3
Olha com indulgência aqueles que se embriagam;
os teus defeitos não são menores.
Se queres paz e serenidade, lembra-te
da dor de tantos outros, e te julgarás feliz.
4
Que o teu saber não humilhe o teu próximo.
Cuidado, não deixes que a ira te domine.
Se esperas a paz, sorri ao destino que te fere;
não firas ninguém.
5
Busca a felicidade agora, não sabes de amanhã.
Apanha um grande copo cheio de vinho,
senta-te ao luar, e pensa:
Talvez amanhã a lua me procure em vão.
7
Alcorão, o livro supremo, pode ser lido às vezes,
mas ninguém se deleita sempre em suas páginas.
No copo de vinho está gravado um texto de adorável
sabedoria que a boca lê, a cada vez com mais delícia.
13
Não vamos falar agora, dá-me vinho. Nesta noite
a tua boca é a mais linda rosa, e me basta.
Dá-me vinho, e que seja vermelho como os teus lábios;
o meu remorso será leve como os teus cabelos.
18
Não me lembro do dia em que nasci;
não sei em que dia morrerei.
Vem, minha doce amiga, vamos beber desta taça
e esquecer a nossa incurável ignorância.
20
É inútil te afligires por teres pecado;
também é inútil a tua contrição:
além da morte estará o Nada,
ou a Misericórdia.
23
O vasto mundo: um grão de areia no espaço.
A ciência dos homens: palavras. Os povos,
os animais, as flores dos sete climas: sombras.
O profundo resultado da tua meditação: nada.
24
Eu estava com sono e a Sabedoria me disse:
A rosa da felicidade não se abre para quem dorme;
por quê te entregares a esse irmão da morte?
Bebe vinho; tens tantos séculos para dormir...
28
Os sábios mais ilustres caminharam nas trevas da ignorância,
e eram os luminares do seu tempo.
O que fizeram? Balbuciaram algumas frases confusas,
e depois adormeceram, cansados.
37
Quando me falam das delícias que na outra vida
os eleitos irão gozar, respondo:
Confio no vinho, não em promessas;
o som dos tambores só é belo ao longe.
38
Bebe vinho, ele te devolverá a mocidade,
a divina estação das rosas, da vida eterna,
dos amigos sinceros. Bebe, e desfruta
o instante fugidio que é a tua vida.
39
Bebe o teu vinho. Vais dormir muito tempo
debaixo da terra, sem amigos, sem mulheres.
Confio-te um grande segredo:
As tulipas murchas não reflorescem mais.
47
Se em teu coração cultivaste a rosa do amor,
quer tenhas procurado ouvir a voz de Deus,
ou esgotado a taça do prazer,
a tua vida não foi em vão.
51
A vida passa. O que resta de Bagdad e Balk?
A aragem mais leve é fatal à rosa já desabrochada.
Bebe o vinho, e contempla a lua:
lembra-te das civilizações que ela já viu morrer.
53
Mestres e sábios morreram
sem se entenderem sobre o Ser e o Não Ser.
Nós, ignorantes, vamos apanhar as tenras uvas;
que os grandes homens se regalem com as passas.
55
Iremos nos perder na estrada do amor,
e o destino nos pisará, indiferente.
Vem, menina, taça encantada, dá-me de beber
em teus lábios, antes que eu me torne pó.
56
Só de nome conhecemos a felicidade.
O nosso melhor amigo é o vinho;
afaga a única que te é fiel: a ânfora,
cheia do sangue das vinhas.
58
Senta-te e bebe, felicidade que Mahmud não teve.
Escuta os sussuros dos amantes, são os Salmos de Davi.
Não te importes com o passado, não sondes o futuro,
não percas este instante: Eis a paz.
59
Pessoas presunçosas e obtusas inventaram
diferenças entre o corpo e a alma.
Sei apenas que o vinho apaga as angústias
que nos atormentam, e nos devolve a calma.
61
Não temo a morte. Prefiro esse ato inelutável
ao outro que me foi imposto no dia em que nasci.
O que é a vida, afinal? Um bem que me confiaram
sem me consultarem e que entregarei com indiferença.
62
Estou velho, e a paixão que me inspiraste
vai me levar ao túmulo: não cesso de encher a taça.
Esta paixão tem razão contra mim:
o tempo estraga a minha bela rosa.
63
Podes me perseguir, miragem de outra ventura,
podes modular a tua voz, mas só escuto aquela
que já me encantou. Dizem-me: Deus te perdoará.
Recuso o perdão que não pedi.
64
Um pouco de pão, um pouco de água,
a sombra de uma árvore, e o teu olhar;
nenhum sultão é mais feliz do que eu,
e nenhum mendigo é mais triste.
66
Vinho, bálsamo para o meu coração doente,
vinho da cor das rosas, vinho perfumado
para calar a minha dor. Vinho, e o teu alaúde
de cordas de seda, minha amada.
68
Todos pretendem andar pelo Caminho do Saber.
Uns o procuram, outros afirmam tê-lo encontrado.
Um dia uma grande voz dirá: Não há caminho,
nem atalho.
69
Brinda ao resplendor da aurora, e dedica
o vinho vermelho desta taça, em forma de chama,
ou de tulipa, ao sorriso meigo de algum adolescente.
Bebe, e esquece que o punho da dor te prostrará.
70
Vinho! Que palpite em minhas veias,
que inunde a minha cabeça. Silêncio!
Tudo é mentira. Copos! Depressa!
Envelheci muito.
71
Do meu túmulo virá um tal perfume de vinho
que embriagará os que por lá passarem,
e uma tal serenidade vai pairar ali,
que os amantes não quererão se afastar.
73
Alguns amigos me dizem: Não bebas mais Khayyam.
Respondo: Quando bebo, ouço o que me dizem
as rosas, as tulipas, os jasmins;
ouço até o que não me diz a minha amada.
74
Em que pensas? Nos que já morreram? São pó no pó.
Pensas nas virtudes que tiveram? Sim? Deixa-me sorrir.
Toma este copo, vamos beber; ouve sem inquietação
o vasto Silêncio do Universo.
79
Não terás paz na terra, e é tolice acreditar
no repouso eterno. Depois da morte
teu sono será breve: renascerás na erva
que será pisada, ou na flor que murchará.
85
Os meus cabelos estão brancos,
tenho setenta anos de idade.
Agarro agora a felicidade; amanhã,
talvez não me restem forças.
86
Nunca procurei saber onde encontrar
o manto da mentira e do ardil,
mas sempre andei à procura
dos melhores vinhos.
89
Somos os peões deste jogo do xadrez
que Deus trama. Ele nos move, lança-nos
uns contra os outros, nos desloca, e depois
nos recolhe, um a um, à Caixa do Nada.
90
A abóbada celeste se parece a uma taça emborcada;
sob ela, em vão, erram os sábios.
Ama a tua amada como a ânfora ama o copo;
olha, boca a boca, ela lhe dá o seu próprio sangue.
92
Não aprendeste nada com os sábios,
mas o roçar dos lábios de uma mulher em teu peito
pode te revelar a felicidade.
Tens os dias contados. Toma vinho.
93
O vinho dá-te o calor que não tens;
suaviza o jugo do passado e te alivia
das brumas do futuro; inunda-te de luz
e te liberta desta prisão.
96
Um dia pedi a um velho sábio
que me falasse sobre os que já se foram.
Ele disse:
Não voltarão. Eis o que sei.
98
Onde estão os nossos amigos? Já morreram?
Ainda os ouço na taverna...
já se foram? ou estarão embriagados
de tanto terem vivido?
107
O vinho é da cor das rosas;
talvez não seja o sangue das uvas, mas das rosas;
e o azul desta taça talvez seja o céu cristalizado;
e não seria a noite a pálpebra do dia?
120
Rosas, taças, lábios vermelhos:
brinquedos que o Tempo estraga;
estudo, meditação, renúncia:
cinzas que o Tempo espalha.
(Omar Kahyyam - Rubayat)
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
domingo, 29 de agosto de 2010
29 de agosto, 23 horas... Poesia
.
Não sei se é sonho, se realidade,
Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sul se olvida.
É a que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri.
Talvez palmares inexistentes,
Áleas longínquas sem poder ser.
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode ter.
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez.
Mas já sonhada se desvirtua,
Só de pensá-la cansou pensar,
Sob os palmares, à luz da lua,
Sente-se o frio de haver luar.
Ah, nessa terra também, também
O mal não cessa, não dura o bem.
Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.
(Fernando Pessoa)
.
Não sei se é sonho, se realidade,
Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sul se olvida.
É a que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri.
Talvez palmares inexistentes,
Áleas longínquas sem poder ser.
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode ter.
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez.
Mas já sonhada se desvirtua,
Só de pensá-la cansou pensar,
Sob os palmares, à luz da lua,
Sente-se o frio de haver luar.
Ah, nessa terra também, também
O mal não cessa, não dura o bem.
Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.
(Fernando Pessoa)
.
quinta-feira, 26 de agosto de 2010
27 de agosto, madrugada... Fernando Pessoa
Ah, quanta vez, na hora suave
Em que me esqueço,
Vejo passar um vôo de ave
E me entristeço!
Por que é ligeiro, leve, certo
No ar de amavio?
Por que vai sob o céu aberto
Sem um desvio?
Por que ter asas simboliza
A liberdade
Que a vida nega e a alma precisa?
Sei que me invade
Um horror de me ter que cobre
Como uma cheia
Meu coração, e entorna sobre
Minh'alma alheia
Um desejo, não de ser ave,
Mas de poder
Ter não sei quê do vôo suave
Dentro em meu ser.
(Fernando Pessoa)
Em que me esqueço,
Vejo passar um vôo de ave
E me entristeço!
Por que é ligeiro, leve, certo
No ar de amavio?
Por que vai sob o céu aberto
Sem um desvio?
Por que ter asas simboliza
A liberdade
Que a vida nega e a alma precisa?
Sei que me invade
Um horror de me ter que cobre
Como uma cheia
Meu coração, e entorna sobre
Minh'alma alheia
Um desejo, não de ser ave,
Mas de poder
Ter não sei quê do vôo suave
Dentro em meu ser.
(Fernando Pessoa)
quarta-feira, 18 de agosto de 2010
18 de agosto, raiando o dia...
Canción de amor
Amor, deja que me vaya,
déjame morir, amor.
Tú eres el mar y la playa.
Amor.
Amor, déjame la vida,
no dejes que muera, amor.
Tú eres mi luz escondida.
Amor.
Amor, déjame quererte.
Abre las fuentes, amor.
Mis labios quieren beberte.
Amor.
Amor, está anocheciendo.
Duermen las flores, amor,
y tú estás amaneciendo.
Amor.
(Rafael Alberti)
Amor, deja que me vaya,
déjame morir, amor.
Tú eres el mar y la playa.
Amor.
Amor, déjame la vida,
no dejes que muera, amor.
Tú eres mi luz escondida.
Amor.
Amor, déjame quererte.
Abre las fuentes, amor.
Mis labios quieren beberte.
Amor.
Amor, está anocheciendo.
Duermen las flores, amor,
y tú estás amaneciendo.
Amor.
(Rafael Alberti)
quinta-feira, 12 de agosto de 2010
13 de agosto, madrugada... Liberdade!
.
"O prêmio Darwin ao ato mais estúpido de 2001 foi conferido postumamente a uma pobre mulher do interior da Romênia que acordou no meio do seu próprio cortejo fúnebre; depois de sair do caixão e de perceber o que estava acontecendo, correu às cegas, apavorada, foi atropelada por um caminhão numa estrada próxima e morreu na hora... Não é esse o maior exemplo do que chamamos de destino? A questão da liberdade, em seu aspecto mais radical, é a questão de como se pode romper esse círculo fechado do destino."
Slavoj Zizek (A visão em paralaxe, p. 279)
"Em seu aspecto mais elementar, a liberdade não é a liberdade de fazer o que se quer (isto é, de seguir nossas tendências sem nenhuma restrição imposta de fora), mas fazer o que não se quer, frustrar a realização 'espontânea' de um ímpeto. Esse é o vínculo entre a liberdade e a 'pulsão de morte' freudiana, que é também a pulsão de sabotar a tendência ao prazer."
Slavoj Zizek (A visão em paralaxe, p. 272-3)
"A liberdade não é um estado neutro e bem-aventurado de harmonia e equilíbrio, mas o próprio ato violento que perturba esse equilíbrio."
Slavoj Zizek (A visão em paralaxe, p. 373)
"O prêmio Darwin ao ato mais estúpido de 2001 foi conferido postumamente a uma pobre mulher do interior da Romênia que acordou no meio do seu próprio cortejo fúnebre; depois de sair do caixão e de perceber o que estava acontecendo, correu às cegas, apavorada, foi atropelada por um caminhão numa estrada próxima e morreu na hora... Não é esse o maior exemplo do que chamamos de destino? A questão da liberdade, em seu aspecto mais radical, é a questão de como se pode romper esse círculo fechado do destino."
Slavoj Zizek (A visão em paralaxe, p. 279)
"Em seu aspecto mais elementar, a liberdade não é a liberdade de fazer o que se quer (isto é, de seguir nossas tendências sem nenhuma restrição imposta de fora), mas fazer o que não se quer, frustrar a realização 'espontânea' de um ímpeto. Esse é o vínculo entre a liberdade e a 'pulsão de morte' freudiana, que é também a pulsão de sabotar a tendência ao prazer."
Slavoj Zizek (A visão em paralaxe, p. 272-3)
"A liberdade não é um estado neutro e bem-aventurado de harmonia e equilíbrio, mas o próprio ato violento que perturba esse equilíbrio."
Slavoj Zizek (A visão em paralaxe, p. 373)
terça-feira, 3 de agosto de 2010
3 de agosto, 23 horas... mais uma noite na companhia de Walt Whitman
“...Já percebi que estar junto de quem gosto me basta,
Ficar na companhia dos outros num fim de tarde me basta,
Estar cercado por suas carnes belas curiosas gargalhantes e sem fôlego me basta,
Passar no meio deles... tocar qualquer um... pousar de leve meu braço ao redor do pescoço dele ou dela por um momento... o que é isso?
Não peço delícia melhor... mergulho nisso como num mar.
Tem alguma coisa em ficar perto de homens e mulheres e no olhar e no contato e nos seus cheiros que satisfazem a alma,
Todas as coisas satisfazem a alma, mas essas sim satisfazem a alma...”
(Walt Whitman)
Ficar na companhia dos outros num fim de tarde me basta,
Estar cercado por suas carnes belas curiosas gargalhantes e sem fôlego me basta,
Passar no meio deles... tocar qualquer um... pousar de leve meu braço ao redor do pescoço dele ou dela por um momento... o que é isso?
Não peço delícia melhor... mergulho nisso como num mar.
Tem alguma coisa em ficar perto de homens e mulheres e no olhar e no contato e nos seus cheiros que satisfazem a alma,
Todas as coisas satisfazem a alma, mas essas sim satisfazem a alma...”
(Walt Whitman)
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