Muitas vezes nos perguntamos qual a tarefa a ser desempenhada pelos intelectuais num projeto social e político revolucionário. O que é que se tem em mente, afinal, quando pensamos em intelectual dentro de um contexto histórico determinado? É preciso ter bem clara a definição desse conceito, pois ele pode lançar luzes sobre a estratégia a ser adotada pelos sujeitos comprometidos com uma práxis orientada pelo objetivo da emancipação humana. A esse respeito, penso que Gramsci tem uma colaboração valiosa a dar.
Segundo o filósofo italiano, intelectual não é somente o erudito, aquele que sabe filosofia, literatura, latim, grego ou coisas do gênero. Intelectual é fundamentalmente o dirigente da sociedade. É o sujeito que expressa a vontade coletiva do grupo social ao qual está organicamente vinculado e exerce sobre este uma espécie de liderança. Nesse sentido, um cabo do exército, por exemplo, mesmo que eventualmente seja analfabeto, pode ser considerado, segundo Gramsci, um intelectual na medida em que dirige seus soldados na luta, e também os educa. De acordo com essa concepção, jornalistas, líderes sindicais, líderes religiosos, professores, líderes sem-terras, etc. podem ser intelectuais. Graças aos intelectuais, diz o autor dos Cadernos do Cárcere, mantém-se coeso o bloco histórico – o conjunto de forças sociais e políticas - que aspira à transformação revolucionária da sociedade.
Quando realiza essas teorizações, Gramsci tem sempre diante dos olhos a questão da hegemonia. Em sua teoria ampliada do Estado, o pensador marxista faz uma diferenciação importante entre sociedade política e sociedade civil. A sociedade política diz respeito aos espaços concernentes ao Estado em sentido estrito, é o “Estado-coerção” por assim dizer, com suas leis e instâncias que fazem valer as leis. A sociedade civil, por sua vez, refere-se ao conjunto de “aparelhos privados de hegemonia” (grandes sindicatos, partidos políticos, parlamento eleito por sufrágio, jornais, igreja, escolas, etc.), organismos de participação política aos quais as pessoas aderem voluntariamente e que não se caracterizam pelo uso da opressão. A sociedade civil é formada, desse modo, pelo conjunto das instituições e instrumentos que possibilitam a organização material da cultura (revistas, jornais, editoras, meios de comunicação de massa, etc.) e a elaboração e difusão das ideologias. Nesse contexto, a hegemonia pode ser entendida como o consenso, a direção intelectual e moral que se realiza a partir dessas mediações. A hegemonia possui assim uma base material própria e um espaço específico de manifestação.
Diante disso, o Estado, no sentido ampliado que lhe atribui Gramsci, é, justamente, a síntese entre a sociedade civil e a sociedade política – portanto, entre hegemonia e coerção. O Estado é, nas sociedades de capitalismo avançado, grosso modo, a articulação entre as instâncias que garantem ditadura e hegemonia, coerção e consenso. Quando um grupo social detém o domínio (a coerção) mais a “direção intelectual e moral” (a hegemonia) ele adquire a supremacia dentro de uma formação econômico-social determinada.
Percebe-se então o porquê de a conquista da hegemonia constituir-se num elemento central dentro da estratégia política desenvolvida por Gramsci. Percebe-se também a importância atribuída pelo filósofo às tarefas dos intelectuais. São eles que “organizam a cultura” e elaboram o consenso (hegemonia) sem o qual uma classe social não poderia se tornar dirigente. Ela seria apenas dominante e opressiva, e faltar-lhe-ia o elemento necessário – a liderança intelectual e moral - para exercer o poder.
Conquistar a hegemonia é então fundamental. A classe que exerce domínio numa situação histórica determinada pode perdê-la se os seus valores, concepções de mundo, representações e ideologias sofrerem um profundo abalo. Quando isso ocorre, diz Gramsci, configura-se uma crise de hegemonia, e surge a possibilidade objetiva para que uma contra-hegemonia se afirme em seu lugar. As crises de hegemonia são facilitadas cada vez que emerge no cenário histórico uma crise orgânica, isto é, uma crise que abrange desde o domínio econômico, até o político e o cultural de uma dada sociedade. A crise orgânica pode se resolver com o restabelecimento da hegemonia da classe dominante, ou com as classes dominadas construindo alianças, assumindo a hegemonia e se tornando enfim classes dirigentes.
Com base nisso, uma reflexão que se impõe a nós, intelectuais engajados no projeto de emancipação das classes trabalhadoras, é, creio, a seguinte: A atual conjuntura de crise profunda do sistema do capital, que alguns autores (István Mészáros, Robert Kurz, Immanuel Wallerstein, François Chesnais, Samir Amin) definem como sendo de crise estrutural, não seria um período propício e fecundo para a utilização consciente de meios capazes de organizar e fazer vir à tona uma cultura crítica e questionadora das ideologias vigentes, com base na qual as classes dominadas poderiam desestabilizar a hegemonia das classes dominantes, impor uma contra-hegemonia, orientar suas ações e aspirar assim a se tornar dirigentes?
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ResponderExcluirCamara, teu blog é uma ótima referência para os combatentes de uma nova sociedade - uma bela síntese de sensibilidade e razão.
ResponderExcluirabraços!