossas próprias vidas e passaremos a dispor de meios para a reinvenção de nossa forma de existência coletiva. Com os motivos da opressão assim derrotados, será como se estivéssemos “realizado o sonho” historicamente cultivado de emancipação. Mas quando isso acontecer, recomenda-nos Zizek, devemos ter a mais cuidadosa e refinada atenção. Uma vez “realizado o sonho”, é preciso “encontrar um caminho para começar a imaginar a Utopia que se vai iniciar”.
O filósofo esloveno se serve aqui das palavras de Fredric Jameson para explicar que, assim que dermos o primeiro passo para a construção da Utopia, devemos
“pensar o novo começo do processo utópico como uma espécie de desejar o desejo, aprender a desejar – a invenção do desejo chamado Utopia em primeiro lugar, juntamente com novas regras para fantasiar ou sonhar acordado sobre tal coisa – um conjunto de protocolos narrativos sem precedente em nossas instituições literárias prévias.” (Jameson, apud Zizek, idem, 34) [grifos nossos]
O grande perigo que nos acomete então no momento em que “realizamos o sonho” é não podermos transcendê-lo, isto é, não conseguirmos criar outro novo desejo e outro novo sonho que nos estimule a seguir adiante. Por quê? Porque os desejos e sonhos que criamos em determinadas circunstâncias são a expressão de um conflito estabelecido a partir de certas situações concretas. Esses conflitos são os pressupostos dos quais os sonhos e desejos de emancipação são a expressão. Se nós realizamos o sonho, mas não transformamos radicalmente o conflito primevo – o pressuposto do qual emergiu o sonho -, e que agora se estancou momentaneamente, esse conflito tende a se afirmar de novo.
Por isso, uma vez realizado o sonho, isto é, uma vez suspensa a condição conflitiva que se constituía em pressuposto fundamental do próprio sonho, é preciso negar o próprio pressuposto, o que por sua vez nos dará a possibilidade de elaborar novos tipos de sonhos, de dar à luz novos desejos que nos permitirão, finalmente, deixar o passado para trás. Como explica Zizek:
“A referência à psicanálise aqui é crucial e muito precisa: numa revolução radical, as pessoas não só ‘realizam seus velhos sonhos’ (de emancipação etc.); mais propriamente, elas têm de reinventar seus próprios modos de sonhar. (…) Aí reside a necessidade da Revolução Cultural, muito bem entendida por Mao: como Herbert Marcuse disse em outra maravilhosa fórmula circular da mesma época, a liberdade (das limitações ideológicas, do modo predominante de sonhar) é a condição da libertação, isto é, se apenas mudamos a realidade para realizar nossos sonhos e não mudamos esses próprios sonhos, cedo ou tarde regressamos à velha realidade. Existe uma ‘posição de pressupostos’ hegeliana funcionando aqui: o pesado trabalho de libertação forma retroativamente seu próprio pressuposto.” (ibid, 34)
Portanto, somente modificando os sonhos, os pressupostos dos sonhos e a própria forma de sonhar – no sentido de sonhar “mais alto”, de dar à luz um novo sonho superior -, conseguiremos suplantar a origem dos males que nos afligem. Mao Tśe-Tung compreendeu isso, fato que atesta a sua percepção para a importância de uma revolução cultural em concomitância com a revolução social. Mas não logrou atingir o objetivo de revolucionar os pressupostos que estavam na base da sua ação revolucionária. Transformou uma determinada ordem, mas não a modificou em suas raízes. Ao resultado de todo esse fracasso – a “justiça poética da história”, como diz Zizek – assistimos hoje com o violento e brutal retorno do capitalismo à China.
A contradição de Mao, finalmente, foi a de ter querido “revolucionar” o sistema baseado num conjunto de práticas estruturadas de forma homóloga às do capital. O resultado da não-concretização do evento revolucionário desejado é o retorno do próprio sistema, mas agora não mais como senhor da ordem, da norma e da normalidade e, sim, como “o verdadeiro senhor do desgoverno”, que rompe com todos os padrões, que varia e modifica tudo permanentemente a fim de continuar reproduzindo-se a si mesmo…
Zizek se pergunta, então, sobre o que é que podemos ainda tomar como lição do velho Mao a fim de orientarmos nossas ações políticas atuais, mas desta vez sem cairmos nos equívocos cometidos pelo velho líder chinês:
“Como, então, poderemos revolucionar uma ordem cujo mais genuíno princípio é o constante auto-revolucionamento? Essa, talvez, seja a questão de hoje e esse é o modo segundo o qual deveríamos repetir Mao, reinventando sua mensagem às centenas de milhões de pessoas que sofrem a opressão, uma simples e tocante mensagem de coragem: ‘Não é para temer o que é grande. O grande será derrubado pelo pequeno. O pequeno se tornará grande.’ (…)
‘Não devemos ter medo.’ Não será essa a única atitude correta diante da guerra? ‘Primeiro, somos contra ela; segundo, não a tememos.’ Há definitivamente algo de aterrador nessa posição – no entanto, esse terror nada mais é senão a condição da liberdade.” (ibid, 38) [grifo nosso]
Tais são as lições que Slavoj Zizek tira de Mao e recomenda aos revolucionários do presente.
Referência: ZIZEK, Slavoj. Mao Tsé-Tung, “Senhor do Desgoverno” marxista. in TSÉ-TUNG, Mao. Sobre a prática e a contradição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.