quarta-feira, 24 de março de 2010

24 de março, 5 da manhã... Poema obsceno

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Poema obsceno


Façam a festa
cantem e dancem
que eu faço o poema duro
o poema-murro
sujo
como a miséria brasileira


Não se detenham:
façam a festa
Bethânia Martinho
Clementina
Estação Primeira de Mangueira Salgueiro
gente de Vila Isabel e Madureira
todos
façam
a nossa festa
enquanto eu soco este pilão
este surdo
poema
que não toca no rádio
que o povo não cantará
(mas que nasce dele)
Não se prestará a análises estruturalistas
Não entrará nas antologias oficiais
Obsceno
como o salário de um trabalhador aposentado
o poema
terá o destino dos que habitam o lado escuro do país
- e espreitam.


(Ferreira Gullar)



Hino dos Comedidos

Não me agradam esse homens
bem fracionados no tempo,
cedendo-se amavelmente
em todas as ocasiões
e mais também não me agradam
os partidários tão vários,
de toda moderação.
Vou passando bem distante
desses homens comedidos
deses homens moderados.

Antônio guarda seu vinho
muito mais de vinte anos
para bebê-lo mais velho
Clara não estréia o vestido
quer outra oportunidade.

Os noivos em castidade
bem além de doze anos
ainda apregoam o amor.

Os homens de ferro hoje
só sabem anunciar
uma mensagem de espera.
Aguarda a felicidade,
Vê o momento oportuno,
Não penses nunca em amor
Nem sejas tão ansioso,
resiste à melhor viagem
desconhece a emoção.

O hino dos comedidos
de todos bem fracionados
a humanidade invadiu.
Desejam oportuníssimos
Sempre expelindo relógios
aguardam os melhores instantes
subdivididos em prazos
doutrinam sincronizados
Sofrendo convencionais
Apenas grandes tristezas
Creditadas nos jornais.

Eu? Eu já sou diferente.
Não sei viver minha vida
entoada nesse hino
Esterelizada em prazos
De regras universais.
Não me situo na espera
E por profissão de fé
Acredito em circunstância
Acredito em vida intensa,
Acredito que se sofra,
mesmo muito, por amor.

Adeus homens moderados,
Adeus que sou diferente.
Compreendo a mulher que rasga
as vestes em grande dor
e sinto imensa ternura
pelo homem desesperado.

(Lupe Cotrin)



O medo

Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.

E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.

Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
Doenças galopantes, fomes.

Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.

Fazia frio em São Paulo...
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça.

Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno,
De nós, de vós: e de tudo.
Estou com medo da honra.

Assim nos criam burgueses,
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?

Vem, harmonia do medo,
vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas

do homem só. Ajudai-nos,
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se.

Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.

E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.

O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.

Tenhamos o maior pavor,
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.

Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,

eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.

(Carlos Drummond de Andrade)

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