sexta-feira, 16 de julho de 2010

Teoria política para o tempo presente

Em defesa de uma luta emancipadora coerente e radical: István Mészáros e a atualidade da ofensiva socialista


É bastante conhecido o mote marxiano - lançado em 1844, na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel - de que somente uma postura radical pode emancipar o homem da sujeição às construções históricas que lhe colocam na condição de ser “humilhado, escravizado, abandonado, desprezível”. Ora, na visão de Marx, ser radical é ir à raiz dos problemas. No caso dos seres humanos, as raízes das suas mazelas estão, justamente, na sua própria atividade social, nas relações que estabelecem entre si e na forma de intercâmbio que mantêm com a natureza. Ocorre que, em dado momento, por razões específicas, um determinado conjunto de relações e atividades se autonomiza parcialmente do controle consciente de seus criadores e se volta contra eles, dominando-os de uma maneira alienada e fetichista. Para combater esse estado de coisas - a “força material” que oprime na prática - é necessária – e aqui torna-se perfeitamente claro o significado da proposta revolucionária do filósofo alemão – a formação de uma outra força, também material, também prática, que seja capaz assim de se lhe contrapor radicalmente. Em nossos dias, um dos teóricos que com maestria e lucidez retoma a recomendação de radicalidade feita por Marx é o filósofo húngaro István Mészáros.

O que é que deve ser a práxis revolucionária no contexto do século XXI? Pelo quê e como devemos lutar? Quais princípios devem orientar a luta pela emancipação humana em nosso tempo histórico? Quais coordenadas devem balizar nossas ações políticas? Em A atualidade histórica da ofensiva socialista – uma alternativa ao sistema parlamentar,(1) Mészáros nos proporciona valiosos esclarecimentos a esse respeito. Trata-se de uma defesa intransigente e sem concessões da tese de que os socialistas e os trabalhadores só podem ter sucesso, no seu intuito de superar a ordem do capital, se se constituírem fundamentalmente como movimento extraparlamentar imbuído do objetivo precípuo de retomar conscientemente as rédeas dos processos que regulam o metabolismo social humano.(2) Qual a base dessa idéia?

O filósofo inicia seu ensaio definindo aquilo que chama de caráter alienado da política institucional em nossas sociedades, isto é, o divórcio radical que existe entre o Parlamento e as grandes massas, e a conseqüente impossibilidade – fruto de tal divisão - de que estas se associem livre e autonomamente, e decidam por si mesmas acerca dos rumos de sua atividade laboral.

A política tradicional, aquela que se circunscreve ao âmbito da instituição parlamentar, possui limites muitíssimo estreitos. Mészáros explica que decretos legislativos ou reformas políticas de qualquer tipo não podem proporcionar aos trabalhadores aquilo que é essencial: a capacidade de assumirem os poderes sobre o processo reprodutivo de sua vida material. Em nosso mundo, essa regência é exercida pelo capital. É este que, em sua dinâmica, toma o Estado – e, por conseguinte, o Parlamento - como meio para resolver temporariamente suas crises esporádicas. Não é o Estado, portanto, que controla o capital e a produção humana. É o próprio sistema de produção de mercadorias que organiza e domina o complexo de atividades sociais, políticas, econômicas e culturais dentro do qual nos inserimos. O capital é, pois, essencialmente uma força extraparlamentar de atuação, e é somente dessa maneira que ele pode ser confrontado e vencido.

Política, então, para Mészáros, não pode ser confundida com as ações exercidas nos marcos parlamentares. Diz respeito, na verdade, a algo muito mais amplo: a perspectiva de os “produtores livremente associados” exercerem conscientemente o comando do metabolismo social. Este é o ponto central da questão política, segundo o autor de Para além do capital. No sistema do capital, os trabalhadores estão apartados de tal possibilidade. A superação dessa contradição é o objetivo supremo da práxis revolucionária a ser levada a cabo pelos socialistas.

Aí está, portanto, a raiz do problema que nos atinge a todos: a práxis humana e suas determinações históricas. Em virtude disto, da forma específica como se estruturam hoje as atividades que estão na base da nossa sociabilidade, a necessidade de se transcender a via institucional de atuação é premente, “pois sem o estabelecimento de uma alternativa radical ao sistema parlamentar não pode haver esperança de desembaraçar o movimento socialista de sua atual situação, à mercê das personificações do capital que existem em suas próprias fileiras.” (Cf. Mészáros, 2010, p. 15). O problema a ser atacado é exatamente o da separação entre política – a decisão consciente dos “produtores livremente associados” – e a esfera reprodutiva material da sociedade. E isso só pode ser feito se se vai além da política “tradicional”, visto que o que está em jogo é, justamente, não a mera ocupação e posse do Estado – que não pode, por definição, controlar o capital -, mas o comando da produção por parte dos sujeitos que a realizam. Mészáros argumenta que

nenhuma mudança significativa é viável sem que se volte a essa questão, tanto por meio de políticas capazes de desafiar o poder e os modos de ação extraparlamentares do capital como na esfera da reprodução material. Portanto, o único desafio que poderia, de modo sustentável, afetar o poder do capital seria aquele que assumisse as funções de produção decisivas do sistema e, ao mesmo tempo, adquirisse o controle sobre todas as esferas correspondentes da tomada de decisão política, em vez de ser irremediavelmente condicionado pela prisão circular da ação política institucionalmente legitimada pela legislação parlamentar. (idem, p. 39-40)

O que deve ser, então, a alternativa socialista? Leiamos mais uma vez o filósofo húngaro:

O estabelecimento de uma forma socialista de tomada de decisão, em conformidade com os princípios da inalienabilidade do poder de determinar as regras (isto é, a “soberania” do trabalho não como uma classe particular, mas como condição universal da sociedade) e da delegação de papéis e funções sob condições específicas, bem definidas, com distribuição flexível e supervisão adequada, exigiria invadir e uma radical reestruturação de todos os domínios materiais antagônicos do capital. Um processo que realmente deve ir muito além do princípio de soberania popular inalienável de Rousseau e seu corolário delegatório. Ou seja, em uma ordem socialista, o processo “legislativo” deveria ser fundido ao próprio processo de produção de tal modo que a necessária divisão horizontal do trabalho fosse adequadamente complementada em todos os níveis, do local ao global, por um sistema de coordenação autodeterminada do trabalho. (idem, p. 24)

Fundir o processo de legislar – decidir, estabelecer conscientemente as regras, etc. - ao de produzir – fazer, executar, realizar –, de uma maneira em que os próprios produtores se autodeterminem e se organizem de forma horizontal, tal deve ser o objetivo estratégico dos socialistas. É por essa razão que a nossa práxis não pode se limitar ao campo do Parlamento. Devemos, justamente, superar a fissura estabelecida pelo sistema do capital entre o político (institucional) e a esfera produtiva. Para se confrontar a ação extraparlamentar do capital – aquela que, bem entendido, controla o metabolismo social humano e que utiliza, para esse fim, o Estado – é preciso que nos constituamos, também, como força extraparlamentar. Como isso deve ser feito?

Para que tal projeto se efetive, o poder de decisão, sobre todos os âmbitos da atividade social humana, deve ser cada vez mais transposto para os trabalhadores. A participação ampla e consciente dos “produtores livremente associados” é uma exigência decisiva nesse processo. Como Mészáros (idem, p. 16) esclarece, “A alternativa necessária ao sistema parlamentar está em íntima relação com a questão da verdadeira participação, definida como autogestão plenamente autônoma da sociedade pelos produtores livremente associados em todos os domínios [grifo nosso], muito além das restritas mediações (obviamente ainda necessárias durante algum tempo) do Estado político moderno”. E é somente a verdadeira participação numa forma autogestionária de sociedade que pode promover o fenecimento do Estado, ponto defendido pelos socialistas desde os primórdios de seus embates políticos no século XIX.

Isso estabelecido, Mészáros sintetiza em que deve constituir o movimento revolucionário capaz de enfrentar radicalmente os desafios de nossa época. Assevera o filósofo:

O movimento em questão não pode ser apenas um tipo de partido político orientado para a obtenção de concessões parlamentares, que em geral são, mais cedo ou mais tarde, anuladas pelos interesses especiais da ordem estabelecida que também prevalecem no Parlamento. O movimento socialista não terá sucesso diante da hostilidade dessas forças [isto é, as forças que estão a serviço do sistema do capital] a menos que se rearticule como um movimento revolucionário de massas, ativo de maneira consciente em todas as formas de luta política e social: local, nacional e global/internacional. Um movimento revolucionário capaz de utilizar plenamente as oportunidades parlamentares quando disponíveis, ainda que limitadas nas atuais circunstâncias, e, acima de tudo, sem medo de afirmar as demandas necessárias da ação extraparlamentar desafiadora. (idem, p. 43)

Note-se que Mészáros não descarta a “oportunidade parlamentar”, mas subordina essa prática à exigência de se formar uma força de combate extraparlamentar capaz de arrancar das mãos do capital o poder de decisão sobre a atividade produtiva e transferi-lo cada vez mais aos trabalhadores. Esse movimento, genuinamente político, deve estar apto a “formular e defender organizacionalmente os interesses estratégicos do trabalho como alternativa sociometabólica historicamente viável”, bem como “enfrentar conscientemente e negar vigorosamente” (idem, p. 44) as determinações estruturais da ordem de reprodução material do capital, superando assim, definitivamente, seu poder, que hoje prevalece no Parlamento e fora dele. Nesse processo, como fica claro pela passagem acima, as exigências parciais podem ser reivindicadas, desde que, evidentemente, estejam articuladas com as exigências sistêmicas mais amplas do projeto revolucionário como tal: a superação da relação-capital em si.

Note-se, finalmente, como tal proposta redefine toda uma série de ações que hoje se encontra cristalizada na prática política da esquerda, que de uns anos para cá tem se mostrado preocupada sobretudo em atingir maioria no Parlamento, formar alianças espúrias que lhe garantam a “governabilidade”, administrar com “responsabilidade” as crises do capital e instituir, quando muito, paliativos para os males radicais da classe trabalhadora. Contra isso, o que devemos fazer? Não nos iludir quanto às possibilidades do Parlamento e da democracia burguesa, compôr uma força de atuação política que vá além desses limites, formar novas mediações extraparlamentares de combate, organizar os trabalhadores, transferir a eles cada vez mais o poder de decisão sobre a atividade produtiva – os processos sócio-metabólicos da humanidade -, fomentar intransigentemente a verdadeira participação, promover o fenecimento do Estado por meio de uma luta que articule o local e o global, o nacional e internacional: tais são as preciosas recomendações que Mészáros fornece aos revolucionários do presente.

Notas:

1. MÉSZÁROS, István. A atualidade histórica da ofensiva socialista – uma alternativa ao sistema parlamentar. São Paulo: Boitempo, 2010. Esse livro consiste numa republicação do capítulo 18 de Para além do capital - rumo a uma teoria da transição (São Paulo: Boitempo, 2002). Limitaremo-nos aqui a comentar as formulações contidas na sua Introdução, de cerca de 40 paginas, que é o que há de original na publicação em relação às obras anteriores de Mészáros.

2. O conceito de sócio-metabolismo humano tem um papel tremendamente importante na obra de Mészáros. Diz respeito ao conjunto de relações sociais que regula o intercâmbio entre os homens e a natureza, isto é, a própria atividade produtiva como tal. Na concepção do filósofo húngaro, a luta de classes se dá, antes de mais nada, em torno dessa questão, e se expressa, conseqüentemente, em todos os demais ramos da vida social que com ela se vinculam.

Nenhum comentário:

Postar um comentário