quinta-feira, 1 de abril de 2010

A medida do verdadeiro amor é “Podes insultar o outro” - Entrevista com Slavoj Zizek

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Muitas pessoas acreditam numa noção de amor afixada a um certo tipo de comportamento que se convencionou chamar de “politicamente correto”. Partindo disso, estabelecem um padrão de valores por meio do qual julgam o seu comportamento e o dos outros, condenando ou aprovando toda conduta que se distancie ou aproxime de tal noção.

Mas e se o amor autêntico não tiver nada que ver com o politicamente correto? E se o afeto verdadeiro for uma coisa mais próxima de algo que desestabilize, que promova um certo choque, que apavore mesmo, que quebre com um determinado tipo de estrutura de sensibilidade, que rompa a etiqueta? Por exemplo: um insulto, uma brincadeira grosseira, uma piada suja e cabeluda. Será possível isto, o verdadeiro amor se constituir em algo de certa forma violento? “Se há verdadeiro amor, pode-se dizer coisas horríveis, e tudo continua bem”, diz o filósofo esloveno Slavoj Zizek.

Mais uma postagem para divulgar a obra deste pensador que é considerado um dos mais importantes teóricos marxistas da cultura, da subjetividade e da política em nossos dias. Na entrevista, Zizek aborda temas como virtualização e digitalização da vida, subjetividade contemporânea, pós-política, terrorismo, multiculturalismo, tolerância, racismo e, é claro, o “politicamente correto” e o amor.

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A medida do amor verdadeiro é: "Podes insultar o outro" - Entrevista com Slavoj Zizek

Pergunta: O 11 de setembro lançou nova luz acerca do seu diagnóstico sobre o que está ocorrendo no mundo?

Slavoj Zizek: Uma das frases que ouvimos repetir-se sem parar nas últimas semanas é a de que nada voltará a ser igual depois do 11 de setembro. Me pergunto se há de fato uma mudança tão substancial. Há, por certo, mudança no nível de percepção ou publicidade, mas não acredito que possamos falar de uma ruptura fundamental. Se confirmaram atitudes e medos pré-existentes, e agora ocorreu realmente o que a mídia nos dizia sobre o terrorismo.

Em minha obra, coloco uma forte ênfase no que habitualmente se chama virtualização ou digitalização do nosso meio ambiente. Sabemos que 60% da população do planeta nunca fez sequer uma única chamada telefônica na vida, mas há cerca de 30% de nós que vive num universo digitalizado, construído e manipulado artificialmente, que se distingue de modo crescente dos meios naturais ou tradicionais. É como se em todos os níveis vivêssemos cada vez mais uma vida desprovida de substância. Se consome cerveja sem álcool, carne sem gordura, café sem cafeína, e, efetivamente, sexo virtual... sem sexo.

A realidade virtual, para mim, representa o clímax deste processo: há agora realidade sem realidade. Ou uma realidade absolutamente regulada. Mas há uma faceta a mais. Ao longo de todo o século XX, vejo uma tendência em sentido contrário àquilo para o qual meu bom amigo, o filósofo Alain Badiou, inventou um nome muito preciso: “la passion du réel”, a paixão do real. Isto é, dado precisamente que o universo em que vivemos é um universo de convenções mortas e artificiais, a única experiência autêntica deve ser algo extremamente violento, uma experiência destroçadora. E a sentimos, então, de alguma maneira, como uma volta à vida real.

P: Seria isso o que estamos vendo agora?

SZ: Creio que pode ser isso o que tenha definido o século XX, um século que começou na verdade com a Primeira Guerra Mundial. Todos recordamos os escritos de Ernst Jünger, onde se exalta a experiência do combate frente a frente, e se lhe define como a mais autêntica. Ou, no nível do sexo, o filme arquetípico do século XX seria O império dos sentidos, de Nagisa Oshima, onde a idéia é de que não se é verdadeiramente radical se não se vai até o fim em um encontro sexual, se não se tortura um ao outro até que se chegue quase que praticamente à morte. Deve haver extrema violência para que o encontro seja autêntico.

Outra figura emblemática nesse sentido seria o assim chamado “cutter”, um fenômeno patológico muito difundido nos Estados Unidos. Deve haver em torno de dois milhões de pessoas – em sua maioria mulheres, mas também homens – que se cortam com navalhas. Por quê? Não tem nada que ver com masoquismo ou impulsos suicidas. É simplesmente porque não se sentem pessoas reais, de modo que a idéia básica é a de que somente através da dor, e quando se sente a tibieza do sangue, é que é possível voltar a conectar-se. Me parece que esta tensão é o pano de fundo contra o qual se pode apreciar o efeito daquele ato que falamos.

P: Isso tem relação com as suas observações sobre a morte da subjetividade, feitas em The Ticklish Subject: The Absent Centre of Political Ontology? Ali se afirma que o problema é aquilo que você chama de “forclusão”: a articulação do sujeito é forcluída pela evolução da sociedade nos últimos anos.

SZ: O ponto de partida de meu livro sobre o sujeito é que, mesmo que se encontrem em nítida oposição umas em relação às outras, quase todas as orientações filosóficas atuais concordam em um tipo de posição anti-subjetivista básica. Por exemplo, Jürgen Habermas e Jacques Derrida estariam ambos de acordo a respeito do fato de que o sujeito cartesiano deve ser desconstruído, ou, no caso de Habermas, introduzido em uma dialética subjetiva mais ampla. Cognitivistas, hegelianos... todos concordam nisto.

Sinto-me tentado a dizer que devemos retornar ao sujeito, ainda que não a um sujeito puramente racional à maneira cartesiana. Minha idéia é de que o sujeito é inerentemente político, no sentido em que “sujeito”, para mim, denota uma partícula de liberdade, que já não se enraíza por certo em alguma substância firme, e sim que se encontra em uma situação aberta. Não é possível, hoje em dia, seguir aplicando simplesmente as velhas regras. Enfrentamos paradoxos que não nos oferecem saídas imediatas. Neste sentido, a subjetividade é política.

P: Mas este tipo de subjetividade política parece ter desaparecido. Em seus livros você fala de um mundo pós-político.

SZ: Quando digo que vivemos em um mundo pós-político, me refiro a uma impressão ideológica errônea. Na realidade, não vivemos em um mundo assim, mas o universo existente se apresenta como pós-político no sentido de que há um tipo de pacto social básico, segundo o qual já não se percebe as decisões elementares como decisões políticas, e não se as discute como tais. Se converteram em simples decisões de gesto e de administração. E os conflitos restantes são em sua maioria conflitos entre diferentes culturas. Temos a forma presente de capitalismo global, mais algum tipo de democracia tolerante como o último expoente dessa idéia. E, paradoxalmente, apenas muito poucas pessoas estão preparadas para questionar este mundo.

P: O que há de ruim nisso?

SZ: Este mundo pós-político parece conservar todavia a tensão entre o que usualmente chamamos liberalismo tolerante e multiculturalismo. Para mim – e isto apesar de que nunca gostei de Nietzsche – a velha oposição nietzscheana entre niilismo ativo e passivo é a definição que mais se adapta a este estado de coisas. Niilismo ativo, no sentido de não querer nada por si mesmo, é a auto-destruição ativa, que seria precisamente a paixão pelo real, a idéia de que, para viver completa e autenticamente, a pessoa deve se comprometer com a auto-destruição. Por outro lado, está o niilismo passivo, o que Nietzsche chama de “o último homem”, que vive uma vida estúpida e autocomplacente, sem grandes paixões.

O problema com um universo pós-político é que temos estes dois aspectos confrontados em um tipo de dialética mortal. Me parece que para romper o círculo vicioso é preciso reinventar a subjetividade.

P: Você afirma também que as elites em nosso mundo ocidental estão perdendo os estribos, que querem abandonar velhos conceitos como humanismo ou subjetividade. Contra isso, você defende que é importante levar em consideração tudo aquilo que há de antigo e que pode ser conservado.

SZ: Evidentemente, não sou contra aquilo que é novo. De fato, me sinto quase que tentado a repetir o que dizia Virgínia Woolf. Creio que foi em 1914 que ela afirmou que era como se a eterna natureza humana havia se transformado. Ser humano não significa mais a mesma coisa. Não deveríamos, por exemplo, subestimar o impacto social intersubjetivo do ciberespaço. O que estamos presenciando hoje é uma redefinição radical do que significa o conceito de ser humano.

Na internet, por exemplo, ocorrem fenômenos estranhos. Há sites chamados “cam” onde a pessoa expõe seus segredos mais íntimos, no sentido mais vulgar, a um público anônimo. Existem sites onde – inclusive eu, com meus gostos decadentes, sofri um choque ao me inteirar disto – a pessoa põe uma câmera de vídeo no banheiro, de modo que se possa vê-la defecar. É uma situação totalmente nova. Não é privado e tampouco é público. Não é o velho gesto exibicionista.

De qualquer forma, está acontecendo algo radical, e há uma certa quantidade de novos termos propostos para descrever essa novidade. O mais comumente usado é “mudança de paradigma”, querendo significar que vivemos em uma época de paradigmas mutantes. Assim, os cultores da New Age nos dizem que não temos mais um individualismo cartesiano, mecanicista, senão uma nova mente universal. Em sociologia, os teóricos da segunda modernidade dizem coisas similares. E os teóricos da psicanálise dizem que o complexo de Édipo já não vigora mais, e sim que estamos numa era de perversão generalizada.

Não penso que devamos nos aferrar àquilo que é velho, mas estas respostas são errôneas e não registram verdadeiramente a quebra que está se estabelecendo. Se julgamos o que está ocorrendo hoje segundo alguns padrões mais antigos, podemos perceber o abismo do novo que emerge.

Aqui gostaria de referir-me a Pascal, cujo problema também era a confrontação com a modernidade e a ciência moderna. Sua dificuldade era que ele queria seguir sendo um cristão velho e ortodoxo nesta nova era, moderna. É interessante que seus resultados sejam muito mais radicais e interessantes para nós, hoje, que os resultados dos superficiais filósofos liberais ingleses, que se limitavam simplesmente a aceitar a modernidade.

Percebe-se o mesmo na história do cinema, se analisarmos a época em que nele aparece o som. Bem, se poderia dizer: “Qual é o problema? Adicionando o som à imagem simplesmente atingimos uma forma de reprodução mais realista acerca da realidade.” Mas isso não é de modo algum correto. É interessante notar que os diretores que foram mais sensíveis ao que a introdução do som representava realmente foram, geralmente, os conservadores, os que o olhavam com ceticismo: Charlie Chaplin (até certo ponto) e Fritz Lang. O testamento do Dr. Mabuse, de Lang, apresentava de modo maravilhoso esta dimensão espectral, fantasmal, da voz, mostrando que a voz não é uma simples qualidade secundária de um corpo. O que não é mais que outro exemplo de como um conservador, como se estivesse temeroso do novo meio, possui uma compreensão muito mais profunda de seu inquietante potencial de radicalidade.

O mesmo se aplica hoje. Há pessoas que dizem: “Qual é o problema? Mergulhamos no mundo digital, na internet, ou no que quer que seja.” Não percebem realmente o que está ocorrendo.

P: Por que então as pessoas declaram o início de uma nova era a cada cinco minutos?

SZ: Precisamente, se trata de um desejo desesperado de evitar o trauma gerado pelo novo. Um profundo gesto conservador. Os verdadeiros conservadores de hoje são os seguidores dos novos paradigmas. Tratam assim de, desesperadamente, evitar o enfrentamento com aquilo que realmente pode mudar.

Deixem-me voltar ao meu exemplo. Em O grande ditador, de Chaplin, Hitler é satirizado por meio do personagem Hinkel. A voz é percebida como algo obsceno. Há uma cena maravilhosa na qual Hinkel profere um grande discurso composto somente por palavras obscenas, sem sentido. Somente de vez em quando reconhecemos alguma palavra vulgar alemã como “Wienerschnitzel” ou “Kartoffelstrudel”. Se tratava de uma genial intuição: de como a voz é um tipo de fantasma espectral. Isto se revelou aos conservadores, que eram sensíveis à ruptura do novo.

De fato, todas as grandes rupturas ocorreram dessa maneira. Nietzsche era, neste sentido, um conservador, e creio poder dizer que também Marx o era. Marx sempre sublinhava que podemos aprender mais com os conservadores inteligentes do que com os simples liberais. Hoje, mais do que nunca, devemos manter-nos nesta atitude. Quando algo surpreende, choca, não se pode simplesmente aceitá-lo. Não se deve dizer meramente: “Tudo bem, joguemos os jogos digitais.” Não deveríamos nos esquecer de nossa capacidade real de sermos surpreendidos. Creio que o perigo maior de nosso tempo é a atitude de meramente deixar-se levar.

P: Voltemos a algumas das coisas que nos surpreenderam ultimamente. Num artigo recente, você postula a idéia de que os terroristas são um espelho de nossa civilização. Não estão à parte, e sim refletem nosso mundo ocidental. Poderia explicar-nos um pouco mais?

SZ: Se trata, evidentemente, de minha resposta à tese popular de Samuel P. Huntington e outros, que falam de algo como um “choque de civilizações”. Não compartilho essa tese, e isto por uma série de razões.

O racismo atual é precisamente este racismo da diferença cultural. Já não se diz: “Sou mais do que você.” Diz-se: “Eu fico com a minha cultura, você pode ficar com a sua.” Hoje, todos os direitistas dizem isto. De fato, podem ser muito pós-modernos. Reconhecem que não há uma tradição natural, que toda cultura é uma criação artificial. Na França, por exemplo, temos a direita neo-fascista, que se refere aos desconstrucionistas dizendo: “Bem, a lição do desconstrucionismo contra o universalismo é a de que só existem identidades particulares. Assim, se os negros podem ter a sua cultura, por que não poderíamos ter a nossa?”

Deveríamos também considerar a primeira reação da “maioria moral” norte-americana, especialmente Jerry Falwell e Pat Robertson, diante dos ataques de 11 de setembro. Pat Robertson é algo excêntrico, mas Jerry Falwell é uma figura popular, que apoiou Reagan e é parte do mainstream, não um tipo raro, portanto. Pois bem, sua reação foi a mesma que a dos árabes, ainda que tenha se retratado alguns dias depois. Falwell disse que o ataque ao World Trade Center era um sinal de Deus, que já não protegia mais aos Estados Unidos porque os Estados Unidos haviam escolhido um caminho de maldade, homossexualidade e promiscuidade.

De acordo com o FBI, há atualmente pelo menos dois milhões de direitistas da assim chamada “ala radical” nos Estados Unidos. Alguns são muito violentos, matam médicos que fazem abortos, para não mencionar o atentado de Oklahoma. Isto, para mim, mostra que a mesma atitude violenta, anti-liberal, floresce em nossa própria civilização. Vejo isto como uma prova de que o terrorismo é um aspecto de nosso tempo: não podemos ligá-lo com uma civilização particular.

E a respeito do Islã, deveríamos ler história. De fato, me parece que é muito interessante observarmos o caso da antiga Iugoslávia. Porque Sarajevo e a Bósnia foram o centro de um violento conflito? Porque era a república etnicamente mais heterogênea da ex-Iugoslávia. Por quê? Porque foi dominada mais tempo pelos muçulmanos, e estes foram historicamente mais tolerantes, sem nenhuma dúvida. Nós, os eslovenos, e também os croatas, ambos católicos, os expulsamos há vários séculos.

Isto prova que não há nada inerentemente intolerante no Islã. Devemos nos questionar então por que este aspecto terrorista do Islã surge precisamente hoje. A tensão entre tolerância e violência fundamentalista se encontra no interior de uma civilização.

Outro exemplo: na rede CNN vimos o presidente Bush lendo uma carta de uma menina de sete anos, filha de um piloto que agora voa sobre o Afeganistão. Na carta diz que ela ama a seu pai, mas se seu país necessita que ele morra, ela está disposta a perdê-lo. O presidente Bush descreveu isto como patriotismo norte-americano. Agora, façamos um simples exercício mental: imaginemos uma menina afegã dizendo isso. Diríamos de imediato: “Que cinismo! Que fundamentalismo! Que manipulação infantil!” De modo que já há algo em nossa percepção. Mas o que nos ofende vindo dos outros, também nós o fazemos de certa maneira.

P: Multiculturalismo e fundamentalismo podem então ser as duas faces da mesma moeda?

SZ: Não tenho nada contra a tolerância. Mas quando se “compra” esta tolerância multiculturalista, outras coisas vêm junto com ela. Não é sintomático que o multiculturalismo ecloda precisamente no mesmo momento histórico em que desaparecem do espaço político os últimos rastros da classe proletária? Para muitos antigos esquerdistas, este multiculturalismo é uma espécie de sucedâneo da política proletária. Dizem que nem sequer sabemos se existe ainda a classe trabalhadora, para não falar da exploração de uns pelos outros.

Quiçá não tenha nada de errado nesse tipo de tolerância. Mas há o perigo de que aspectos da exploração econômica se convertam em problemas de tolerância cultural. E aí só se precisa de mais um passo, o que dá Julia Kristeva, em seu ensaio Etrangers à nous mêmes, ao dizer que não podemos tolerar aos outros porque não podemos tolerar a alteridade que existe dentro de nós mesmos. Isso é o que eu chamo de um crasso reducionismo cultural pseudo-psicanalítico.

Não é triste e trágico que o o único movimento político relativamente forte, não marginal, que dialoga efetivamente com a classe trabalhadora, esteja constituído por populistas de direita? São os únicos. Jean-Marie Le Pen, na França, por exemplo. Me constrangeu vê-lo há três anos num congresso do Fort National. Fez subir ao palanque um negro francês, um argelino e um judeu. Abraçou-os e disse: “Não são menos franceses que eu. Meu único inimigo são as empresas internacionais cosmopolitas que negligenciam os interesses da França.” Este é o preço que pagamos: somente a direita fala sobre a exploração econômica.

A outra coisa que me parece ruim na tolerância multiculturalista é a sua habitual hipocrisia, no sentido de que o outro que se tolera já é um outro reduzido. O outro está bem sempre quando se trate somente de uma questão de alimento, cultura, danças. E a extirpação do clitóris? Tenho amigos que dizem: “Devemos respeitar aos indígenas?” Perfeito. Mas que atitude tomar diante do antigo costume segundo o qual, quando um homem morre, sua mulher deve ser queimada junto com ele? Respeitamos isso? Aqui temos um problema.

E um problema ainda mais importante é que a dita noção de tolerância mascara efetivamente o seu oposto, a intolerância. É um tema recorrente em meus livros o fato de que, do ponto de vista liberal, a percepção básica de outro ser humano é sempre como a de algo que pode, de algum modo, prejudicar-nos.

P: Você se refere ao que chamamos de cultura da vítima?

SZ: O discurso da vitimização hoje é quase que o discurso dominante. Se pode ser vítima do meio ambiente, do cigarro, do assédio sexual. Encontro algo triste nessa redução do sujeito à vítima: funciona aqui uma noção extremamente narcisista da personalidade, e que é, de fato, intolerante, na medida em que implica que já não podemos tolerar encontros violentos com outros... e esses encontros são sempre violentos.

Detenhamos-nos por um instante na questão do assédio sexual. Me oponho a ele, é claro, mas sejamos francos. Imaginemos que sofro um impulso passional, que me apaixono por outro ser humano e declaro meu amor, minha paixão, por ele ou ela. Sempre há nisto algo de perturbador, violento. Isto pode até parecer uma piada, mas não é: não se pode realizar um jogo de sedução erótica de modo politicamente correto. Há um momento de violência quando se diz: “Te desejo, te amo”. De nenhuma maneira é possível eliminar completamente este aspecto violento. Creio que o temor ao assédio sexual inclui este aspecto, o temor de um encontro demasiado aberto, demasiado violento, com outro ser humano.

Outra coisa que me aborrece no multiculturalismo é quando me perguntam: “Como pode estar tão seguro de não ser racista?” Minha resposta é que existe apenas uma maneira de o saber: quando se pode trocar insultos, brincadeiras grosseiras, piadas sujas, com um membro de uma cultura diferente, e ambos sabemos que não há por trás disso uma intenção racista. Se, ao contrário, fazemos o jogo politicamente correto, “Oh, como te respeito, que interessante são os teus costumes...”, é racismo invertido, e é repugnante.

O exército iugoslavo era uma mescla de nacionalidades. Como fazíamos amizade com os albaneses, por exemplo? Quando começávamos a intercambiar obscenidades, insinuações sexuais, piadas. Esta é a razão pela qual o respeito politicamente correto não é mais que – para usar as palavras de Freud - “zielgehemmt” [“de meta inibida” ou “desviada do seu fim”]

Acredito que há uma pedra de toque do verdadeiro amor: se pode insultar ao outro. Como nessa horrível comédia alemã, um filme de 1943, em que Marika Röck trata seu prometido de um modo brutal. Seu noivo é uma pessoa rica e importante. O pai de Marika pergunta a ela porque o trata assim: Ela responde: “É porque o amo. Posso fazer com ele o que quiser.” Assim são as coisas. Se há verdadeiro amor, pode-se dizer coisas horríveis, e tudo continua bem.

Quando o multiculturalismo nos pede respeito pelos outros, não posso deixar de pensar que isto se aproxima perigosamente do modo com que tratamos os nossos filhos: a idéia de que deveríamos respeitá-los, ainda quando saibamos que aquilo em que acreditam não é certo. “Não deveríamos destruir suas ilusões.” Não, creio que os outros não merecem que os tratemos como crianças.

P: Em seu livro sobre o sujeito, você fala de um “verdadeiro universalismo”, que se oporia a este falso sentido de harmonia social. O que queria dizer com isso?

SZ: Aqui devo refletir acerca de uma uma simples pergunta habermasiana: como podemos fundar a universalidade em nossa experiência? Naturalmente, não aceito este jogo pós-moderno segundo o qual todos vivemos em um tipo de universo particular só nosso. Acredito que há uma universalidade. Mas não uma universalidade a priori de regras fundamentais ou noções universais. A única verdadeira universalidade a que temos acesso é a universalidade política, que não equivale a certo sentido idealista abstrato, senão a uma solidariedade na luta.

Se estamos comprometidos na mesma luta, se descobrimos que – e este é, para mim, o autêntico momento da solidariedade – feministas e ecologistas, ou feministas e proletários, se todos temos de repente esta mesma revelação: “Oh Deus, sim! Nossa luta era em última instância a mesma!”, esta universalidade política seria a única autêntica universalidade. E isto, é claro, é o que falta hoje, porque hoje a política não é mais que uma negociação de compromissos entre diferentes posições.

P: O pós-político subverte essa liberdade de que se vem falando tanto nas últimas semanas? É isto o que você quer dizer?

SZ: O que afirmo é que o que hoje nos vendem como liberdade é algo que está esvaziado justamente de sua mais radical dimensão de liberdade e democracia. Em outras palavras, a crença de que as decisões básicas a respeito das questões sociais se discutem ou são resolvidas envolvendo a maior quantidade possível de pessoas, uma maioria. Neste sentido, não temos hoje uma experiência real de liberdade. Nossas liberdades se reduzem crescentemente à liberdade de escolher nosso estilo de vida. Até certo ponto se pode escolher inclusive a identidade étnica.

Mas este novo mundo de liberdade descrito por pessoas como Ulrich Beck, que diz que tudo é assunto de negociação reflexiva, de escolha, pode incluir uma nova não-liberdade. Meu exemplo favorito é este (e aqui temos ideologia em estado quimicamente puro): sabemos que hoje é muito difícil, em cada vez mais profissões, conseguir estabilidade no trabalho. Acadêmicos ou jornalistas, por exemplo, assinam contratos de dois ou três anos, que a seguir devem renegociar. Evidentemente, a maioria de nós sente isto como algo traumático, perturbador, com o qual nunca se pode estar seguro. Mas então vem o ideólogo pós-moderno e diz: “Bem, mas esta é a tua nova liberdade... Tu podes te reinventar a cada dois anos!”

O problema, para mim, é o modo com o qual se oculta a falta de liberdade, a maneira como a liberdade é mascarada precisamente por meio daquilo que nos apresentam como novas liberdades. Me parece que a explosão dessas novas liberdades, que caem no domínio do que Michel Foucault chamou de “cuidado de si”, implica maior falta de liberdade social.

Vinte ou trinta anos atrás, ao contrário, havia a discussão sobre se o futuro seria fascista, socialista, comunista ou capitalista. Hoje ninguém se preocupa em discutir isso. Estas escolhas sociais fundamentais já não são percebidas como matéria de decisão. Um certo domínio de questões radicalmente sociais foi simplesmente despolitizado.

Eu acho muito triste que, precisamente numa época em que se desenvolvem mudanças enormes, em que se transformam profundamente as coordenadas sociais, não sintamos que tudo isto seja algo sobre o qual podemos decidir livremente.

Fonte: http://www.palalbedrio.com.ar/externos/zizek2.htm

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