terça-feira, 6 de outubro de 2009

O Intelectual Coletivo e a Batalha das Idéias - Notas sobre o pensamento político de Antonio Gramsci

A teoria do partido político da classe operária foi um dos pontos principais do aprendizado de Antonio Gramsci antes de sua prisão pelo regime fascista e ocupa lugar de destaque nos seus Cadernos do Cárcere. Aí estão expostos alguns pontos distintivos fundamentais do partido revolucionário moderno, o partido comunista, que, como se sabe, Gramsci designa com o nome de “moderno Príncipe”. Este “moderno Príncipe” não se encarna num indivíduo, mas numa coletividade. É, por definição, o agente da vontade coletiva transformadora. Aquelas funções que Maquiavel atribuía a uma pessoa singular, Gramsci atribui a um organismo social, o partido político, “um dos elementos mais característicos da rede de organização que forma a moderna sociedade civil” (Cf. Coutinho, p. 117).

Para suas teorizações acerca do partido, Gramsci parte de algumas colocações lenineanas e termina por renovar essa herança de pensamento político. Nessa relação há, sem dúvida, ruptura e continuidade.

Nesse contexto, o que é que se propunha como a tarefa do partido em sua relação com a classe da qual é expressão? No livro Que fazer?, Lênin havia lançado suas primeiras concepções a esse respeito: “A tarefa básica do partido operário de vanguarda, do partido da revolução socialista, é a de contribuir para superar na classe operária uma consciência puramente trade-unionista, sindicalista, fornecendo ao contrário os elementos teóricos e organizativos para que essa consciência possa se elevar ao da consciência de classe, isto é, ao nível da totalidade, da compreensão não de uma conflitualidade imediata entre patrões e operários na luta pela fixação do salário (uma luta que não põe em discussão a própria relação capitalista do salariato), mas sim dos vínculos políticos globais da classe operária com as demais classes da sociedade, antagônicas, aliadas ou potencialmente aliadas. Situando-se nesse nível, graças à mediação do partido, a classe operária enfrenta diretamente a questão do Estado, a questão do poder.” (idem, p. 118).

Gramsci concorda com essa opinião e diz que a tarefa do “moderno Príncipe” é a de superar os resíduos corporativos (os momentos “egoístico-passionais”) da classe operária, que a leva a reivindicar apenas melhores salários e melhores condições de trabalho, “e contribuir para a formação de uma vontade coletiva nacional-popular, ou seja, de um grau de consciência capaz de permitir uma iniciativa política que englobe a totalidade dos estratos sociais de uma nação, capaz de incidir sobre a universalidade diferenciada do conjunto das relações sociais”(idem, p. 118). O partido não é mero organismo corporativo, mas um organismo político, universalizante, que supera os interesses “egoístico-passionais”, na direção de concepções mais abrangentes e de ações de caráter nacional e internacional. O partido representa a elevação de uma parte da classe, de sua “vanguarda”, “da fase econômico-corporativa para fase política, da particularidade para a universalidade, da necessidade para a liberdade” (idem, p. 119). Os trabalhadores devem fazer uso ativo desse instrumento que é o partido para superarem os seus interesses setoriais e meramente corporativos, a fim de atingir uma consciência precisa dos seus interesses enquanto classe, bem como do conflito social, político, econômico e cultural no qual estão inseridos, em relação antagônica com o capital.

Assim, tanto Lênin como Gramsci concordam que a experiência imediata do conflito entre operários e patrões leva apenas a uma consciência limitada, que resulta em passividade e impotência objetiva em face da necessidade social. A consciência de classe é uma consciência que vêm "de fora" - isto é, “de fora da práxis economicista, não de fora da ampla práxis totalizante que envolve o conjunto da sociedade”(idem, p. 119) -, pela mediação do partido. Somente essa passagem permite ao proletariado “superar suas divisões corporativas e tornar-se classe nacional, dirigente, hegemônica” (idem, p. 119).

Gramsci crê que a possibilidade da classe se tornar hegemônica passa pela capacidade de organizar uma vontade coletiva, homogênea e sistemática, capaz de cimentar um novo “bloco histórico” revolucionário, no seio do qual os operários assumem o papel de classe dirigente. Como explica Coutinho, “a construção homogênea dessa vontade coletiva é obra prioritária, segundo Gramsci, do partido político: aparece assim, com clareza, o papel de síntese, de mediação, que o partido assume, não apenas em função dos vários organismos particulares da classe operária (sindicatos, etc.), mas também em função dos vários institutos das demais classes subalternas; e esses organismos e institutos – graças à mediação do partido – tornam-se as articulações do corpo unitário do novo ‘bloco histórico’” (idem, p. 120).

Gramsci não entende a formação da vontade coletiva de modo subjetivista ou voluntarista. Essa vontade coletiva é a “consciência operosa da necessidade histórica” (Gramsci, apud Coutinho, p. 120), ou, a “necessidade elevada à consciência e convertida em práxis transformadora” (idem, p. 120). “E dado que uma vontade coletiva só pode ser suscitada e desenvolvida quando existem condições objetivas para tanto, o partido tem de realizar ‘uma análise histórica (econômica) da estrutura social do país dado’, como condição para elaborar uma linha política capaz de incidir efetivamente sobre a realidade” (idem, ibidem).

A ação política ideal é aquela que sintetiza espontaneidade e direção consciente. Nem o espontaneísmo sozinho pode conduzir a classe operária à consciência de classe, nem um ato arbitrário do partido imposto “pelo alto”. O caminho proposto por Gramsci é uma unidade entre ambas as coisas. Nas palavras do filósofo italiano, “essa unidade da ‘espontaneidade’ com a ‘direção consciente’ (ou seja, com a ‘disciplina’) é precisamente a ação política real das classes subalternas, enquanto política de massa e não simples aventura de grupos que dizem representar as massas” (Gramsci, apud Coutinho, 121). A tarefa central do partido é buscar essa unidade.

Realizando a mediação entre espontaneidade e disciplina, o partido investe na “reforma intelectual e moral” da sociedade, tão necessária à construção da vontade coletiva. A criação de uma nova cultura é também uma tarefa do partido, concomitantemente à busca das transformações sociais, econômicas e políticas. “O moderno Príncipe deverá e não poderá deixar de ser o pregador e organizador de uma reforma intelectual e moral, o que significa, de resto, criar o terreno para um desenvolvimento ulterior da vontade coletiva nacional-popular no sentido da realização de uma forma superior e total de civilização moderna” (Gramsci apud Coutinho, p. 121, grifo nosso). O moderno Príncipe deve combater nas frentes cultural, econômica e política, todas decisivas na luta das classes subalternas.

Mas apesar de manter uma certa continuidade com os “clássicos” marxistas (Engels, Lênin), Gramsci realiza inovações nessa tradição de pensamento político. Isto pode ser bem visualizado ao analisarmos o conceito de hegemonia. A hegemonia é justamente o consenso e a direção político-ideológica de uma classe sobre a sociedade. O “moderno Príncipe”, isto é, o partido político, deve se esforçar por conquistar a hegemonia antes mesmo de tomar o poder. É visando a hegemonia que se deve entrar na “batalha cultural” ou “batalha das idéias”. Como diz Coutinho, “sem uma nova cultura, as classes subalternas continuarão sofrendo passivamente a hegemonia das velhas classes dominantes e não poderão se elevar à condição de classes dirigentes. Gramsci diz sempre que a direção política é ineliminavelmente direção ideológica: lutando pela difusão de massa de uma nova cultura – ou seja, de uma cultura que recolha e sintetize os momentos mais elevados da cultura do passado, que una a profundidade intelectual do Renascimento com o caráter popular e de massa da Reforma, o ‘moderno Príncipe’ estará criando as condições para a hegemonia das classes subalternas, para sua vitória na ‘guerra de posições’ pelo socialismo” (p. 122).

A “reforma intelectual e moral”, portanto, é condição sine qua non para a conquista da hegemonia nas sociedades ocidentais. É por essa razão que Gramsci dá especial atenção aos intelectuais na formação e na construção do partido político. Nesse contexto, todos os membros do partido podem ser considerados intelectuais. Isto porque não é o nível de erudição que faz de uma pessoa um intelectual, mas sua capacidade diretiva, organizativa, educativa. Quem é capaz de dirigir, organizar, educar é, na concepção gramsciana, um intelectual. “Por isso, interpretando adequadamente o pensamento de Gramsci, Togliatti designou o partido da classe operária como ‘intelectual coletivo’. Mas, se examinarmos a concepção que tem Gramsci dos próprios intelectuais, talvez não seja exagerado inverter a afirmação de Togliatti e dizer que, para nosso autor, também o intelectual é um partido político” (idem, p. 122-3). As noções de “intelectual” e “partido” estão intimamente vinculadas no pensamento de Gramsci.

Além disso, o filósofo define dois tipos principais de intelectual. O primeiro é o “intelectual orgânico”, que possui estreita ligação - “orgânica” - com uma classe social determinada no modo de produção. Sua função é dar homogeneidade e consciência a essa classe, nos campos econômico, social e político. Em segundo lugar, temos os “intelectuais tradicionais”, que estiveram ligados a classes importantes do passado e que, depois do desaparecimento de tais classes, permanecem como uma camada relativamente autônoma e independente. Ambos os tipos desempenham objetivamente funções análogas às do partido político, quais sejam, dar homogeneidade e consciência à classe a qual se vinculam ou aderem, e, dessa forma, preparar a hegemonia desta classe sobre o conjunto dos seus aliados. “São, em suma, instrumento da consolidação de uma vontade coletiva, de um ‘bloco histórico’” (idem, p. 123).

Resta, ainda, tecer algumas considerações sobre a estrutura interna do “moderno Príncipe”. Ora, para Gramsci, todos os membros do partido são intelectuais, mas nem todos o são do mesmo modo. O filósofo marxista afirma que o partido deve se basear em “três grupos de elementos”: “1) um estrato de ‘homens comuns, médios’, caracterizados mais pela disciplina e fidelidade’ do que pelo espírito criativo’; 2) um estrato coesivo principal, que organiza e centraliza, ou seja, que dirige o partido; 3) e um estrato intermediário, que serve de ligação entre os outros dois, apresentando traços de um e de outro” (idem, p. 124).

Mas Gramsci não concebe essa divisão como algo eterno e imutável. Ao contrário, “ele não só prevê uma grande mobilidade interna no partido, mas – a longo prazo – crê que seja tarefa do partido eliminar a própria diferença, assim como o Estado deverá eliminar a diferença entre governantes e governados, no processo de dissolver o Estado nas organizações da ‘sociedade civil’” (idem, p.124-5).

Enfim, Gramsci, como Lênin, concebe o partido como a vanguarda da classe operária. Essa vanguarda é um todo coeso estruturado, que combina espontaneidade e disciplina. E é porque tem essa forma que pode “se tornar organizador e expressão de uma vontade coletiva” (idem p. 125). Esse partido de forma alguma é burocrático. É centralizado, coeso e democrático, pois, promove a circulação entre os três estratos internos. É progressista, ao invés de regressivo e repressor, e é “deliberador” e não apenas “mero executante”.

Diante disso, algumas questões de suma importância que se colocam para a classe trabalhadora nos dias atuais é: como impedir que os partidos da classe operária sejam subsumidos pela lógica fetichista e alienante do capital e como fazer com que se afirmem como instrumentos eficazes na batalha das idéias – a conquista da hegemonia – com vistas à superação do sistema do capital enquanto modo de controle hierarquicamente estruturado sobre o metabolismo social?

REFERÊNCIA:

COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci. L&PM, Porto Alegre, 1981 (Coleção: Fontes do Pensamento Político).

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