quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A incrível Brigada Revolucionária Plunct Plact Zum!, a que carimbava, rotulava, avaliava e não deixava ir a lugar nenhum


– Não permitimos vacilo quanto à firmeza dos nossos princípios políticos! Nem de nossa fundamentação revolucionária! Nem mesmo sob as piores situações de pressão, adversidades, tortura, nem mesmo perante acirrada artilharia!
Essa era a base de tudo quando, em um dos recônditos rincões do 3º mundo, surgiu, como fruto da síntese de múltiplas circunstâncias, a Brigada Revolucionária Plunct Plact Zum! (BRPPZ!). Nasceu inspirada numa muito peculiar concepção raulseixista-leninista de mundo, mais especificamente na canção que expressava o seu modus operandi político e sua razão existencial de viver: registrar, carimbar, avaliar e rotular qualquer um que quisesse fazer a revolução e explodir pelos ares as estruturas caducas reinantes na sociedade capitalista. Somente com o aval e a bênção dos brilhantes estrategistas da BRPPZ! o intrépido aspirante ao combate contra a ordem vigente podia partir para… Zuuum!, o campo de batalha das classes. Antes disso, nunca.
– Apenas admitimos uma marcha firme e linear em direção ao alvo! Nenhum ziguezaguear! Nenhum recuo! Nem tático, nem estratégico! Nem mesmo por enfraquecimento ou golpe mortal que se tenha levado no peito! Nenhuma escorregada, camaradas, nenhum descuido! Em frente! Em frente! Em frente! Nós somos a Brigada Revolucionária Plunct Plact Zum! – dizia Edgar Borin, sub-chefe da 13ª seção e correspondente internacional da facção francesa da organização (aspirante à IV Internacional).
Era deveras curioso, para o observador atento, constatar as suas passadas largas em direção à revolução. O que dominava, entre os membros da BRPPZ!, era a mais completa e absoluta seriedade. Eram sérios em praticamente tudo: na rua, nas aglomerações estudantis, nos protestos, nos acontecimentos públicos e, principalmente, nas redes sociais – estas, seus locais preferidos de combate.
– A seriedade é o nosso mantra e nosso método, nosso alfa e nosso ômega. Se Karl Marx quisesse que os revolucionários fossem elétricos e espevitados, teria escrito um tratado sobre o riso. Aliás, não há nenhum relato, salvo engano de nossa parte, de que Marx tivesse dado uma risada alguma vez na vida! – assegurou Michel Maffesolips Moreno, jornalista e porta-voz da Brigada. 

Um dos líderes da organização, o militante Armando Badanha, foi entrevistado certa vez e asseverou:
- Pois é, é assim que a coisa funciona: se não pudermos construir, vamos destruir; se não pudermos juntar, vamos dispersar; se não pudermos agregar, vamos desagregar; se não pudermos fundir, vamos quebrar; se não pudermos organizar, vamos desorganizar; se não pudermos somar, vamos dividir; e se a coisa toda estiver andando sem o nosso carimbo de aprovação e sem que nós estejamos na cabeça do movimento, a gente chuta o pau da barraca e manda todo mundo à merda. – disse ele, explicando alguns dos princípios fundamentais da organização.
– A gente já sabe de antemão quando tudo vai dar errado… é porque, quando a gente quer, a gente faz dar errado, sabe? Hehehehehehe – disse Marieta Zambetta, chefe do serviço secreto da Brigada, rindo e esfregando alegremente as mãos.
Donos de teorias altamente sofisticadas, solidamente constituídas, amplamente fundamentadas, irretorquivelmente desenvolvidas e perfeitamente adaptadas às suas formidáveis carrancas, não havia um dos seus membros que não soubesse como chegar à revolução. Pelo contrário: todos – absolutamente todos! – sabiam.
Diretórios e centros acadêmicos, moradias estudantis, instituições públicas e privadas, escolas, universidades, parlamentos, conselhos tutelares, secretarias de assistência jurídica, juizados de pequenas causas, círculos de auto-ajuda, serviços de atendimento psicológico, grupos de oração e até mesmo centros espíritas eram considerados espaços de disputa, visto que em todos eles se podia plantar a sementinha vermelha da revolução.
A consciência da regulamentação ideal e da forma progressista para toda política do governo também era uma das suas características principais. Políticas públicas, aliás, eram suas especialidades. Adoravam discutir tais temas em qualquer local que se apresentasse disponível. A Brigada, nesse domínio, teve a felicidade de ser conduzida, durante muito tempo, por um líder infalível, Roberto Lero, cujas ideias era necessário propagandear sempre, principalmente no que concernia aos novos giros históricos e à filiação em massa de novos membros para a organização. Essas filiações eram muito úteis, pois garantiam vantagem ao posicionamento político do líder quando em votações de plenárias, assembleias e congressos.
– O novo giro histórico exige filiações em massa! – afirmou Lero, em entrevista televisiva. Abaixo a corrupção! – completou, em seguida, enérgico, sendo secundado em coro por meia-dúzia de fiéis correligionários: Abaixo a corrupção!
Seus cursos de formação política eram altamente sofisticados e reconhecidos internacionalmente: Módulo 1 (iniciante, para movimento estudantil): como falar grosso e inibir adversários em público; Módulo 2 (complementar): retórica avançada; Módulo 3 (intermediário): como quebrar militantes de outras organizações; Módulo 4 (nível pro): boatarias, infâmias, tramoias, fofocas, enrolações e intrigas; Módulo 5 (optativo, sem pré-requisito): introdução às redes sociais. Completando esses módulos, o militante se tornava apto a integrar as fileiras de frente, isto é, a vanguarda da BRPPZ!
O triste fim da Brigada Revolucionária Plunct Plact Zum! se deu quando, em determinada ocasião, seus já combalidos membros se reuniram em plenária para discutir e decidir qual o método mais apropriado para quebrar militantes de organizações alheias. Depois de se reunirem por 148 dias seguidos, dormindo mal, comendo pouco e fumando muito, o pequeno amontoado de vinte e cinco militantes acabou por rachar em onze reduzidos grupos, todos com opiniões divergentes sobre todos os assuntos tratados, e, por tal razão, nunca conseguiram descobrir, na realidade, qual seria o método correto de neutralizar, neurotizar e alijar da luta política militantes de organizações concorrentes. Esta foi a história da Brigada Revolucionária Plunct Plact Zum!, aquela que registrava, carimbava, avaliava e não deixava ninguém ir a lugar nenhum.

A escrita como arma revolucionária


O livro O estilo literário de Marx, do venezuelano Ludovico Silva (São Paulo: Expressão Popular, 2012), traz uma série de análises importantes para o conhecimento de elementos até hoje pouco explorados a respeito do autor de O Capital. O traço marcante do estudo está no fato de que Silva toma Marx não apenas como teórico, mas como escritor, isto é, como sujeito que imprime qualidades literárias - artísticas, estéticas - no material escrito que produz, seja ele de caráter filosófico, político ou científico-social.


Em Marx, a palavra escrita não serve apenas para apresentar conceitos, mas, também, fundamentalmente, para provocar efeitos sobre a sensibilidade daqueles que recebem suas mensagens: quer causar espanto, estranheza, comoção, cólera, revolta, excitação. Numa palavra: quer mobilizar e canalizar as energias sensíveis da coletividade oprimida para o projeto da transformação revolucionária do mundo. É por esse motivo que, segundo Silva, o sistema científico do pensador alemão está apoiado, de forma consciente, sobre um rigoroso e muito refinado sistema expressivo.

altTal sistema toma corpo através de um peculiar e inconfundível estilo literário. Silva explica o que isso quer dizer: “Literário porque, assim como a poesia abarca um espaço que vai mais além dos versos e se estende na prática a muitos tipos de linguagem, do mesmo modo a literatura, como tal, como conceito e como prática, ultrapassa as obras de ficção ou imagética e se estende por todo o largo campo da escritura. Ademais, o sistema expressivo de Marx constitui um estilo, um gênio expressivo peculiar, intransferível, com seus módulos verbais característicos, suas constantes analógicas e metafóricas, seu vocabulário, sua economia e seu ritmo prosódico. Um gênio posto intencionalmente a serviço de uma vontade de expressão que não se contenta com a boa consciência de utilizar os termos cientificamente corretos, mas que a acompanha com a consciência literária empenhada em que o correto seja, ainda, expressivo e harmônico, e disposta a conseguir, mediante todos os recursos da linguagem, que a construção lógica da ciência seja, também, a arquitetônica da ciência” (p. 11).

Para corroborar essa tese, Silva sublinha um elemento da formação intelectual de Marx comumente esquecido por muitos de seus seguidores: sua origem no campo das letras. Antes de se tornar experimentado teórico da sociedade capitalista, o pensador alemão dedicou-se de corpo e alma à literatura: estudou línguas clássicas, pesquisou temas estéticos, realizou traduções, escreveu poemas, epigramas, narrativas e até as primeiras cenas de um drama em verso. Não realizou grandes façanhas nesses domínios, é certo, mas soube converter seus fracassos em fonte de criatividade e de vigor expressivo.

O estudo das línguas mortas, o latim e o grego, por exemplo, serviu para dar-lhe uma profunda consciência da essência de alguns dos idiomas vivos pelos quais se expressava: sua constituição íntima, suas possibilidades criadoras, seus recursos composicionais etc. Também foi importante para despertar no filósofo o gosto pela perfeição expressiva na forma escrita, pela “impetuosidade das frases”, como afirma Silva.

A poesia, por sua vez, ajudou-lhe a aprimorar sua prosa, visto que o exercício do verso “obriga ao aprofundamento nas qualidades plásticas e rítmicas do próprio idioma, na prosódia mesma” (p. 29). Nesse contexto, é interessante lembrar a afirmação feita pelo linguista e crítico russo Mikhail Bakhtin de que “é só na poesia que a língua revela todas as suas possibilidades. Ali as exigências que lhe são feitas são as maiores. Todos os seus aspectos são intensificados ao extremo, alcançam seus limites. É como se a poesia espremesse todos os sucos da língua que aqui se supera a si mesma” (1). Se levarmos em consideração esse fato, teremos uma boa ideia do que os exercícios literários foram capazes de proporcionar ao estilo de composição textual de Marx.

É dessa formação intelectual sui generis que vêm os elementos característicos de sua prosa, que Silva, em seu livro, se dedica a enumerar: a arquitetônica da ciência, a dialética da expressão, a grande criatividade metafórica, os espíritos concreto, polêmico irônico de seus escritos, tão necessários para a denúncia e o combate da realidade alienada e alienante do sistema do capital. Daí os peculiaríssimos efeitos que o estilo literário de Marx causa na sensibilidade de seus leitores: a sensação do sangue fervendo nas veias ao se ler as inflamadas páginas do Manifesto Comunista, a impressão do estranhamento que se desprende das memoráveis passagens dos Manuscritos econômico-filosóficos, a indignação e a revolta que brotam das magníficas sentenças que perpassam todo o sistema categorial de O Capital são alguns exemplos do poder evocativo dessa prosa vigorosa e inspirada.

O resultado disso, certamente, é prenhe de consequências políticas. Porque a qualidade estética de um texto, o elemento artístico intrínseco a ele, ao tocar o leitor, provoca uma espécie de curto-circuito em suas vias perceptivas, subverte momentaneamente sua forma ordinária de experimentar o mundo e traz à luz novas maneiras de apreender o real que podem servir de combustível e faísca para futuras ações transformadoras.

A arte, justamente, amplia para o sujeito a capacidade de sentir coisas novas. Sobre isso, escreveu o filósofo brasileiro Leandro Konder: “se não ampliamos o campo daquilo que sentimos (ou que podemos sentir), nossa capacidade intelectual fica prejudicada, nossa racionalidade se deforma. Ou o sensível e o racional se apoiam mutuamente ou ambos sofrem prejuízos” (2). Ou seja, tanto quanto o pensamento, a sensibilidade coletiva deve ser tocada se se quer auxiliar as lutas dos trabalhadores pela emancipação humana.

Marx sabia disso. Tanto que seus livros não visam apenas transmitir o conhecimento resultante de suas incansáveis pesquisas. Querem, também, transformar algo muito sutil existente no interior de seu público leitor: a apatia em tensão crítica, a resignação em ímpeto fervilhante, a passividade em vontade de movimento. Por certo, esta é uma tarefa tão importante quanto a veiculação de conceitos úteis para o combate e a superação da sociedade do capital.

Aqui vale lembrar o psicólogo soviético L. S. Vigotski, que acreditava que a arte exerce uma influência especial sobre a vontade e as paixões. Não para mobilizá-las, de pronto, para a ação, mas para produzir um estado de espírito que tenda para a ação futura. A reação artística é, desse modo, algo predominantemente adiado, “porque entre a sua execução e o seu efeito sempre existe um intervalo demorado”. Conforme assinala o célebre autor: “a arte introduz a ação da paixão, rompe o equilíbrio interno, modifica a vontade em um sentido novo, formula para a mente e revive para o sentimento aquelas emoções, paixões e vícios que sem ela teriam permanecido em estado indefinido e imóvel. (...) A arte é antes uma organização do nosso comportamento visando ao futuro, uma orientação para o futuro, uma exigência que talvez nunca venha a concretizar-se, mas que nos leva a aspirar acima da nossa vida o que está por trás dela” (3).

O elemento estético pertencente a uma determinada elaboração textual ajuda, assim, o leitor a desidentificar-se com o seu mundo ordinário e a identificar-se com algo até então insólito. Abre para ele a possibilidade de se descentrar de sua individualidade e se sentir parte do gênero humano. A criatura solitária, acabrunhada, tímida e hesitante pode ser levada a sentir o que os gigantes são capazes de sentir. Desnecessário dizer o quanto isso tudo é fundamental para um projeto político alternativo de regulação da vida em sociedade.

A tradução da obra de Ludovico Silva, que agora temos em mãos, é bem-vinda por permitir aos leitores brasileiros aprenderem a forma como Marx procurava fazer uso constante dessa premissa.

Notas:
(1)  BAKHTIN, M. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. Em: Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. São Paulo: Ed. Hucitec/UNESP, 1993, p.48.

(2)  KONDER, Leandro. As artes da palavra: elementos para uma poética marxista. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 16.

(3)  VIGOTSKI, L. S. Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1998 p. 315-20, grifo nosso.

Ficha
Título: O estilo literário de Marx
Autor: Ludovico Silva
Tradutor: José Paulo Netto
Editora: Expressão Popular
Ano: 2012
Páginas: 110
Preço: R$ 15,00

O autor: Ludovico Silva (Luis José Silva Michelena) nasceu em 1937 e faleceu em 1988, na cidade de Caracas, Venezuela. Foi escritor, filósofo, ensaísta e poeta. É considerado um dos mais importantes intelectuais venezuelanos do século XX. Sobre ele, escreveu seu tradutor brasileiro José Paulo Netto: “Ele está, para a cultura da esquerda na Venezuela nos anos 1960/1970, como Mariátegui esteve para a peruana nos anos 1920”.