quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A sociedade da destruição e os operários das ruínas

Dia após dia, vejo-os descer pela rua de minha casa. Umas vezes, em bandos brincalhões; Noutras, em mini-comboios; Mas na maioria das ocasiões enxergo-os solitários, calados, sérios, suados e taciturnos. E parece que estão em número cada vez maior. Roupa velha, surrada, em desalinho. Cabelo em desalinho. A marca da dureza do ofício gravada na fronte, a marca também do esquecimento. A firmeza no olhar, e também o cansaço. O pão de cada dia ganho a partir dos restos, das sobras, do excesso e do desperdício daqueles pouquíssimos sujeitos que podem se dar ao luxo de desperdiçar. Uma caixa de papelão aqui, pedaços de uma cadeira velha quebrada ali, uma embalagem plástica acolá, tudo se junta, tudo se aproveita. Tudo se recolhe quase sempre numa carrocinha artesanal, feita em casa mesmo, no improviso, composta a partir de uma síntese irrepetível de materiais arrecadados pelos largos ou estreitos caminhos desta vida.

Desta vida? Que o frequentemente obnubilado significado desta palavrinha difícil não nos engane: muito mais apropriado seria afirmar desta determinada conjuntura histórica e social. Em verdade, o século XXI, com suas crises constantes, trouxe para Santa Maria a realização de algumas das mais fortes tendências existentes no mundo contemporâneo do trabalho: a precarização, a pauperização, o baixo nível de qualificação, a fraca capacidade de negociação, os trabalhos não-estáveis e a informalidade. E os catadores de papel são um exemplo concreto desta terrível e humilhante realidade.

Dentre todas as categorias de trabalhadores verificadas na contemporaneidade, são talvez os que sentem mais diretamente a barbárie, a crueldade e a mesquinhez de um tempo ganancioso, sem escrúpulos e sem coração. Sentenciados pela sociedade a produzir e a reproduzir sua vida em contato direto com os detritos, a imensa maioria deles não se vê, na prática, coberta por tipo algum de direito e não possui um mínimo de segurança. Aliás, direitos na prática seriam mesmo algo inusitado. Pois que direitos poderiam esperar pessoas que quase não são percebidas em sua opaca existência, antíteses dos padrões culturais, que vivem sem voz e nas sombras, que pululam por aí, do centro à periferia, recolhendo nas lixeiras seus precários meios de vida?

A propósito disso, seria interessante questionar se esses meios podem ser tomados efetivamente como proporcionadores de vida? Sim, a vida, fenômeno de conceituação tão incômoda e cuja definição apressada não raro nos turva a vista... Confesso que há momentos em que duvido e chego a crer que a condição desses trabalhadores é muito mais semelhante e próxima da morte do que de qualquer outra coisa.

Bem sei que há sábios e doutores acadêmicos capazes da mais admirável engenhosidade teórica e filosófica a ponto de afirmar que a sujeira, o lixo e a podridão são condições inultrapassáveis da existência social humana sobre a terra. Todavia, acredito que se possa desconfiar dessas proposições tão neutras a fim de se refletir mais detalhadamente sobre o assunto e saber se excrementos, substâncias fétidas, odores nauseabundos e todo tipo de dejetos pútridos podem ser realmente considerados elementos vitais a uma criatura a quem se quer chamar de humana.

4 comentários:

  1. Há muito tempo estas pessoas além de sequer disporem de condições minimamente dignas de existência, a ser invisiveis. Simplesmente o são pois os out-doors, propagandas, e as vitrines chamam mais atenção dos "homoeconomicus" (os chamados "cidadãos de bem") que circulam pela cidade de Santa Maria, e pelo mundo afora.

    Para Herr Kapital, não é interessante que alguém sequer pergunte "de onde essa gente vem?". Aliás para essa "entidade" não interessa nem que essa gente viva,pois podem atrapalhar alguma coisa,afinal já de muito tempo essas pessoas foram condenadas a somente sobreviver.

    Herr Kapital percebe que essa multidão de invisíveis não tem serventia, pois não tem capacidade de ser intregada aos ritos do consumo desenfreado, ritual importantíssimo na sociedade atual.

    Então, assim como os índios foram considerados "sem alma" pelos exploradores e padres europues, à época do genocídio da colonização européia da América Latina, o sistema contemporâneo do capital faz, "à sua maneira", o mesmo com os excluidos na sociedade atual. Afinal: o "sem alma" não negocía, não o pode. Não pode consumir, não pode ser homem, cidadão, colaborador, nada .
    Aos sem alma, os invisíveis do presente, resta o resto, o lixo, a sarjeta, os dejetos ... e as favelas, é claro.
    Na Cidade Cultura já está em cartaz o "espetáculo da favelização", apresentado em todo o planeta. O enredo é bastante conhecido também. Trata-se de seres humanos amontoados em condições precárias sobrevivendo como podem. Entretanto quase ninguém o enxerga, até mesmo professores, sociólogos e políticos não dão atenção à essa "peça". Até que um belo dia as futuras gerações dessas pessoas possivelmente se tornarão invisíveis.
    E quem os verá?

    João Gabiru

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