sábado, 12 de setembro de 2009

Meditação sobre o amor

Não é raro que eu me pegue pensando no amor, na importância do amor, no seu significado para mim e no quanto eu o anseio e o desejo. Em tardes de chuva como esta, quando saio sozinho às ruas e a meditação me faz demorar as vias perceptivas no cinza pálido dos rostos desconhecidos que passam sem me olhar, toma-me um frio muito mais frio que o normal, e me dou conta que a centralidade desse sentimento para meus objetivos é quase uma questão de vida ou de morte. Perderei a existência física sem amor? Mais provável é que uma morte em vida se afirme em mim, que eu me assemelhe mais a um zumbi, a um vampiro, ou a um míssil tele-guiado pronto para me explodir frente a um qualquer, e dar cabo assim de ambos. Amar, para mim, é uma maneira de impedir que isso aconteça e de afirmar algo diverso. O amor? Eu não saberia defini-lo. Não melhor do que os filósofos ao longo da história. Mas talvez soubesse expressar a minha visão particular dele, o sentido que a ele atribuo, ou alguns traços daquilo que eu denomino de amor.

Mas quem sou eu? Sou o que faço, por certo, e sou fundamentalmente o que faço de mim no tempo e no espaço, vivendo com outros num mundo que não criei, me relacionando com este mundo, com os meus semelhantes, com a matéria e comigo mesmo. Branco, mestiço, 31 anos, solteiro, cabelos e olhos castanhos, gaúcho do interior e vivendo na periferia, filho de trabalhadores, trabalhador também, que teve a oportunidade de estudar, graduado, pós-graduando que almeja uma carreira acadêmica, nascido no fim do século XX, no Brasil, e vivendo o século XXI neste mesmo país, um dos tantos belos países do imenso continente latino-americano. Sou como muitos, portanto, e é nestes muitos com os quais me identifico e me assemelho que ancoro a minha concepção de amor.

Não é, então, do amor em geral que falo e de que tenho necessidade. Não é o amor universal, não é dirigido à humanidade inteira, nem é algo que se pretende válido para todo sempre. É muito mais parcial, embora seja radical na sua parcialidade. Também não é restrito ou circunscrito a limites estreitos. É aberto e em processo. É, enfim, um sentimento particular e, sem dúvida, terreno. Ama as idéias e ama sobretudo a carne. Caminha na matéria e aponta o peito das pessoas – não todas, somente as mais próximas e afins, ainda que essa proximidade e afinidade me leve a identificá-las, quando possível, no lado oposto do globo terrestre. Amor de quem se percebe num mundo contraditório, de quem sabe a sua posição no conflito, de quem se reconhece e sente empatia por aqueles cuja situação é desgraçadamente a mesma. Amor tomado como sentimento capaz de dar conforto, ânimo e vida para este combate, amor cuja falta é a morte e a falência neste mesmo embate.

Porque o amor pode dar vida, sim, pode dar ânimo e pode dar conforto. Pode encher de calor um quarto abandonado, ou uma casa singela, no inverno. Pode ser fogo e facho de luz na escuridão. Pode ser mel nos lábios daqueles que há muito possuem um acre sabor na boca. Pode ser ar fresco para quem se encontra sufocado e só num calabouço imundo. Pode ser o som de uma lira dedilhada para o júbilo dos ouvidos que têm apenas o silêncio diário, o desprezo diário e o esquecimento diário. Pode ser líquido precioso e oásis para o viajor no deserto. Pode ser a vitória contra a melancolia, contra o esmagador sentimento de desânimo e de falta de sentido que este mundo sentencia. Amor para alguém que se encontra num dado lugar especial desta sociedade em que tudo está fadado a virar mercadoria e a ter seu preço, onde as pessoas espontaneamente aprendem a se postar e a tratar a alteridade e a si como coisas, como objetos, como entidades vendáveis, compráveis e descartáveis. Sim, esta é a comunidade da coisificação consumada, da competição desmedida, onde todos são estranhos, onde a solidão campeia e, muitas vezes, vence, deixando-nos na miserável condição de não podermos alimentar nossos espíritos e corpos com aquilo que o nosso igual criou de melhor para si e para o mundo.

Amor só tem sentido para mim - e, penso, para aqueles com os quais me importo - se se realiza como força capaz de transcender essas imposições. Não é, desse modo, o amor que os opressores sentem entre si e por si, não é caridade que os de cima expressam pelos de baixo, atirando suas migalhas por sobre uma barreira que nunca pretendem quebrar. É o amor dos de baixo pelos de baixo, que dá à luz uma magia que os restabelece na luta, que não os deixa sucumbir ao fetichismo do sistema capitalista, que os reergue se acaso caiam e que os impulsiona para a superação das limitações a eles impostas. É este amor de infinitos meios que é fundamental, penso, para a gente simples, para os como eu.

Amor-feitiço, amor-magia, amor-fonte-da-juventude. Amor que faz correr quente o sangue nas veias e provoca pequenos encantos cotidianos, amor multiplicado e repartido de graça, alegria espontânea entre amigos, riso descontraído e fácil, solidariedade sincera e desinteressada, afeto caloroso entre irmãos, carinho preciso e prazer genuíno, acolhimento, amparo e palavra de apoio, ombro oferecido ao parceiro e camaradagem plena, cuidado com os filhos, gratidão, linguagem bem empregada para embelezar as situações corriqueiras, bom humor em doses generosas, união entre iguais na luta, respeito ao coletivo sem detrimento da individualidade, entrega, coragem frente aos medos reais e imaginados, abraço apertado nos pais nos almoços de domingo, preparo do prato predileto do hóspede querido, erotismo autêntico e sem culpa, poesia em forma de bilhete deixada propositalmente no bolso da pessoa amada, sorriso luminoso dado antes mesmo do bom-dia, esquecimento das hierarquias, sonhos justos e generosos de dias melhores que virão, projetos construídos em conjunto, reconhecimento das responsabilidades e assunção da própria vida, perpetuação da chama da esperança, memória das lutas, das derrotas, dos anseios mais sinceros por realização, desejo de superação, fé indestrutível na capacidade humana, na tenaz resistência frente ao inimigo, aprender com os erros, compartilhar experiências com os mais jovens, orgulho necessário a quem quer permanecer humano e recusa a se tornar mais ou menos que humano, raiva necessária para a explosão de uma corrente, negação em se tornar objeto de quantificação e atribuição de valor às pessoas sem status, sem honrarias, sem medalhas, sem patentes e sem títulos.

O amor tem que ser assim, tem que levar a pessoa a sair de si, a desfazer-se da perspectiva que tem o próprio umbigo como horizonte. É desse jeito que penso o amor comum entre os oprimidos deste mundo, entre os que sofrem o jugo deste sistema social mórbido e mesquinho. E é assim que penso também o amor entre duas almas afins. No meu caso, entre homem e mulher, mas que ocorre, para muitos, de muitas outras maneiras bonitas, diferentes e possíveis. Amor-comunhão, pensante e sensível, atuante e paciente, forte e frágil, amor com projeto de futuro, amor consciente, portanto – mas não meramente reduzido a racional, que é diminuir muito, nesse caso, o sentido do amor e da consciência -, amor-louco e amor-paixão, amigo da imaginação e do maravilhoso, do sonho e da vigília, e principalmente do momento em que vigília e sonho se encontram: amor amigo do despertar. Porque esta sociedade nos entorpece e nos bota pra dormir um angustiante sono sem sonhos, obscuro e sem fim.

Disse um poeta uma vez: “Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?… Sempre e até de olhos vidrados amar?” Correto, penso. Mas eu completaria afirmando o desejo de que esse amor não se restrinja a seu micro-cosmo, que não se limite a uma existência individual a dois, que não se circunscreva à vida cotidiana e as suas necessidades imediatas, mas que se volte para o mundo, que grave a sua marca nele, de uma forma ou de outra, para superá-lo e vencê-lo, e que seja capaz de dar ânimo, conforto e vida a todos os que dele se acerquem.

E se lhes entrego estas palavras, é porque vejo em seus olhos um desejo semelhante.

Nenhum comentário:

Postar um comentário