Um dos grandes mestres contemporâneos da escrita da história a contrapelo é, sem dúvida, o uruguaio Eduardo Galeano. Isto fica patente a qualquer um que se deixe absorver pela leitura da sua monumental As Veias Abertas da América Latina (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990), relato dramático dos cinco séculos da barbárie “civilizatória” levada a cabo pelos europeus em nosso continente. Este é, como se sabe, seu livro mais famoso e divulgado. Mas vale a pena mencionar algumas das muitas outras pérolas literárias - igualmente penetrantes em sua força crítica e capacidade de desvelamento da realidade que se oculta por trás dos relatos oficiais da história - que possui o célebre escritor. Penso aqui, por exemplo, no magnífico O Teatro do Bem e do Mal (Porto Alegre: L&PM, 2007. 2ª ed.): pequeno no tamanho – apenas 128 páginas -, mas grande na realização e significado para os que almejam um mundo mais emancipado e digno.
O tema é o mundo contemporâneo com sua ampla variedade de contradições. O ponto de vista assumido é o dos oprimidos da história: os párias, os excluídos, os vencidos de todo tipo, aqueles que de qualquer modo foram considerados o oposto do ideal a ser seguido pelas sociedades ao longo dos tempos (“Não haverá o que aprender com os perdedores, como em tantas outras coisas?” - pergunta-se Galeano, num dado momento do livro, deixando transparecer o posicionamento que adota). O intento perseguido é a critica das determinações históricas que permitem que pequenos grupos sociais, econômicos, políticos, étnicos e de gênero dominem e submetam a seus interesses - servindo-se para isso de incontáveis meios - a imensa maioria da humanidade.
As técnicas de escrita utilizadas pelo autor são variadas e dominadas por ele com maestria. Um estudo aprofundado da forma de narrativa desenvolvida por Galeano produziria certamente resultados interessantes e valiosos para aqueles que querem aprender a arte de usar as palavras como armas na batalha cultural em favor da modificação radical do sistema social atualmente vigente. Mencionarei brevemente apenas algumas das que mais me chamaram a atenção durante a leitura de O Teatro do Bem e do Mal.
Penso não estar muito equivocado se disser que Galeano se serve, como um dos seus principais métodos de exposição de idéias, aquilo que Walter Benjamin chamou de imagem dialética, isto é, “capturar” um evento passado, articulando-a com o presente, e fazendo com que ambos, passado e presente, se iluminem e revelem as “conexões ocultas” singulares entre ambos, e que não são perceptíveis a partir de uma perspectiva usual (linear) da história. Por exemplo, logo no primeiro capítulo, intitulado, como o livro, de O Teatro do Bem e do Mal, o autor, escrevendo no período imediatamente após o ataque terrorista ao World Trade Center “revira” do avesso o presente histórico em que se situa (no qual os EUA e o terrorista Osama Bin Laden se posicionam como inimigos) de modo a encontrar nesse presente uma certa marca inusitada do passado, quando estes dois antagonistas eram de fato... aliados. Diz Galeano:
“O flagelo do mundo, agora, chama-se Osama Bin Laden. A CIA lhe ensinara tudo o que sabe em matéria de terrorismo: Bin Laden, amado e armado pelo governo dos Estados Unidos, era um dos principais 'guerreiros da liberdade' contra o comunismo no Afeganistão. Bush Pai ocupava a vice-presidência quando o presidente Reagan disse que estes heróis eram 'o equivalente moral dos Pais Fundadores da América'. Hollywood estava de acordo com a Casa Branca. Na época filmou-se Rambo 3: os afegãos muçulmanos eram os bons. Treze anos depois, nos tempos de Bush Filho, são maus, malíssimos.”
Galeano faz assim um “corte”, uma “cesura” na história, mostrando a interconexão oculta entre dois eventos do passado e do presente. No presente, EUA e Bin Laden se apresentam como inimigos viscerais. No entanto, na década de 1970, quando o comunismo ameaçava se tornar uma ideologia influente entres os pobres países islâmicos, os EUA estimularam naqueles povos todo tipo de visão de mundo ultra-conservadora, dentre elas, a talibã. Quando os soviéticos invadiram o Afeganistão em 1979, foram os EUA que armaram os guerreiros mujahedin a fim de que estes combatessem os russos. Naquele tempo, portanto, eram amigos. O ultra-conservadorismo islâmico foi alimentado cultural e militarmente pelos EUA no Oriente Médio, mas acabou depois de uns anos se voltando contra eles.
Em última instância, os norte-americanos combatem hoje uma de suas próprias criaturas. E esse combate não é de forma alguma indesejado pelos governantes do país de Mickey Mouse, pois, como Galeano afirma logo em seguida num capítulo intitulado Satanases, “quando as guerras vão bem, a economia vai melhor”. Aí se revela a idéia de como a guerra é a política por outros meios, de como a guerra alimenta a economia em crise, e de como, finalmente, a política atende aos interesses econômicos dos mais fortes. Tornam-se claro aos olhos do leitor os interesses econômicos e políticos particulares por trás das práticas aparentemente “neutras” e movidas pela causa da democracia e da liberdade alardeadas pelo discurso oficial norte-americano. Ora, a conclusão a que se chega é a de que uma guerra, tal como a que foi perpetrada contra o Afeganistão em 2001, não é algo ruim em si para os EUA, e muito menos um acidente na história.
Galeano coloca, então, passado e presente lado a lado, mas de uma forma especial. Compõe uma imagem onde fluxo dos acontecimentos é subitamente imobilizado. Quebram-se as supostas linearidade e “naturalidade” da história. Os contextos dos anos de 1979 e 2001 são justapostos de modo que a consciência do observador possa escapar à tirania da aparência de “normalidade” do processo histórico e refletir, assim, criticamente, sobre o sentido atual da realidade observada. A imagem dialética produzida pelo autor de O Teatro do Bem e do Mal provoca desse modo um efeito de choque no sujeito que com ela se depara, desmobilizando momentaneamente uma certa estrutura de sensibilidade originada e cristalizada a partir da longa vivência coletiva no terreno das relações sociais capitalistas de produção, e permitindo assim o surgimento de uma outra diferente.
O escritor uruguaio é um expert em produzir tais efeitos. Um outro recurso de composição de que costuma se servir é o de aproximar duas realidades completamente opostas – e aparentemente sem relação alguma - dentro do presente mesmo. Por exemplo, no capítulo Um tema para arqueólogos temos a seguinte passagem: “A tecnologia, que aboliu as distâncias, permite agora que um operário da Nike na Indonésia tenha de trabalhar cem mil anos para ganhar o que ganha, em um ano, um executivo da Nike nos Estados Unidos, e que um operário da IBM nas Filipinas fabrique computadores que ele não pode comprar.” Galeano prossegue, em várias partes do livro, “aproximando as desigualdades”, fazendo os opostos se tocarem a fim de denunciar as injustiças sofridas por aqueles que trabalham e se situam em posição antagônica e hierarquicamente subalterna em relação ao poder econômico estabelecido.
Por fim, há que se mencionar o magistral toque de humor e ironia que permeia os escritos de Galeano de cabo a rabo, e que lhe permite assim subverter e dessacralizar os discursos oriundos das engrenagens do poder, debilitando e enfraquecendo a seriedade contida nestes e quebrando a força do impacto que estes argumentos poderiam ter sobre a sensibilidade coletiva.
Imagem dialética e ironia, conhecimento da história e posicionamento político, organização das palavras no sentido de causar um certo tipo de mobilização na sensibilidade usual acostumada à resignação e à passividade frente as injustiças do mundo. Crítica, choque e despertar do torpor cotidiano produzido pelas relações sociais capitalistas. Tais são alguns dos elementos de que, segundo creio, se reveste a crônica socialmente engajada de Eduardo Galeano.
segunda-feira, 14 de setembro de 2009
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