quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Lucien Goldmann – a fé profana e a aposta dos revolucionários

Uma das grandes questões debatidas pelos revolucionários é a sobre a possibilidade da revolução, da transformação radical do mundo capitalista e da construção de uma comunidade humana emancipada (comunismo). Afinal, tais coisas são possíveis? A modificação profunda e estrutural da sociedade capitalista se verificará um dia? Ou tudo permanecerá para sempre tal e qual é no presente? O pensador marxista romeno-francês Lucien Goldmann (1913-1970) desenvolveu teorizações importantes a esse respeito.

É preciso que se entenda, primeiramente, que a concepção sobre a possibilidade (ou impossibilidade) da revolução não se assenta em “juízos do indicativo”, isto é, em juízos científicos sobre o real. Goldmann parte da premissa de que não são “juízos de fato” - o que é – que poderão nos dar a certeza sobre o que poderá vir a ser, um dia, a sociedade humana. Não há certeza quanto ao futuro. Não há nada na realidade atualmente estabelecida que permita a quem quer que seja afirmar, com plena segurança, que a transformação radical do mundo irá acontecer ou não. Fosse a realidade finita, quiçá tivéssemos a chance de conhecê-la em sua inteireza. Mas não é. Trata-se, então, de uma questão de apostar.

Isto significa desprezar a razão e descartar o estudo consciente e sistemático da realidade concreta? É evidente que não. Se queremos transformar o mundo, revolucioná-lo, é preciso conhecê-lo o mais rigorosamente possível. É necessário realizar uma “análise concreta da situação concreta” para, em seguida, elaborar uma estratégia política de enfrentamento e superação da conjuntura posta. Mas, por mais que o saber nos dê alguma orientação sobre como agir diante de uma situação, ele não nos dá garantia de sucesso para o nosso empreendimento, pois cada ação carrega consigo um núcleo irredutível de não-saber sobre o contexto no qual nos movemos. Pensamos, elaboramos mentalmente, estabelecemos relações de causa e efeito entre os eventos, apreendemos uma parcela da infinitude do real que nos cerca, mas não apreendemos tudo. A razão, o pensamento, a teoria, têm sua importância e nós não devemos renunciar a elas. Mas aquilo que não sabemos sobre o real é sempre maior do que aquilo que sabemos. Portanto, o não-saber está sempre conosco, e nossas ações estão indefectivelmente imbuídas dessa incerteza.

Não devemos, contudo, nos intimidar. Temos que agir, mesmo sem a garantia absoluta do sucesso. Devemos usar a razão, aproveitar aquilo que ela nos faculta, e devemos aceitar também os seus limites, o não-saber, a incerteza sobre a multiplicidade de fatores que compõe a conjuntura na qual nos inserimos. Precisamos, portanto, apostar. A aposta revolucionária envolve justamente isto: a aceitação de que, apesar de usarmos a razão para nos orientarmos quanto ao movimento da realidade, ela nunca dá conta da totalidade do real. Toda ação envolve, portanto, risco, perigo de fracasso e esperança de sucesso. São estes os elementos que compõem a aposta dos revolucionários. Tal aposta não pode ser convertida em objeto de “prova” ou demonstração fatual por parte da ciência. Ela é decidida tão somente na ação comum, na práxis coletiva.

Todos nós devemos, todos os dias de nossas vidas, apostar – individual e coletivamente – em ações cujo sentido é dado pelo desejo de realização dos nossos objetivos. Se aceitamos essa tese, defendida por Goldmann em suas obras das décadas de 1950 e 1960, devemos concluir que, na ação revolucionária, a é um elemento de suma importância. A fé se baseia justamente na aposta. Mas não é, nesse caso, a fé religiosa numa realidade sagrada e transcendental, e sim a fé profana numa possibilidade imanente à sociedade: a da emancipação humana em relação às determinações fetichistas do capital.

A fé marxista é, assim, bem entendido, uma certa “atitude total, referente a valores transindividuais e capaz de abranger simultaneamente, numa unidade orgânica, 'a compreensão da realidade social, o valor que a julga e a ação que a transforma'” (cf. Löwy, p. 176). A fé marxista é, pois, uma fé na comunidade e em valores transindividuais. Lucien Goldmann a definiu sabiamente com estas palavras:

"A fé marxista é uma fé no porvir histórico, feito pelos próprios homens ou, mais exatamente, que cabe a nós fazer por nossa atividade, é uma aposta no sucesso de nossas ações; a transcendência que é objeto dessa forma de fé já não é nem sobrenatural nem trans-histórica, mas supra-individual, nada mais, mas também, nada menos."

A transformação revolucionária da sociedade não se faz, portanto, sem essa aposta. Assumamos, então, as possibilidades da razão, assumamos suas limitações, assumamos a fé profana na possibilidade da emancipação humana. Aceitemos o risco, o perigo do fracasso e a esperança do êxito. Apostemos, ajamos e sigamos em frente.

Referências:

LÖWY, Michael e NAÏR, Sami. Lucien Goldmann – ou a dialética da totalidade. São Paulo: Boitempo, 2008.

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