terça-feira, 30 de março de 2010

[Teoria e prática do cinismo] - Entrevista com Vladimir Safatle

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Acabar com a democracia professando a democracia como valor. Fazer a guerra sob pretexto de defender a paz. Ser intolerante e afirmar estar agindo em prol da tolerância. O cinismo é assim: quando os sujeitos partem de certos princípios “universalmente compartilhados” e torcem-nos de tal maneira que, quando aplicados, a prática realizada de forma distorcida neutraliza aqueles princípios dos quais se partiu.

Para o jovem filósofo brasileiro Vladimir Safatle, o cinismo é, pois, o elemento constituinte principal da ideologia dominante na sociedade capitalista contemporânea. Os três breves vídeos que apresentamos no blog (cada um com cerca de 10 minutos) consistem numa entrevista sua sobre o assunto, onde são abordados temas como pós-modernidade, psicanálise lacaniana, filosofia de Hegel, Escola de Frankfurt, ideologia, conceito de crítica, ironia e cinismo.

Vladimir Safatle é professor de filosofia da USP, grande estudioso de Hegel, Jacques Lacan, Theodor Adorno, Slavoj Zizek, Alan Badiou e outros. Seus últimos livros foram Cinismo e falência da crítica e O que resta da ditadura: a exceção brasileira (organizador, com Edson Teles). Vale a pena ler o que escreve.

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Entrevista - Parte 1



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Entrevista - Parte 2



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Entrevista - Parte 3



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sexta-feira, 26 de março de 2010

26 de março, 6 da manhã... La estrella azul

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La estrella azul

¿donde estara la estrella azul?
Esa estrellita del alma ...
Sus ojos suelen brillar
Perdidos en la inmensidad.

A veces sueño que esta aqui
Y se ilumina el camino
Cuando aparece el fulgor
Cerquita del corazon.

¿donde estara la estrellita azul?
Ya no podre con mi dolor
En otros cielos brillara
Esa estrellita del amor.

En una lagrima quedo
Hasta perderse en el cielo,
Mi corazon se partio
Atravesado de penas.

A nadie puedo preguntar
Con las palabras del alma.
Es mi tristeza un papel
Que el viento no deja caer.



(Música: Peteco Carabajal; Interpretação: Mercedes Sosa)

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quarta-feira, 24 de março de 2010

24 de março, 5 da manhã... Poema obsceno

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Poema obsceno


Façam a festa
cantem e dancem
que eu faço o poema duro
o poema-murro
sujo
como a miséria brasileira


Não se detenham:
façam a festa
Bethânia Martinho
Clementina
Estação Primeira de Mangueira Salgueiro
gente de Vila Isabel e Madureira
todos
façam
a nossa festa
enquanto eu soco este pilão
este surdo
poema
que não toca no rádio
que o povo não cantará
(mas que nasce dele)
Não se prestará a análises estruturalistas
Não entrará nas antologias oficiais
Obsceno
como o salário de um trabalhador aposentado
o poema
terá o destino dos que habitam o lado escuro do país
- e espreitam.


(Ferreira Gullar)



Hino dos Comedidos

Não me agradam esse homens
bem fracionados no tempo,
cedendo-se amavelmente
em todas as ocasiões
e mais também não me agradam
os partidários tão vários,
de toda moderação.
Vou passando bem distante
desses homens comedidos
deses homens moderados.

Antônio guarda seu vinho
muito mais de vinte anos
para bebê-lo mais velho
Clara não estréia o vestido
quer outra oportunidade.

Os noivos em castidade
bem além de doze anos
ainda apregoam o amor.

Os homens de ferro hoje
só sabem anunciar
uma mensagem de espera.
Aguarda a felicidade,
Vê o momento oportuno,
Não penses nunca em amor
Nem sejas tão ansioso,
resiste à melhor viagem
desconhece a emoção.

O hino dos comedidos
de todos bem fracionados
a humanidade invadiu.
Desejam oportuníssimos
Sempre expelindo relógios
aguardam os melhores instantes
subdivididos em prazos
doutrinam sincronizados
Sofrendo convencionais
Apenas grandes tristezas
Creditadas nos jornais.

Eu? Eu já sou diferente.
Não sei viver minha vida
entoada nesse hino
Esterelizada em prazos
De regras universais.
Não me situo na espera
E por profissão de fé
Acredito em circunstância
Acredito em vida intensa,
Acredito que se sofra,
mesmo muito, por amor.

Adeus homens moderados,
Adeus que sou diferente.
Compreendo a mulher que rasga
as vestes em grande dor
e sinto imensa ternura
pelo homem desesperado.

(Lupe Cotrin)



O medo

Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.

E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.

Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
Doenças galopantes, fomes.

Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.

Fazia frio em São Paulo...
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça.

Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno,
De nós, de vós: e de tudo.
Estou com medo da honra.

Assim nos criam burgueses,
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?

Vem, harmonia do medo,
vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas

do homem só. Ajudai-nos,
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se.

Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.

E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.

O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.

Tenhamos o maior pavor,
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.

Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,

eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.

(Carlos Drummond de Andrade)

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segunda-feira, 22 de março de 2010

Rascunho 1 - texto Zizek Mao Dialética

Uma transformação social de grande envergadura pode ser um sonho. Uma condição em que superamos um modo de viver onde aparecemos como coisas para uns, objetos para outros, como meros meios para fins que nos são alheios, pode ser um sonho. E haverá mesmo quem diga que esses desejos todos, e a própria emancipação que ansiamos, não passam de puro sonho. No entanto, há que se admitir que é um sonho que não se sonha só. O que é então sonhar? E o que é que são os sonhos? Por que afinal sonhamos? O que sabemos, de fato, é que sonhamos, e sonhamos muitas vezes acordados. Em algumas situações, chegamos ao ponto de vermos-nos mesmo face a face com os nossos sonhos. Mas o certo é que raras são as vezes em que os tocamos. E mais raras ainda são as vezes em que com eles permanecemos. Por que isso acontece?

Slavoj Zizek arrisca uma resposta. Em um brilhante ensaio lançado recentemente, intitulado Mao Tsé-Tung, “Senhor do Desgoverno” marxista, o filósofo esloveno apresenta, de forma clara e sucinta, elementos-chave de suas concepções sobre cultura, política, dialética e revolução.

O escrito foi concebido para servir de apresentação a uma nova edição de Sobre a prática e a contradição (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008), uma das obras mais famosas do velho líder político chinês. O texto é, pois, uma introdução crítica à filosofia de Mao, onde as contradições teóricas e práticas do timoneiro da Revolução Chinesa são expostas no mesmo movimento em que a tentativa de sua superação, por parte de Zizek, aparece.

O ponto de partida da reflexão zizekiana é o de que a transposição de uma teoria para um universo diferente do seu lugar de origem altera, necessariamente, a própria teoria. Isto não é, contudo, um fato merecedor de condenação, pois é essa alteração que constitui, em certas circunstâncias, a própria condição de possibilidade da universalização daquela teoria. Assim, por exemplo, a modificação que Lenin fez da teoria de Marx - a tese, formulada pelo filósofo alemão, de que a revolução deveria se dar no país mais desenvolvido, com o líder bolchevique passou a dar conta de uma estratégia de luta política num país relativamente atrasado, a Rússia - não foi algo “anormal”. O mesmo pode ser dito, nesse contexto, da alteração que depois Mao realizaria da teoria do próprio Lenin, isto é, substituindo o proletariado, como sujeito social da revolução, pelo campesinato, na China.

Ora, diz Zizek, para que uma teoria se universalize, de modo a dar conta de uma conjuntura concreta e poder orientar aí uma práxis genuinamente revolucionária, esses tipos de modificações da teoria original devem necessariamente ocorrer - a teoria, num contexto diverso, “se reinventa”, afirma o filósofo esloveno. Isto, por si mesmo, não é um problema. Contudo, também não é sinal de que ela terá sucesso. Zizek se debruça então a analisar criticamente a filosofia política de Mao Tsé-Tung a fim de constatar o porquê de, na China, depois de enormes, dramáticos e trágicos acontecimentos revolucionários, a tão sonhada emancipação humana, proposta fundamental do comunismo de Marx, não logrou se realizar. Quais foram os limites do pensamento e da prática política de Mao? Quais as suas contradições? Em que, porventura, esteve equivocado? Que aspectos poderão ainda, quiçá, ser repetidos?

A dialética de Mao tem pontos fortes, garante Zizek, no que se refere à questão da contradição, e possivelmente seja esta a sua principal contribuição à filosofia marxista. É preciso aqui atentar para as distinções feitas pelo líder chinês entre contradições principais e não-principais, e entre contradições antagônicas e não antagônicas, em uma conjuntura histórica determinada. Que vêm a ser tais distinções?

No texto Sobre a contradição, Mao desenvolve uma tese que procura diferenciar os aspectos “principais” e os “não principais” de um processo social e político contraditório. Leiamos o que escreve:

“Por exemplo, na sociedade capitalista, as duas forças em contradição, o proletariado e a burguesia, formam a contradição principal. As demais contradições, como aquelas entre a classe feudal remanescente e a burguesia, entre a pequena burguesia camponesa e a burguesia, entre o proletariado e a pequena burguesia camponesa, entre os capitalistas não-monopolistas e os capitalistas monopolistas, entre a democracia burguesa e o fascismo burguês, entre países capitalistas e entre o imperialismo e as colônias, todas são determinadas ou influenciadas por essa contradição principal...

Quando o imperialismo lança uma guerra de agressão contra um país assim, todas as suas várias classes, à exceção de alguns traidores, podem temporariamente unir-se em guerra nacional contra o imperialismo. Nessa ocasião, a contradição entre o imperialismo e o país afetado torna-se a contradição principal, ao passo que todas as contradições entre as várias classes sociais dentro do país (incluída a que era a principal, vale dizer a contradição entre o sistema feudal e as grandes massas do povo) ficam temporariamente relegadas a posição secundária e subordinada.” (Mao Tsé-Tung, apud Zizek, op cit. p. 13)

Segundo Mao, portanto, a contradição principal - que é a que se universalizou numa determinada formação social concreta - não se sobrepõe àquela que deve ser tratada como a contradição predominante numa situação particular. Em outras palavras, há, num período histórico, uma contradição “universal” (como a que existe entre burguesia e proletariado). Mas numa conjuntura específica, uma outra contradição, que em relação à primeira, de início, era tida como não principal, pode vir a fazer as vezes de contradição principal (por exemplo: num período histórico, segundo Mao, a contradição entre os interesses da nação contra o imperialismo pode se sobressair em relação àquela primeira contradição entre burguesia e proletariado, fazendo que esta, na luta contra o imperialismo, passe para o segundo plano - mas que não seja de forma alguma superada por isso). Embora haja, então, de princípio, uma contradição universal, num dado momento a contradição não principal pode adquirir o seu lugar, sem anulá-la.

A outra reflexão importante de Mao é acerca das contradições antagônicas e não antagônicas. Vejamos o que afirma:

“As contradições entre nós e o inimigo são contradições antagônicas. Nas fileiras do povo, as contradições em meio ao povo trabalhador não são antagônicas, enquanto aquelas entre as classes exploradas e exploradoras têm um aspecto não antagônico e um aspecto antagônico. … Sob a ditadura democrática do povo, dois diferentes métodos, um ditatorial e outro democrático, devem ser usados para resolver os dois tipos de contradições, que diferem por natureza – as contradições entre nós e o inimigo, e as contradições em meio ao povo.” (Mao Tsé-Tung, apud Zizek, idem, p. 15)

Na sociedade de classes atual, existe um antagonismo fundamental na relação contraditória estabelecida entre burgueses e proletários. No campo destes, no entanto, apesar das contradições entre os seus diversos setores constituintes, não há, de princípio, tal antagonismo. Mas por causa das várias diferenças existentes entre as classes proletárias, pode surgir e se desenvolver, em virtude das condições mutantes dos conflitos, um verdadeiro antagonismo – ou seja, algumas parcelas das classes trabalhadoras podem passar para o lado da burguesia, tornando-se, desse modo, antagonistas dos demais trabalhadores. Para Mao, é preciso vigilância e luta constante para não deixar isso acontecer. Tal concepção mostra, dentre outras coisas, como o velho líder chinês tinha consciência do peso da subjetividade no processo de combate e superação da ordem capitalista.

Esses são os aspectos que merecem maior consideração na filosofia de Mao. Quais, então, as suas limitações? A falha desta filosofia política, segundo Zizek, está na sua recusa à idéia dialética da síntese, da unidade entre os contrários. Mao tem razão, sim, em romper com as noções padronizadas de síntese enquanto mero equilíbrio e conciliação entre os opostos, pois, de fato, o conceito de Aufhebung (isto é, de síntese dialética) hegeliana é muito mais complexo que isso. No entanto ele insiste unilateralmente em priorizar a luta e rejeitar qualquer tipo de síntese ou de unidade entre os contrários. Ou seja, Mao nega a noção vulgar de síntese, mas recusa também, de antemão, que exista qualquer forma possível de síntese. A processualidade do real se daria assim meramente por meio de negação e afirmação, e nunca se verificaria o momento da negação da negação. Como explica Zizek:

“Mao rejeita de forma cáustica a categoria da 'síntese dialética' dos contrários, promovendo sua própria versão da 'dialética negativa' – toda síntese é, para ele, em última instância, o que Adorno em sua crítica a Lukács chamou de erpresste Versöhung (reconciliação forçada), na melhor das circunstâncias momentânea pausa na luta verdadeiramente em processo, que ocorre não quando os contrários estão unidos, mas quando um lado simplesmente vence o outro.” (idem, p. 19)

Para Mao, em sua “ontologia”, tudo está condenado a se dividir, e nada realmente se sintetiza. Quais são as conseqüências políticas desse tipo de orientação teórica?

Grosso modo, para a filosofia hegeliana, o real é composto de uma unidade de contrários em permanente luta. Para cada afirmação, há uma correspondente negação. Desse processo emerge uma terceira coisa, que é produto da negação da negação. Dito de outro modo: há, num primeiro “momento”, a tese, que em seguida é negada pelo seu contrário – a sua antítese -, e desse conflito surge a síntese, o terceiro “elemento”, um ente que nega a negação realizada pela antítese sobre a síntese. A síntese é o ápice do processo em que os contrários lutam entre si e o ser emerge numa terceira configuração, “qualitativamente diferente” das duas primeiras. Há, dessa maneira, dois momentos na transformação do ser: o primeiro é a negação; o segundo, o decisivo, corresponde à negação da negação, a síntese hegeliana. (Para designar a síntese, Hegel utiliza a palavra alemã Aufhebung, que significa simultaneamente negação, conservação e superação). Finalmente, uma vez constituída a síntese, o ser volta a se dividir internamente, a formar novas teses, novas antíteses, novas sínteses, e assim sucessivamente. É exatamente esse tipo de raciocínio que Mao rejeita por completo. Para ele, só afirmação e negação se sucedem. Nada de fato se sintetiza, e tudo volta sempre a se dividir.

Se não há a síntese, pensa Mao, o próprio comunismo, enquanto forma de organização social que elimina o conflito fundamental do capitalismo, deve poder também se transformar, no sentido de a sociedade aí voltar a se cindir, dando origem a novos antagonismos, novas teses e antíteses, sem a possibilidade de alguma Aufhebung. Por rejeitar assim a possibilidade de superação da luta entre os contrários, o autor de Sobre a prática e a contradição foi levado, de maneira coerente com os princípios que adotava, a deixar em aberto o problema da luta de classes. Nas suas palavras:

“Deixemos que tendam para o capitalismo. A sociedade é muito complexa. Não seria demasiado simples se apenas tendêssemos para o socialismo e não para o capitalismo? Não faltaria a unidade dos contrários, não estaríamos sendo apenas unilaterais? Deixemos que o façam. Deixemos que nos ataquem loucamente, que façam demonstrações nas ruas, que tomem as armas para rebelar-se – eu aprovo todas essas coisas. A sociedade é muito complexa, não existe uma só comuna, um só hsien, um só departamento do Comitê Central que não possamos dividir em dois.”(Mao Tsé-Tung, apud Zizek, idem, p. 28).

Por rejeitar a noção de síntese dialética e assumir apenas a realidade do conflito que se desenvolve em interminável sucessão de afirmações e negações, Mao acabou abrindo a possibilidade prática para a reafirmação do conflito entre as classes, o que por sua vez eliminou, segundo Zizek, a viabilidade da realização do comunismo na China. A Revolução Chinesa conseguiu assim negar a ordem social anterior, conseguiu afirmar uma nova ordem, mas não pôde ir além disto, não realizou a negação da negação. Verificou-se uma mudança na ordem, mas não da ordem, como Hegel estabelece que necessariamente deve haver se se pretende levar a efeito um processo genuinamente revolucionário. Nas palavras do filósofo esloveno,

“O problema de Mao foi justamente a falta de 'negação da negação', o fracasso das tentativas de transpor a negatividade revolucionária em nova ordem verdadeiramente positiva. Todas as estabilizações temporárias da revolução equivaliam a outras tantas restaurações da velha ordem, de tal modo que a única forma de manter a revolução viva era a 'infinidade espúria' da negação repetida interminavelmente, que atingiu seu ápice na Grande Revolução Cultural. (Zizek, idem, p. 30).

É neste sentido que, segundo Zizek, Mao foi o “Senhor do Desgoverno” marxista. Na Europa da Idade Média, um dos costumes das casas feudais era escolher um “senhor do desgoverno”, um sujeito que, num dia qualquer de festividade, seria considerado o mentor das atividades gerais. Durante esse dia, a ordem e a hierarquia usuais estariam abolidas. Os papéis de gênero eram revertidos, os aprendizes tomavam o lugar dos mestres, etc. Mas quando esse momento de exceção acabava, os “senhores do desgoverno” e os antigos amos voltavam às suas ocupações habituais. O fracasso de Mao, pois, tem a ver com essa incapacidade de, uma vez instaurado o “desgoverno” - a reversão da ordem tradicional -, não ter conseguido “negar a negação”, isto é, transcender completa e radicalmente a própria ordem que foi brevemente negada. Houve, portanto, uma negação dentro da ordem, mas não da própria ordem mesma. Dito de outro modo: por um curto período de tempo, no interior de uma determinada estrutura de relações sociais, alguns elementos trocaram de posição. Mas o processo decisivo, de alterar a ordem que exigia a presença da hierarquia e do posicionamento antagônico, em direção a outra, qualitativamente diferente, organizada de forma horizontal, não se logrou alcançar.

Por isso Zizek afirma que a revolução levada a cabo pelo líder chinês foi certamente negativa, mas de forma alguma foi sintética, ou “superadora”, isto é, não estabeleceu na prática a “negação da negação”. Tal foi a fraqueza central do pensamento e da política de Mao. Faltou-lhe a radicalidade para, uma vez transformada a ordem dentro de certos pressupostos, modificar, em seguida, os próprios pressupostos em que a ordem havia sido inicialmente mudada. Como explica brilhantemente Zizek,

“A verdadeira revolução é a 'revolução com revolução', uma revolução que, em seu transcurso, revoluciona seus próprios pressupostos iniciais. Hegel pressentiu essa necessidade quando escreveu: 'É uma loucura moderna alterar um sistema ético corrupto, sua constituição e legislação, sem mudar a religião, ter uma revolução sem reforma.' Hegel anunciava, assim, a necessidade de uma Revolução Cultural como condição para o sucesso da revolução social. Isso significa que o problema com as tentativas revolucionárias até agora não é que elas tenham sido 'demasiado extremadas', mas que não foram suficientemente radicais, que não questionaram seus próprios pressupostos.” (Zizek, idem, p. 33).

Aqui começamos a chegar talvez no ponto mais interessante na reflexão do filósofo esloveno. Para ele, como dissemos, há dois momentos no processo revolucionário: o primeiro é o que se dá dentro da ordem; o segundo diz respeito à transformação da ordem mesma. A primeira atitude é a da negação; a segunda é a da negação da negação. A Revolução Chinesa, com todas as transformações sociais, econômicas, culturais e políticas que promoveu, conseguiu varrer com violência um velho mundo que até então se afirmava oprimindo a grande nação oriental. Um ato desse tipo é, sem dúvida, a precondição para que outra formação social nova possa nascer. Mas uma segunda etapa, a da “invenção da nova vida”, deve acontecer na seqüência. Uma situação onde ocorre “não apenas a construção da nova realidade social na qual nossos sonhos utópicos serão realizados, mas a (re)construção desses próprios sonhos” (Zizek, idem, p. 34, grifo nosso em negrito).

Entra agora em cena o referencial psicanalítico com o qual Zizek analisa a sociedade e a cultura. Seguindo a linha interpretativa desenvolvida anteriormente por intelectuais ligados à Escola de Frankfurt, o filósofo esloveno toma a cultura como uma objetivação que, no âmbito da sociedade, corresponde àquilo que o sonho é no plano da existência psíquica individual: a realização de desejos originados por conflitos desencadeados no pretérito e que continuam a existir, numa instância “inconsciente”, no presente. A cultura seria uma espécie de “sonho coletivo”, onde se verificam alguns fragmentos de consciência envoltos num grande oceano de inconsciência. Nas sociedades divididas em classes, observamos esse conflito fundamental se expressar, de várias formas, nas obras de arte, na disposição da cidade, na arquitetura, na moda, nos interiores, etc, e certamente nos ideais políticos, que são, algumas vezes, o produto mais ou menos acabado da interpretação dos sonhos coletivos.

Nas sociedades de classes, então, o sonho que muitas vezes a população alimenta, ora velada, ora abertamente, e que as teorias políticas tentam dar conta de interpretar, de modo a proporcionar que, uma vez que os sujeitos coletivos estejam conscientes do seus conflitos, possam vir a superá-los, é o sonho, justamente, da emancipação do profundamente arraigado conflito de classes. Nesse contexto, a revolução comunista é como se fosse, literalmente falando, a realização de um sonho cultivado coletivamente. Ora, no século XX assistimos a várias revoluções desse tipo, ainda que cada uma delas tenha tido a sua configuração e o seu desfecho específicos. No caso particular da Revolução Chinesa, o que é que de fato ocorreu para que esse sonho, anteriormente ao alcance das mãos e até mesmo momentaneamente manipulado, se esvaecesse no ar de forma a produzir o retorno do capitalismo, mas desta vez numa configuração muito mais brutal, chegando ao ponto de, conforme Zizek, constituir-se a China num “Estado capitalista ideal”, onde o capital explora o trabalho a seu bel-prazer e o Estado faz o “trabalho sujo” de manter o rígido controle sobre as classes proletárias? Sigamos o raciocínio do filósofo.

Conforme explicamos acima, em condições de grande opressão, os seres humanos tendem espontaneamente a fantasiar, idealizar, devanear, ansiar por uma realidade diferente, um mundo de redenção, utopia, emancipação, onde as condições do sofrimento vigente estejam definitivamente abolidas. Se isso, quiçá, vier a nos acometer, de novo, um dia, no século XXI – e isso pode estar acontecendo neste exato momento... -, talvez uma vez mais venhamos a nos organizar, lutar, reivindicar, aprender, analisar, teorizar, compreender os nossos sonhos mais íntimos de outrora, agir, refazer estratégias, reinvestir contra a ordem opressora, até que uma conjuntura surja onde esta ordem começará a ser negada por completo. Aparecerá então uma situação nova em que poderemos assumir a condição de sujeitos de nossas próprias vidas e passaremos a dispor de meios para a reinvenção de nossa forma de existência coletiva. Com os motivos da opressão assim derrotados, será como se estivéssemos “realizado o sonho” historicamente cultivado de emancipação. Mas quando isso acontecer, recomenda-nos Zizek, devemos ter a mais cuidadosa e refinada atenção. Uma vez “realizado o sonho”, é preciso “encontrar um caminho para começar a imaginar a Utopia que se vai iniciar”. O filósofo esloveno serve-se aqui das palavras de Fredric Jameson para explicar que, tão logo dermos o primeiro passo para a construção da Utopia, devemos

“pensar o novo começo do processo utópico como uma espécie de desejar o desejo, aprender a desejar – a invenção do desejo chamado Utopia em primeiro lugar, juntamente com novas regras para fantasiar ou sonhar acordado sobre tal coisa – um conjunto de protocolos narrativos sem precedente em nossas instituições literárias prévias” (Jameson, apud Zizek, idem, p. 34, grifo nosso em negrito).

O grande perigo que nos acomete no momento em que “realizamos o sonho” é não podermos transcendê-lo, isto é, não conseguirmos criar um outro novo desejo e um outro novo sonho que nos estimule a seguir adiante. Por quê? Porque os desejos e sonhos que criamos em determinadas circunstâncias são a expressão de um conflito estabelecido a partir de certas situações concretas. Esses conflitos são os pressupostos dos quais os sonhos e desejos de emancipação são a expressão. Se nós realizamos o sonho, mas não transformamos radicalmente o conflito primevo - o pressuposto do qual emergiu o sonho -, e que agora momentaneamente se estancou, esse conflito tende a se afirmar de novo. Por isso, uma vez realizado o sonho, isto é, uma vez suspensa a condição conflitiva que se constituía em pressuposto fundamental do próprio sonho, é preciso negar o próprio pressuposto, o que por sua vez nos dará a possibilidade de elaborar novos tipos de sonhos, de dar à luz novos desejos que nos permitirão, finalmente, deixar o passado para trás. Como explica Zizek:

“A referência à psicanálise aqui é crucial e muito precisa: numa revolução radical, as pessoas não só 'realizam seus velhos sonhos (de emancipação etc.); mais propriamente, elas têm de reinventar seus próprios modos de sonhar. (…) Aí reside a necessidade da Revolução Cultural, muito bem entendida por Mao: como Herbert Marcuse disse em outra maravilhosa fórmula circular da mesma época, a liberdade (das limitações ideológicas, do modo predominante de sonhar) é a condição da libertação, isto é, se apenas mudamos a realidade para realizar nossos sonhos, e não mudamos esses próprios sonhos, cedo ou tarde regressamos à velha realidade. Existe uma 'posição de pressupostos' hegeliana funcionando aqui: o pesado trabalho de libertação forma retroativamente seu próprio pressuposto.” (p. 34)

Somente modificando os sonhos, os pressupostos dos sonhos e a própria forma de sonhar, conseguimos suplantar a origem dos males que nos afligem. Mao Tśe-Tung compreendeu isso, fato que atesta a sua percepção para a importância de uma revolução cultural em concomitância com a revolução social. Mas ele não logrou atingir o objetivo de revolucionar os pressupostos que estavam na base da sua ação revolucionária. Transformou uma determinada ordem, mas não a modificou em suas raízes. O resultado de todo esse fracasso – a “justiça poética da história”, como diz Zizek - assistimos hoje com o violento e brutal retorno do capitalismo à China. Por que isso se sucedeu assim?

Compreendamos o seguinte. Que é que se preocupa em produzir o capitalismo em nossos dias? Segundo Zizek, o sistema já não se processa mais pela “generalização da normalidade”, isto é, já não visa produzir padrões de comportamento, cultura e práticas sociais calcadas em rígidas concepções do que se poderia considerar “normal”. A lógica do capital hoje é a do “excesso errático”:

“Quanto mais variado, e mesmo errático, melhor. A normalidade começa a perder sua força. As regularidades começam a afrouxar. Essa frouxidão da normalidade é parte da dinâmica do capitalismo. Não é uma simples liberação. É a própria forma de poder do capitalismo. Não é mais o poder institucional disciplinador que tudo define, é o poder do capitalismo de produzir variedade – porque os mercados ficam saturados. As mais estranhas tendências afetivas são aceitas, desde que vendam. O capitalismo começa a intensificar ou a diversificar o afeto, mas apenas para extrair mais-valia. Ele seqüestra o afeto para intensificar o poder de lucro. Ele literalmente valoriza o afeto. A lógica capitalista de produção de mais-valia começa a dominar o campo das relações, que é também o domínio da ecologia política, o campo ético da resistência às identidades e às trajetórias previsíveis. É tudo muito perturbador e confuso, porque me parece que houve um certo tipo de convergência entre a dinâmica do poder capitalista e a dinâmica da resistência.” (Massumi, apud Zizek, idem, p. 36, grifo nosso em negrito)

Nesse processo de generalização do “variado”, de produção de mercadorias e geração de padrões culturais que fujam do estigma da normalidade, o capital deve se auto-revolucionar constantemente. Aí é que está o grande limite da teoria e da prática política de Mao, segundo Zizek. Por não estar imbuído de uma concepção dialética de síntese, por ser mesmo contrário a qualquer possibilidade de síntese e estar baseado meramente num conjunto de práticas negativas em relação à ordem que desejava superar, o auto-revolucionamento maoísta, “a luta permanente contra a ossificação das estruturas do Estado, e as dinâmicas internas do capitalismo”, acabou mantendo uma profunda homologia estrutural com o sistema que gostaria de ter transcendido.

A contradição de Mao foi então a de ter querido “revolucionar” o sistema baseado num conjunto de práticas estruturadas de forma homóloga às do capital. O resultado da não concretização do evento revolucionário desejado é o retorno do próprio sistema, mas agora não mais como senhor da ordem, da norma e da normalidade, e sim como “o verdadeiro senhor do desgoverno”, que rompe com todos os padrões, que varia e modifica tudo permanentemente, a fim de continuar reproduzindo-se a si mesmo.

Zizek se pergunta finalmente sobre o que é que podemos ainda tomar como lição do velho Mao, a fim de orientarmos nossas ações políticas atuais, mas desta vez sem cair nos equívocos cometidos pelo velho líder chinês.

“Como, então, poderemos revolucionar uma ordem cujo mais genuíno principio é o constante auto-revolucionamento? Essa talvez, seja a questão de hoje, e esse é o modo segundo o qual deveríamos repetir Mao, reinventando sua mensagem às centenas de milhões de pessoas que sofrem a opressão, uma simples e tocante mensagem de coragem: 'Não é para temer o que é grande. O grande será derrubado pelo pequeno. O pequeno se tornará grande.' (…)

'Não devemos ter medo.' Não será essa a única atitude correta diante da guerra? 'Primeiro, somos contra ela; segundo, não a tememos.' Há definitivamente algo de aterrador nessa posição – no entanto, esse terror nada mais é senão a condição da liberdade.”(Zizek, idem, p. 38).

Tais são as lições que Zizek tira de Mao e recomenda aos revolucionários do presente.

Referência:

ZIZEK, Slavoj. Mao Tsé-Tung, “Senhor do Desgoverno” marxista. in TSÉ-TUNG, Mao. Sobre a prática e a contradição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

sexta-feira, 19 de março de 2010

19 de março... Folhas de Relva

Estes pensamentos são os de todos os homens de todas as eras e terras, não se originaram comigo.
Se não são seus tanto quanto são meus, então não são nada, ou quase nada,
Se não abarcam tudo então são quase nada,
Se não são o enigma e a solução do enigma não são nada,
Se não estão perto tanto quanto longe não são nada.

Esta é a relva que grassa onde quer que haja terra e água,
Este é o ar comum que banha o globo.

Este é o hálito das leis, canções, comportamento,
Esta é a água insípida das almas …. este é o verdadeiro alimento,
É pros iletrados …. pros juízes da suprema corte .… pra capital federal e o estado do capitólio,
Pra comunidade admirável dos literatos e compositores e cantores e oradores e engenheiros e sábios,
É para as raças infinitas de trabalhadores, agricultores e marinheiros.

Isto é o trinar de mil trompetes e o grito da oitava flauta e o ataque dos triângulos.
Não toco marchas só pros vencedores …. também toco pros mortos e vencidos com o mesmo espírito.

Já ouviu alguém dizer que foi bom ganhar o dia?
Pois digo que também é bom cair .... batalhas são perdidas com o mesmo espírito com que são vencidas.
Bato em mim tambores triunfantes para os mortos .... lanço pelos bocais a música mais animada e alta para eles,
Viva todos fracassados, que tiveram seus navios de guerra naufragados, todos os que afundaram no mar....

(Walt Whitman)

quarta-feira, 17 de março de 2010

17 de março, 5 da manhã... El Poeta a su Amada

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Amada, en esta noche tú te has crucificado
sobre los dos maderos curvados de mi beso;
y tu pena me ha dicho que Jesús ha llorado,
y que hay un viernes santo más dulce que ese beso.

En esta noche clara que tanto me has mirado,
la Muerte ha estado alegre y ha cantado en su hueso.
En esta noche de setiembre se ha oficiado
mi segunda caída y el más humano beso.

Amada, moriremos los dos juntos, muy juntos;
se irá secando a pausas nuestra excelsa amargura;
y habrán tocado a sombra nuestros labios difuntos.

Y ya no habrá reproches en tus ojos benditos;
ni volveré a ofenderte. Y en una sepultura
los dos nos dormiremos, como dos hermanitos.

(Cesar Vallejo)

Música: Paco Ibáñez

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sábado, 13 de março de 2010

Notícias que gostaríamos de ver...

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(Recriado a partir da idéia original de André Dahmer)

13 de março, madrugada... No caminho com Zé Ramalho

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Foi um tempo que o tempo não esquece
Que os trovões eram roncos de se ouvir
Todo o céu começou a se abrir
Numa fenda de fogo que aparece
O poeta inicia sua prece
Ponteando em cordas e lamentos
Escrevendo seus novos mandamentos
Na fronteira de um mundo alucinado
Cavalgando em martelo agalopado
E viajando com loucos pensamentos

Sete botas pisaram no telhado
Sete léguas comeram-se assim
Sete quedas de lava e de marfim
Sete copos de sangue derramado
Sete facas de fio amolado
Sete olhos atentos encerrei
Sete vezes eu me ajoelhei
Na presença de um ser iluminado
Como um cego fiquei tão ofuscado
Ante o brilho dos olhos que olhei

Pode ser que ninguém me compreenda
Quando digo que sou visionário
Pode a bíblia ser um dicionário
Pode tudo ser uma refazenda
Mas a mente talvez não me atenda
Se eu quiser novamente retornar
Para o mundo de leis me obrigar
A lutar pelo erro do engano
Eu prefiro um galope soberano
À loucura do mundo me entregar


(Canção Agalopada - Zé Ramalho)

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quarta-feira, 10 de março de 2010

11 de março, duas da manhã... "A um ser desconhecido"

Desconhecido ser que vai passando,
não imagina com que ansiedade
ponho em você meus olhos:
bem pode ser você
aquele que eu andava procurando ou
aquela que eu andava procurando
(isso me ocorre como num sonho),
vai ver que com você eu já vivi
algures uma vida de alegrias,
e tudo vem à lembrança
quando passamos um pelo outro,
afeiçoados e fluidos, castos e amadurecidos,
junto comigo você cresceu
e foi menino ou menina junto comigo,
com você comi e dormi,
seu corpo não se fez seu exclusivo
nem meu corpo foi exclusivamente meu,
você me dá a alegria de seus olhos,
rosto, carne, ao cruzarmos,
e de mim leva em troca
a barba, o peito, as mãos,
eu não estou para lhe dizer coisas
mas para ficar pensando em você
quando sozinho me sento
ou quando acordo de noite sozinho,
sou de esperar e não duvido de que esteja
a ponto de encontrar você de novo,
e aqui estou para ver
que eu não perco você.


Walt Whitman

terça-feira, 9 de março de 2010

Paranóias virtuais - Texto de Slavoj Zizek

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Nos últimos dias de 1999, em todo o mundo (ocidental), as pessoas foram bombardeadas com numerosas versões de uma mesma mensagem, que encenava perfeitamente a cisão fetichista: "Sei muito bem disso, mas...". Nas grandes cidades, os inquilinos recebiam cartas dos administradores imobiliários, dizendo-lhes que não havia nada com que se preocupar, que tudo estava bem, mas que de qualquer modo seria melhor encher a banheira de água e preparar um estoque de comida e velas; os bancos diziam aos clientes que seus depósitos estavam em segurança, mas que de qualquer modo seria melhor que providenciassem algum dinheiro vivo e tirassem extratos bancários impressos; até mesmo Rudolph Giuliani, prefeito de Nova York, que repetidamente acalmara seus cidadãos quanto às providências que tomara, acabou passando o Ano Novo no bunker de concreto sob o World Trade Center, a salvo de armas químicas e biológicas.

Sinistra obsessão

Qual a causa de tanta ansiedade? Uma não-entidade que atendia por "bug do milênio". Será que já nos demos conta de como é sinistra nossa obsessão pelo bug? E de como essa obsessão revela muita coisa sobre nossa sociedade? Não apenas o bug foi criado pelo homem, como ainda é possível localizar com precisão sua origem: graças à imaginação limitada dos primeiros programadores, as máquinas digitais estúpidas não sabiam como ler o "00" à meia-noite do fim de ano (1900 ou 2000?). Essa simples limitação da máquina bem podia ser a causa, mas a distância entre a causa e seus efeitos potenciais era incomensurável. As expectativas iam da tolice à tragédia, pois nem sequer os especialistas sabiam com certeza o que aconteceria: talvez o colapso total dos serviços públicos, talvez coisa nenhuma (como de fato aconteceu).

Mas será que estávamos lidando apenas com a ameaça de uma simples pane mecânica? É claro que a rede digital se materializa em chips e circuitos, mas se deve ter em mente que todo esse aparato supostamente "sabe" alguma coisa: supostamente ele corporifica um certo conhecimento, e foi esse conhecimento, ou melhor, sua falta, que deu origem a todas as preocupações. O bug do milênio confrontou-nos, na verdade, com o fato de que nossa vida "real" é regulada por uma ordem virtual de conhecimento objetivado cuja pane pode ter consequências catastróficas. Jacques Lacan chamava esse conhecimento objetivado (a substância simbólica do nosso ser, a ordem virtual que regula o espaço intersubjetivo) de "o grande Outro". Uma versão mais popular e paranóica da mesma noção é a Matriz do filme homônimo dos irmãos Wachowski. O que de fato nos ameaçava sob o nome de bug do milênio era a suspensão da Matriz. Por aí vemos como o filme estava certo: a realidade em que vivemos é regulada pela rede digital invisível e onipotente, a tal ponto que seu colapso pode causar uma desintegração global "real".

O que foi, então, o bug do milênio? Talvez o penúltimo exemplo do que Lacan chamava de "pequeno objeto a", uma minúscula partícula de poeira que dá corpo à falha no interior do grande Outro, da ordem simbólica. E aqui a ideologia entra na história: o bug é o objeto sublime da ideologia. O próprio termo é revelador em vista de seus quatro sentidos: uma falha ou um defeito; uma doença, como um vírus de gripe; um inseto; um fanático. Essa flutuação do sentido leva a cabo a mais elementar das operações ideológicas: uma simples falta ou falha é imperceptivelmente transformada numa doença, que é então alocada em uma causa positiva, um "inseto" perturbador dotado de uma certa atitude psíquica (o fanatismo), uma pane puramente negativa adquire assim existência positiva na figura de um fanático a ser exterminado como um inseto... e assim mergulhamos fundo na paranóia.

Metáfora animal

Por volta do fim de 1999, o principal periódico de direita da Eslovênia estampou a seguinte manchete: "Será mesmo um perigo ou só uma farsa?", insinuando que certos círculos financeiros obscuros estavam propalando o pânico do "bug do milênio" a fim de usá-lo em alguma gigantesca trapaça... Aliás, o "bug", o besouro, não era mesmo a melhor metáfora animal para a imagem anti-semita do judeu, um inseto daninho que introduz degeneração e caos na vida social, a verdadeira causa oculta de todos os antagonismos sociais?

Numa jogada que espelha simetricamente a paranóia direitista, Fidel Castro, tão logo se tornou claro que não havia bug nenhum, que as coisas seguiriam adiante, denunciou o pânico do bug como conspiração promovida pelas grandes companhias de computadores, destinada a fazer com que as pessoas comprassem máquinas novas. E com efeito, quando se tornou claro que o bug fora um alarme falso, ouviram-se acusações de toda parte: devia haver alguma razão para tanto barulho por nada, algum interesse oculto (financeiro) que havia propalado o perigo, não é possível que simplesmente todos os programadores tenham feito o mesmo erro tremendo! O tema da discussão transformou-se então em um típico dilema pós-paranóico: houve mesmo um bug, cujas conseqüências catastróficas foram evitadas graças às cuidadosas medidas preventivas, ou será que não havia nada, de modo que as coisas podiam ter seguido adiante sem os bilhões de dólares gastos com as tais medidas? Eis aí, mais uma vez, o "pequeno objeto a", o vazio que "é" o objeto-causa do desejo, em sua forma mais pura: um certo "nada", uma entidade sobre a qual não se sabe se "realmente existe" ou não e que, assim mesmo, como o olho de um furacão, causa uma comoção gigantesca a seu redor.

Socializar a rede

Sendo assim, talvez possamos concluir com uma modesta idéia marxista: uma vez que a rede digital afeta a todos, uma vez que ela já é a rede que regula nossa vida cotidiana até mesmo em suas facetas mais comezinhas, como o suprimento de água, ela deveria ser socializada de um modo ou de outro.

A digitalização de nossas vidas cotidianas torna realmente possível um controle à maneira do "Big Brother", diante do qual a velha supervisão da polícia secreta comunista é uma primitiva brincadeira de criança. Aqui, mais do que nunca, deve-se insistir que a melhor reação a essa ameaça não é a retirada para alguma ilha de privacidade, mas a socialização mais vigorosa do espaço cibernético.

Fonte:

Folha de São Paulo, 29/10/2000

Poema em linha reta - Fernando Pessoa

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

terça-feira, 2 de março de 2010

"A Vida é a Arte do Encontro..." - Os Filhos da Outra cantam Vinícius de Moraes

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Quando: Dia 03/03/2010 – 18 horas
Onde: Auditório da CESMA - Rua: Professor Braga, 55 - 3º andar - Centro - Santa Maria/RS
Após o show, exibição do filme Vinícius, dentro da programação do Cine Lanterninha.

Os Filhos da Outra são: Adriano Souza, Guilherme Roos dos Santos, Tiago Araújo e Uiliam Ferreira Boff.

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Cineclube Lanterninha Aurélio
Projeto Cultural CESMA - Santa Maria/RS - Desde 1978
Filiado ao CNC - Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros
Cesma Vídeo ( Locadora da Cesma )

Ciclo Brasil de Todos os Sons / Mostra de Documentários Musicais Brasileiros

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"Vinícius de Moraes poeta essencialmente lírico, o poetinha (como ficou conhecido) notabilizou-se pelos seus sonetos. Conhecido como um boêmio inveterado, fumante e apreciador do uísque, era também conhecido por ser um grande conquistador. O poetinha casou-se por nove vezes ao longo de sua vida.

Sua obra é vasta, passando pela literatura, teatro, cinema e música. No campo musical, o poetinha teve como principais parceiros Tom Jobim, Toquinho, Baden Powell e Carlos Lyra. A montagem de um show é o ponto de partida para a reconstituição de uma trajetória sem paralelos no cenário cultural do país.

A vida, os amigos, os amores de Vinicius de Moraes, autor de mais de 400 poesias e cerca de 400 letras de música. A essência criativa do artista e filósofo do cotidiano e as transformações do Rio de Janeiro através de raras imagens de arquivo, entrevistas e interpretação de muitos de seus clássicos.

Com depoimentos e atuações musicais de: Caetano Veloso, Carlos Lyra, Chico Buarque, Ferreira Gullar, Edu Lobo, Francis Hime, Gilberto Gil, Miúcha, Maria Bethânia, Tonia Carrero, Toquinho, Yamandú Costa, Adriana Calcanhoto, Mariana de Moraes, Sérgio Cassiano, Zeca Pagodinho e Mart`nália."


"Pergunte pro seu Orixá: Amor só é bom se doer."

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segunda-feira, 1 de março de 2010

Falência do Estado e assalto aos bancos - Texto de Robert Kurz

O pior já passou, assim reza a fórmula oficial de exorcismo. Na realidade, apenas se estreitou o horizonte da percepção. Já não se quer pensar em períodos cíclicos (muito menos históricos), mas apenas em valores mensais. Também é tabu o tema das relações estruturais no mercado mundial, tal como o do relacionamento entre o Estado e a economia. Apenas têm saída as pretensas histórias de sucesso de empresas e sectores econômicos. Mas não adianta enterrar a cabeça na areia. O “caso Grécia" trouxe à luz do dia que agora, sem grande surpresa, o verme da crise vai roendo as finanças públicas. A primeira insolvência de facto de um importante Estado membro da União Européia é um sinal fatídico para a evolução futura. Espanha, Portugal, Irlanda, Itália e naturalmente o leste da Europa são os próximos candidatos a ficar na corda bamba, e não só. Já se podem ouvir os sussurros de que também a condição financeira dos centros capitalistas, E.U.A., Grã-Bretanha, França e Alemanha, poderá ter-se agravado dramaticamente. As conseqüências dos pactos de salvamento sem precedentes e dos programas de apoio econômico, que deveriam estimular e simular a retoma do crescimento, ameaçam repercutir-se a curto e médio prazo no sistema financeiro e na conjuntura econômica.

A União Européia quer tapar as fissuras no vigamento, colocando sob curatela o orçamento de Estado da Grécia. De trimestre em trimestre devem tornar-se obrigatórias drásticas medidas de contenção. Isso vai levar ao colapso dos sistemas sociais e da economia doméstica, num país já perturbado. Se o caso é apresentado como exemplo, pode-se calcular o que acabará por chegar, mais cedo ou mais tarde, a todos os países centrais, dentro e fora da União Européia (incluindo o milagre econômico chinês). Na Alemanha, o aperto da tarraxa nas contribuições do seguro de saúde é apenas uma pequena prova antecipada. Uma nova onda de desmantelamento dos sistemas de previdência estaduais e das infra-estruturas públicas junta-se com a onda iminente de falências de empresas e de despedimentos. Também neste aspecto a Grécia pode ser pioneira.

Ao mesmo tempo, a zona euro está sujeita a um teste de resistência. Revela-se como ilusão a ideia de que pudesse ascender a nova moeda mundial a construção artificial do Euro, implantada no contexto da concorrência da globalização, com base em níveis nacionais de acumulação e de produtividade completamente diferentes. A travagem de emergência nas finanças gregas mostra a fragilidade do sistema monetário europeu. No apuro em que se encontram, os países da União Européia deitam mão a meios musculados para impor rédea curta aos paraísos fiscais, há muito tolerados nas suas fileiras. Um debate animado, no primeiro canal da televisão alemã, sobre o novo “assalto aos bancos na Suíça", é bem eloqüente. Depois de Steinbrück, por maioria de razão também Schäuble gostaria de limpar os cofres suíços. Perante a montanha da dívida, na ordem de grandeza dos biliões de euros, o “assalto aos bancos” feito pelo Estado, que poderá trazer 200 milhões na melhor das hipóteses, só pode ser descrito como desespero. Assim se tornam também evidentes as contradições entre o sistema jurídico nacional e o internacional. Neste ponto, os problemas agora são resolvidos, por assim dizer, a murro. A crise econômica mundial está longe de terminada. Depois dos mercados financeiros, são as finanças públicas que constituem o próximo catalisador duma desestabilização econômica, em que a desvalorização geral do capital vai abrindo caminho aos solavancos.

Original STAATSBANKROTT UND BANKÜBERFALL in www.exit-online.org. Publicado Neues Deutschland, 05.02.2010

Fonte: http://o-beco.planetaclix.pt/rkurz356.htm