Uma transformação social de grande envergadura pode ser um sonho. Uma condição em que superamos um modo de viver onde aparecemos como coisas para uns, objetos para outros, como meros meios para fins que nos são alheios, pode ser um sonho. E haverá mesmo quem diga que esses desejos todos, e a própria emancipação que ansiamos, não passam de puro sonho. No entanto, há que se admitir que é um sonho que não se sonha só. O que é então sonhar? E o que é que são os sonhos? Por que afinal sonhamos? O que sabemos, de fato, é que sonhamos, e sonhamos muitas vezes acordados. Em algumas situações, chegamos ao ponto de vermos-nos mesmo face a face com os nossos sonhos. Mas o certo é que raras são as vezes em que os tocamos. E mais raras ainda são as vezes em que com eles permanecemos. Por que isso acontece?
Slavoj Zizek arrisca uma resposta. Em um brilhante ensaio lançado recentemente, intitulado Mao Tsé-Tung, “Senhor do Desgoverno” marxista, o filósofo esloveno apresenta, de forma clara e sucinta, elementos-chave de suas concepções sobre cultura, política, dialética e revolução.
O escrito foi concebido para servir de apresentação a uma nova edição de Sobre a prática e a contradição (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008), uma das obras mais famosas do velho líder político chinês. O texto é, pois, uma introdução crítica à filosofia de Mao, onde as contradições teóricas e práticas do timoneiro da Revolução Chinesa são expostas no mesmo movimento em que a tentativa de sua superação, por parte de Zizek, aparece.
O ponto de partida da reflexão zizekiana é o de que a transposição de uma teoria para um universo diferente do seu lugar de origem altera, necessariamente, a própria teoria. Isto não é, contudo, um fato merecedor de condenação, pois é essa alteração que constitui, em certas circunstâncias, a própria condição de possibilidade da universalização daquela teoria. Assim, por exemplo, a modificação que Lenin fez da teoria de Marx - a tese, formulada pelo filósofo alemão, de que a revolução deveria se dar no país mais desenvolvido, com o líder bolchevique passou a dar conta de uma estratégia de luta política num país relativamente atrasado, a Rússia - não foi algo “anormal”. O mesmo pode ser dito, nesse contexto, da alteração que depois Mao realizaria da teoria do próprio Lenin, isto é, substituindo o proletariado, como sujeito social da revolução, pelo campesinato, na China.
Ora, diz Zizek, para que uma teoria se universalize, de modo a dar conta de uma conjuntura concreta e poder orientar aí uma práxis genuinamente revolucionária, esses tipos de modificações da teoria original devem necessariamente ocorrer - a teoria, num contexto diverso, “se reinventa”, afirma o filósofo esloveno. Isto, por si mesmo, não é um problema. Contudo, também não é sinal de que ela terá sucesso. Zizek se debruça então a analisar criticamente a filosofia política de Mao Tsé-Tung a fim de constatar o porquê de, na China, depois de enormes, dramáticos e trágicos acontecimentos revolucionários, a tão sonhada emancipação humana, proposta fundamental do comunismo de Marx, não logrou se realizar. Quais foram os limites do pensamento e da prática política de Mao? Quais as suas contradições? Em que, porventura, esteve equivocado? Que aspectos poderão ainda, quiçá, ser repetidos?
A dialética de Mao tem pontos fortes, garante Zizek, no que se refere à questão da contradição, e possivelmente seja esta a sua principal contribuição à filosofia marxista. É preciso aqui atentar para as distinções feitas pelo líder chinês entre contradições principais e não-principais, e entre contradições antagônicas e não antagônicas, em uma conjuntura histórica determinada. Que vêm a ser tais distinções?
No texto Sobre a contradição, Mao desenvolve uma tese que procura diferenciar os aspectos “principais” e os “não principais” de um processo social e político contraditório. Leiamos o que escreve:
“Por exemplo, na sociedade capitalista, as duas forças em contradição, o proletariado e a burguesia, formam a contradição principal. As demais contradições, como aquelas entre a classe feudal remanescente e a burguesia, entre a pequena burguesia camponesa e a burguesia, entre o proletariado e a pequena burguesia camponesa, entre os capitalistas não-monopolistas e os capitalistas monopolistas, entre a democracia burguesa e o fascismo burguês, entre países capitalistas e entre o imperialismo e as colônias, todas são determinadas ou influenciadas por essa contradição principal...
Quando o imperialismo lança uma guerra de agressão contra um país assim, todas as suas várias classes, à exceção de alguns traidores, podem temporariamente unir-se em guerra nacional contra o imperialismo. Nessa ocasião, a contradição entre o imperialismo e o país afetado torna-se a contradição principal, ao passo que todas as contradições entre as várias classes sociais dentro do país (incluída a que era a principal, vale dizer a contradição entre o sistema feudal e as grandes massas do povo) ficam temporariamente relegadas a posição secundária e subordinada.” (Mao Tsé-Tung, apud Zizek, op cit. p. 13)
Segundo Mao, portanto, a contradição principal - que é a que se universalizou numa determinada formação social concreta - não se sobrepõe àquela que deve ser tratada como a contradição predominante numa situação particular. Em outras palavras, há, num período histórico, uma contradição “universal” (como a que existe entre burguesia e proletariado). Mas numa conjuntura específica, uma outra contradição, que em relação à primeira, de início, era tida como não principal, pode vir a fazer as vezes de contradição principal (por exemplo: num período histórico, segundo Mao, a contradição entre os interesses da nação contra o imperialismo pode se sobressair em relação àquela primeira contradição entre burguesia e proletariado, fazendo que esta, na luta contra o imperialismo, passe para o segundo plano - mas que não seja de forma alguma superada por isso). Embora haja, então, de princípio, uma contradição universal, num dado momento a contradição não principal pode adquirir o seu lugar, sem anulá-la.
A outra reflexão importante de Mao é acerca das contradições antagônicas e não antagônicas. Vejamos o que afirma:
“As contradições entre nós e o inimigo são contradições antagônicas. Nas fileiras do povo, as contradições em meio ao povo trabalhador não são antagônicas, enquanto aquelas entre as classes exploradas e exploradoras têm um aspecto não antagônico e um aspecto antagônico. … Sob a ditadura democrática do povo, dois diferentes métodos, um ditatorial e outro democrático, devem ser usados para resolver os dois tipos de contradições, que diferem por natureza – as contradições entre nós e o inimigo, e as contradições em meio ao povo.” (Mao Tsé-Tung, apud Zizek, idem, p. 15)
Na sociedade de classes atual, existe um antagonismo fundamental na relação contraditória estabelecida entre burgueses e proletários. No campo destes, no entanto, apesar das contradições entre os seus diversos setores constituintes, não há, de princípio, tal antagonismo. Mas por causa das várias diferenças existentes entre as classes proletárias, pode surgir e se desenvolver, em virtude das condições mutantes dos conflitos, um verdadeiro antagonismo – ou seja, algumas parcelas das classes trabalhadoras podem passar para o lado da burguesia, tornando-se, desse modo, antagonistas dos demais trabalhadores. Para Mao, é preciso vigilância e luta constante para não deixar isso acontecer. Tal concepção mostra, dentre outras coisas, como o velho líder chinês tinha consciência do peso da subjetividade no processo de combate e superação da ordem capitalista.
Esses são os aspectos que merecem maior consideração na filosofia de Mao. Quais, então, as suas limitações? A falha desta filosofia política, segundo Zizek, está na sua recusa à idéia dialética da síntese, da unidade entre os contrários. Mao tem razão, sim, em romper com as noções padronizadas de síntese enquanto mero equilíbrio e conciliação entre os opostos, pois, de fato, o conceito de Aufhebung (isto é, de síntese dialética) hegeliana é muito mais complexo que isso. No entanto ele insiste unilateralmente em priorizar a luta e rejeitar qualquer tipo de síntese ou de unidade entre os contrários. Ou seja, Mao nega a noção vulgar de síntese, mas recusa também, de antemão, que exista qualquer forma possível de síntese. A processualidade do real se daria assim meramente por meio de negação e afirmação, e nunca se verificaria o momento da negação da negação. Como explica Zizek:
“Mao rejeita de forma cáustica a categoria da 'síntese dialética' dos contrários, promovendo sua própria versão da 'dialética negativa' – toda síntese é, para ele, em última instância, o que Adorno em sua crítica a Lukács chamou de erpresste Versöhung (reconciliação forçada), na melhor das circunstâncias momentânea pausa na luta verdadeiramente em processo, que ocorre não quando os contrários estão unidos, mas quando um lado simplesmente vence o outro.” (idem, p. 19)
Para Mao, em sua “ontologia”, tudo está condenado a se dividir, e nada realmente se sintetiza. Quais são as conseqüências políticas desse tipo de orientação teórica?
Grosso modo, para a filosofia hegeliana, o real é composto de uma unidade de contrários em permanente luta. Para cada afirmação, há uma correspondente negação. Desse processo emerge uma terceira coisa, que é produto da negação da negação. Dito de outro modo: há, num primeiro “momento”, a tese, que em seguida é negada pelo seu contrário – a sua antítese -, e desse conflito surge a síntese, o terceiro “elemento”, um ente que nega a negação realizada pela antítese sobre a síntese. A síntese é o ápice do processo em que os contrários lutam entre si e o ser emerge numa terceira configuração, “qualitativamente diferente” das duas primeiras. Há, dessa maneira, dois momentos na transformação do ser: o primeiro é a negação; o segundo, o decisivo, corresponde à negação da negação, a síntese hegeliana. (Para designar a síntese, Hegel utiliza a palavra alemã Aufhebung, que significa simultaneamente negação, conservação e superação). Finalmente, uma vez constituída a síntese, o ser volta a se dividir internamente, a formar novas teses, novas antíteses, novas sínteses, e assim sucessivamente. É exatamente esse tipo de raciocínio que Mao rejeita por completo. Para ele, só afirmação e negação se sucedem. Nada de fato se sintetiza, e tudo volta sempre a se dividir.
Se não há a síntese, pensa Mao, o próprio comunismo, enquanto forma de organização social que elimina o conflito fundamental do capitalismo, deve poder também se transformar, no sentido de a sociedade aí voltar a se cindir, dando origem a novos antagonismos, novas teses e antíteses, sem a possibilidade de alguma Aufhebung. Por rejeitar assim a possibilidade de superação da luta entre os contrários, o autor de Sobre a prática e a contradição foi levado, de maneira coerente com os princípios que adotava, a deixar em aberto o problema da luta de classes. Nas suas palavras:
“Deixemos que tendam para o capitalismo. A sociedade é muito complexa. Não seria demasiado simples se apenas tendêssemos para o socialismo e não para o capitalismo? Não faltaria a unidade dos contrários, não estaríamos sendo apenas unilaterais? Deixemos que o façam. Deixemos que nos ataquem loucamente, que façam demonstrações nas ruas, que tomem as armas para rebelar-se – eu aprovo todas essas coisas. A sociedade é muito complexa, não existe uma só comuna, um só hsien, um só departamento do Comitê Central que não possamos dividir em dois.”(Mao Tsé-Tung, apud Zizek, idem, p. 28).
Por rejeitar a noção de síntese dialética e assumir apenas a realidade do conflito que se desenvolve em interminável sucessão de afirmações e negações, Mao acabou abrindo a possibilidade prática para a reafirmação do conflito entre as classes, o que por sua vez eliminou, segundo Zizek, a viabilidade da realização do comunismo na China. A Revolução Chinesa conseguiu assim negar a ordem social anterior, conseguiu afirmar uma nova ordem, mas não pôde ir além disto, não realizou a negação da negação. Verificou-se uma mudança na ordem, mas não da ordem, como Hegel estabelece que necessariamente deve haver se se pretende levar a efeito um processo genuinamente revolucionário. Nas palavras do filósofo esloveno,
“O problema de Mao foi justamente a falta de 'negação da negação', o fracasso das tentativas de transpor a negatividade revolucionária em nova ordem verdadeiramente positiva. Todas as estabilizações temporárias da revolução equivaliam a outras tantas restaurações da velha ordem, de tal modo que a única forma de manter a revolução viva era a 'infinidade espúria' da negação repetida interminavelmente, que atingiu seu ápice na Grande Revolução Cultural. (Zizek, idem, p. 30).
É neste sentido que, segundo Zizek, Mao foi o “Senhor do Desgoverno” marxista. Na Europa da Idade Média, um dos costumes das casas feudais era escolher um “senhor do desgoverno”, um sujeito que, num dia qualquer de festividade, seria considerado o mentor das atividades gerais. Durante esse dia, a ordem e a hierarquia usuais estariam abolidas. Os papéis de gênero eram revertidos, os aprendizes tomavam o lugar dos mestres, etc. Mas quando esse momento de exceção acabava, os “senhores do desgoverno” e os antigos amos voltavam às suas ocupações habituais. O fracasso de Mao, pois, tem a ver com essa incapacidade de, uma vez instaurado o “desgoverno” - a reversão da ordem tradicional -, não ter conseguido “negar a negação”, isto é, transcender completa e radicalmente a própria ordem que foi brevemente negada. Houve, portanto, uma negação dentro da ordem, mas não da própria ordem mesma. Dito de outro modo: por um curto período de tempo, no interior de uma determinada estrutura de relações sociais, alguns elementos trocaram de posição. Mas o processo decisivo, de alterar a ordem que exigia a presença da hierarquia e do posicionamento antagônico, em direção a outra, qualitativamente diferente, organizada de forma horizontal, não se logrou alcançar.
Por isso Zizek afirma que a revolução levada a cabo pelo líder chinês foi certamente negativa, mas de forma alguma foi sintética, ou “superadora”, isto é, não estabeleceu na prática a “negação da negação”. Tal foi a fraqueza central do pensamento e da política de Mao. Faltou-lhe a radicalidade para, uma vez transformada a ordem dentro de certos pressupostos, modificar, em seguida, os próprios pressupostos em que a ordem havia sido inicialmente mudada. Como explica brilhantemente Zizek,
“A verdadeira revolução é a 'revolução com revolução', uma revolução que, em seu transcurso, revoluciona seus próprios pressupostos iniciais. Hegel pressentiu essa necessidade quando escreveu: 'É uma loucura moderna alterar um sistema ético corrupto, sua constituição e legislação, sem mudar a religião, ter uma revolução sem reforma.' Hegel anunciava, assim, a necessidade de uma Revolução Cultural como condição para o sucesso da revolução social. Isso significa que o problema com as tentativas revolucionárias até agora não é que elas tenham sido 'demasiado extremadas', mas que não foram suficientemente radicais, que não questionaram seus próprios pressupostos.” (Zizek, idem, p. 33).
Aqui começamos a chegar talvez no ponto mais interessante na reflexão do filósofo esloveno. Para ele, como dissemos, há dois momentos no processo revolucionário: o primeiro é o que se dá dentro da ordem; o segundo diz respeito à transformação da ordem mesma. A primeira atitude é a da negação; a segunda é a da negação da negação. A Revolução Chinesa, com todas as transformações sociais, econômicas, culturais e políticas que promoveu, conseguiu varrer com violência um velho mundo que até então se afirmava oprimindo a grande nação oriental. Um ato desse tipo é, sem dúvida, a precondição para que outra formação social nova possa nascer. Mas uma segunda etapa, a da “invenção da nova vida”, deve acontecer na seqüência. Uma situação onde ocorre “não apenas a construção da nova realidade social na qual nossos sonhos utópicos serão realizados, mas a (re)construção desses próprios sonhos” (Zizek, idem, p. 34, grifo nosso em negrito).
Entra agora em cena o referencial psicanalítico com o qual Zizek analisa a sociedade e a cultura. Seguindo a linha interpretativa desenvolvida anteriormente por intelectuais ligados à Escola de Frankfurt, o filósofo esloveno toma a cultura como uma objetivação que, no âmbito da sociedade, corresponde àquilo que o sonho é no plano da existência psíquica individual: a realização de desejos originados por conflitos desencadeados no pretérito e que continuam a existir, numa instância “inconsciente”, no presente. A cultura seria uma espécie de “sonho coletivo”, onde se verificam alguns fragmentos de consciência envoltos num grande oceano de inconsciência. Nas sociedades divididas em classes, observamos esse conflito fundamental se expressar, de várias formas, nas obras de arte, na disposição da cidade, na arquitetura, na moda, nos interiores, etc, e certamente nos ideais políticos, que são, algumas vezes, o produto mais ou menos acabado da interpretação dos sonhos coletivos.
Nas sociedades de classes, então, o sonho que muitas vezes a população alimenta, ora velada, ora abertamente, e que as teorias políticas tentam dar conta de interpretar, de modo a proporcionar que, uma vez que os sujeitos coletivos estejam conscientes do seus conflitos, possam vir a superá-los, é o sonho, justamente, da emancipação do profundamente arraigado conflito de classes. Nesse contexto, a revolução comunista é como se fosse, literalmente falando, a realização de um sonho cultivado coletivamente. Ora, no século XX assistimos a várias revoluções desse tipo, ainda que cada uma delas tenha tido a sua configuração e o seu desfecho específicos. No caso particular da Revolução Chinesa, o que é que de fato ocorreu para que esse sonho, anteriormente ao alcance das mãos e até mesmo momentaneamente manipulado, se esvaecesse no ar de forma a produzir o retorno do capitalismo, mas desta vez numa configuração muito mais brutal, chegando ao ponto de, conforme Zizek, constituir-se a China num “Estado capitalista ideal”, onde o capital explora o trabalho a seu bel-prazer e o Estado faz o “trabalho sujo” de manter o rígido controle sobre as classes proletárias? Sigamos o raciocínio do filósofo.
Conforme explicamos acima, em condições de grande opressão, os seres humanos tendem espontaneamente a fantasiar, idealizar, devanear, ansiar por uma realidade diferente, um mundo de redenção, utopia, emancipação, onde as condições do sofrimento vigente estejam definitivamente abolidas. Se isso, quiçá, vier a nos acometer, de novo, um dia, no século XXI – e isso pode estar acontecendo neste exato momento... -, talvez uma vez mais venhamos a nos organizar, lutar, reivindicar, aprender, analisar, teorizar, compreender os nossos sonhos mais íntimos de outrora, agir, refazer estratégias, reinvestir contra a ordem opressora, até que uma conjuntura surja onde esta ordem começará a ser negada por completo. Aparecerá então uma situação nova em que poderemos assumir a condição de sujeitos de nossas próprias vidas e passaremos a dispor de meios para a reinvenção de nossa forma de existência coletiva. Com os motivos da opressão assim derrotados, será como se estivéssemos “realizado o sonho” historicamente cultivado de emancipação. Mas quando isso acontecer, recomenda-nos Zizek, devemos ter a mais cuidadosa e refinada atenção. Uma vez “realizado o sonho”, é preciso “encontrar um caminho para começar a imaginar a Utopia que se vai iniciar”. O filósofo esloveno serve-se aqui das palavras de Fredric Jameson para explicar que, tão logo dermos o primeiro passo para a construção da Utopia, devemos
“pensar o novo começo do processo utópico como uma espécie de desejar o desejo, aprender a desejar – a invenção do desejo chamado Utopia em primeiro lugar, juntamente com novas regras para fantasiar ou sonhar acordado sobre tal coisa – um conjunto de protocolos narrativos sem precedente em nossas instituições literárias prévias” (Jameson, apud Zizek, idem, p. 34, grifo nosso em negrito).
O grande perigo que nos acomete no momento em que “realizamos o sonho” é não podermos transcendê-lo, isto é, não conseguirmos criar um outro novo desejo e um outro novo sonho que nos estimule a seguir adiante. Por quê? Porque os desejos e sonhos que criamos em determinadas circunstâncias são a expressão de um conflito estabelecido a partir de certas situações concretas. Esses conflitos são os pressupostos dos quais os sonhos e desejos de emancipação são a expressão. Se nós realizamos o sonho, mas não transformamos radicalmente o conflito primevo - o pressuposto do qual emergiu o sonho -, e que agora momentaneamente se estancou, esse conflito tende a se afirmar de novo. Por isso, uma vez realizado o sonho, isto é, uma vez suspensa a condição conflitiva que se constituía em pressuposto fundamental do próprio sonho, é preciso negar o próprio pressuposto, o que por sua vez nos dará a possibilidade de elaborar novos tipos de sonhos, de dar à luz novos desejos que nos permitirão, finalmente, deixar o passado para trás. Como explica Zizek:
“A referência à psicanálise aqui é crucial e muito precisa: numa revolução radical, as pessoas não só 'realizam seus velhos sonhos (de emancipação etc.); mais propriamente, elas têm de reinventar seus próprios modos de sonhar. (…) Aí reside a necessidade da Revolução Cultural, muito bem entendida por Mao: como Herbert Marcuse disse em outra maravilhosa fórmula circular da mesma época, a liberdade (das limitações ideológicas, do modo predominante de sonhar) é a condição da libertação, isto é, se apenas mudamos a realidade para realizar nossos sonhos, e não mudamos esses próprios sonhos, cedo ou tarde regressamos à velha realidade. Existe uma 'posição de pressupostos' hegeliana funcionando aqui: o pesado trabalho de libertação forma retroativamente seu próprio pressuposto.” (p. 34)
Somente modificando os sonhos, os pressupostos dos sonhos e a própria forma de sonhar, conseguimos suplantar a origem dos males que nos afligem. Mao Tśe-Tung compreendeu isso, fato que atesta a sua percepção para a importância de uma revolução cultural em concomitância com a revolução social. Mas ele não logrou atingir o objetivo de revolucionar os pressupostos que estavam na base da sua ação revolucionária. Transformou uma determinada ordem, mas não a modificou em suas raízes. O resultado de todo esse fracasso – a “justiça poética da história”, como diz Zizek - assistimos hoje com o violento e brutal retorno do capitalismo à China. Por que isso se sucedeu assim?
Compreendamos o seguinte. Que é que se preocupa em produzir o capitalismo em nossos dias? Segundo Zizek, o sistema já não se processa mais pela “generalização da normalidade”, isto é, já não visa produzir padrões de comportamento, cultura e práticas sociais calcadas em rígidas concepções do que se poderia considerar “normal”. A lógica do capital hoje é a do “excesso errático”:
“Quanto mais variado, e mesmo errático, melhor. A normalidade começa a perder sua força. As regularidades começam a afrouxar. Essa frouxidão da normalidade é parte da dinâmica do capitalismo. Não é uma simples liberação. É a própria forma de poder do capitalismo. Não é mais o poder institucional disciplinador que tudo define, é o poder do capitalismo de produzir variedade – porque os mercados ficam saturados. As mais estranhas tendências afetivas são aceitas, desde que vendam. O capitalismo começa a intensificar ou a diversificar o afeto, mas apenas para extrair mais-valia. Ele seqüestra o afeto para intensificar o poder de lucro. Ele literalmente valoriza o afeto. A lógica capitalista de produção de mais-valia começa a dominar o campo das relações, que é também o domínio da ecologia política, o campo ético da resistência às identidades e às trajetórias previsíveis. É tudo muito perturbador e confuso, porque me parece que houve um certo tipo de convergência entre a dinâmica do poder capitalista e a dinâmica da resistência.” (Massumi, apud Zizek, idem, p. 36, grifo nosso em negrito)
Nesse processo de generalização do “variado”, de produção de mercadorias e geração de padrões culturais que fujam do estigma da normalidade, o capital deve se auto-revolucionar constantemente. Aí é que está o grande limite da teoria e da prática política de Mao, segundo Zizek. Por não estar imbuído de uma concepção dialética de síntese, por ser mesmo contrário a qualquer possibilidade de síntese e estar baseado meramente num conjunto de práticas negativas em relação à ordem que desejava superar, o auto-revolucionamento maoísta, “a luta permanente contra a ossificação das estruturas do Estado, e as dinâmicas internas do capitalismo”, acabou mantendo uma profunda homologia estrutural com o sistema que gostaria de ter transcendido.
A contradição de Mao foi então a de ter querido “revolucionar” o sistema baseado num conjunto de práticas estruturadas de forma homóloga às do capital. O resultado da não concretização do evento revolucionário desejado é o retorno do próprio sistema, mas agora não mais como senhor da ordem, da norma e da normalidade, e sim como “o verdadeiro senhor do desgoverno”, que rompe com todos os padrões, que varia e modifica tudo permanentemente, a fim de continuar reproduzindo-se a si mesmo.
Zizek se pergunta finalmente sobre o que é que podemos ainda tomar como lição do velho Mao, a fim de orientarmos nossas ações políticas atuais, mas desta vez sem cair nos equívocos cometidos pelo velho líder chinês.
“Como, então, poderemos revolucionar uma ordem cujo mais genuíno principio é o constante auto-revolucionamento? Essa talvez, seja a questão de hoje, e esse é o modo segundo o qual deveríamos repetir Mao, reinventando sua mensagem às centenas de milhões de pessoas que sofrem a opressão, uma simples e tocante mensagem de coragem: 'Não é para temer o que é grande. O grande será derrubado pelo pequeno. O pequeno se tornará grande.' (…)
'Não devemos ter medo.' Não será essa a única atitude correta diante da guerra? 'Primeiro, somos contra ela; segundo, não a tememos.' Há definitivamente algo de aterrador nessa posição – no entanto, esse terror nada mais é senão a condição da liberdade.”(Zizek, idem, p. 38).
Tais são as lições que Zizek tira de Mao e recomenda aos revolucionários do presente.
Referência:
ZIZEK, Slavoj. Mao Tsé-Tung, “Senhor do Desgoverno” marxista. in TSÉ-TUNG, Mao. Sobre a prática e a contradição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
segunda-feira, 22 de março de 2010
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