Na última postagem em nosso blog, afirmamos que, com as últimas décadas de globalização e neoliberalismo, os países da América Latina acabaram se tornando semelhantes a uma criaturinha curiosa, de desenvolvimento peculiar, que reúne em si um amplo conjunto de elementos desiguais: o ornitorrinco, alegoria criada por Francisco de Oliveira (2004, p. 115) para expressar a concepção de que nosso continente materializa “uma combinação esdrúxula de altas rendas, consumo ostentatório, acumulação de capital comandada pela revolução molecular-digital, pobreza extrema, lumpesinato moderno, avassalamento pelo capital financeiro, incapacidade técnico-científica.”
O Brasil expressa um caso específico dessa transformação da sociedade em “ornitorrinco”, cujo desdobramento no campo da política produziu a situação, em nossos dias, daquilo que o ilustre sociólogo pernambucano chamou de “hegemonia às avessas”. Que vem a ser isso? Acompanhemos o raciocínio de Francisco de Oliveira.
A presença de ditaduras civis e militares ao longo de tantos anos no Brasil indica, dentre outras coisas, a incapacidade das classes dominantes realizarem a hegemonia. A hegemonia é um conceito formulado por Antonio Gramsci em sua teoria ampliada do Estado. Aí, o filósofo italiano faz um diferenciação importante entre sociedade política e sociedade civil. A sociedade política diz respeito aos espaços concernentes ao Estado em sentido estrito, é o “Estado-coerção” por assim dizer, com suas leis e as instâncias que fazem valer essas leis. A sociedade civil, por sua vez, refere-se ao conjunto de “aparelhos privados de hegemonia” (grandes sindicatos, partidos políticos, parlamento eleito por sufrágio, jornais, igreja, escolas, etc.), organismos de participação política aos quais as pessoas aderem voluntariamente e que não se caracterizam pelo uso da opressão. A sociedade civil seria formada, desse modo, pelo conjunto das instituições e instrumentos que possibilitam a organização material da cultura (revistas, jornais, editoras, meios de comunicação de massa, etc.) e a elaboração e difusão das ideologias. Nesse contexto, a hegemonia pode ser entendida como o consenso, a direção intelectual e moral que se realiza a partir dessas mediações. Diante disso, o Estado, no sentido ampliado que lhe atribui Gramsci, é, justamente, a síntese entre a sociedade civil e a sociedade política – portanto, entre hegemonia e coerção. O Estado é, nas sociedades de capitalismo avançado, grosso modo, a articulação entre as instâncias que garantem ditadura e hegemonia, coerção e consenso. (Cf. COUTINHO, 1981). Ditaduras militares indicam, portanto, a incapacidade das classes dominantes exercerem o poder com base num consenso estabelecido em torno de seus interesses.
No Brasil Republicano, como explica Francisco de Oliveira, tal impossibilidade se devia a uma questão estrutural, isto é, a inexistência de classes nacionais (isto é, classes sociais unificadas e estabelecidas em âmbito nacional). Aos poucos, contudo, essa “nacionalização das classes” foi se realizando, e isso fundamentalmente por iniciativa das classes dominadas, que lutaram, se organizaram, se integraram e reivindicaram seus interesses no plano nacional, fato que obrigou a burguesia a se nacionalizar também. Com o fim da ditadura militar dos anos 1964-1985, esse processo de nacionalização estava quase completo (se completaria efetivamente no governo de Fernando Henrique Cardoso, entre 1994 e 2002).
Como explica Francisco de Oliveira (2001), depois do fim do governo Sarney e da Constituinte, as classes dominantes, em vias de completar seu processo de unificação nacional, elegeram Collor e depois FHC. Collor, já sentindo o “problema” de uma classe trabalhadora nacionalmente unificada, criticou largamente a Constituição de 1988 (que representou a expressão do plano jurídico de algumas das conquistas das classes dominadas). Isso se aprofundou no governo FHC, e ganhou contornos práticos no desmonte do Estado que esse governo veio a realizar. Como explica o sociólogo pernambucano (2001, p. 54):
“Com FHC, o susto de 07 graus na Escala Richter produziu, finalmente, uma liderança que retomou o processo que Collor não foi capaz de conduzir. (…) No plano da política, que é o plano que nos interessa, é capaz de devolver à estrutura os elementos de retorno da dominação burguesa. Estamos vendo como é que isso ocorre, com o processo das privatizações. (…) As privatizações são o reforço das condições estruturais da dominação burguesa, que tornavam virtuais a possibilidade de hegemonia no plano político. Cardoso realiza isso com uma qualidade diferente, porque ele não é um outsider, como Collor. FHC está dentro do miolo dessa articulação: veio de São Paulo, onde o PSDB, na verdade, faz as vezes do antigo partidão, o sonho de uma burguesia que é a vanguarda do processo de crescimento nacional. Dessa ironia a história, essa deusa – as mulheres que me perdoem -, toma ironicamente Fernando Henrique para realizar um sonho do velho Partido Comunista (PC), um antigo militante do PC: a grande burguesia como alavanca do processo de desenvolvimento nacional.”
Como resposta, então, à unificação das classes trabalhadoras, as classes dominantes também se unificam e, nesse movimento, FHC realiza aquilo que Collor não conseguira: desmontar o Estado e reforçar assim as condições estruturais da dominação burguesa. Estabelece-se o consenso em torno de certos interesses capitalistas e, desse modo, passam-se muitos anos sem necessidade de golpes e de ditaduras, visto que a hegemonia burguesa, agora com as classes sociais unificadas em âmbito nacional, se torna possível. Esses processos políticos, por sua vez, não ocorrem de forma isolada no mundo. São a expressão direta da globalização. O Plano Real, nesse contexto, como consolidação da dominação e hegemonia da burguesia no Brasil, é expressão do processo de globalização. O neoliberalismo em nosso país abre as portas, dese modo, para que a economia nacional seja controlada pela economia internacional. Francisco de Oliveira (2001, p. 55) explica que:
“Quando FHC implantou o Plano Real, a inflação já estava a 45% ao mês. De repente nós assistimos, como que num passe de mágica, a inflação de 45% ao mês passar a 3%. Que mágica é essa? A mágica é a do policiamento externo controlando os preços internos. A condição é a de que a importação seja aberta e que o movimento de capitais seja livre. [grifo nosso, DC] Ela não é tão livre como na Argentina e no México, até mesmo porque as forças internas conseguem barrar os Gustavos Francos da vida. Mas o movimento da globalização é um movimento que permite que o pacto burguês se articule da forma tal como está articulado, do ponto de vista econômico e do ponto de vista político. O que deu a possibilidade ao pacto dominante foi o susto de 1989. E, de outro lado, o fato de que a estabilidade adquirida rapidamente é a grande arma que o governo tem para articular o arco conservador. [grifo nosso, DC]”
Para a implementação da hegemonia (do consenso), as classes devem estar, então, “nacionalizadas”. Isso se consolida, como vimos, no governo FHC. Mas só isso não basta. É preciso que se dê, também, a estabilidade econômica. Como conseguir isso? Abrindo as portas da economia nacional para a economia estrangeira, que passa a controlá-la e a dominá-la. FHC realiza exatamente isto. O Plano Real vem, então, garantir a estabilidade, que por sua vez é a condição da hegemonia.
Francisco de Oliveira (2001, p. 55-6) assim comenta a especificidade desse processo: “Gramsci ensinou isso de uma forma extraordinária. A dominação burguesa e a hegemonia dependem 80% de consenso e 20% de força física bruta, onde a estabilidade é os 80% de consenso. A estabilidade do pacto dominante está fundamentalmente ancorada na esperança popular de que essa estabilidade – que se transformou num fetiche – se mantenha. As reformas batem como num muro. Um país tão desigual que precisa, urgentemente, de reformas! A população mais pobre transformou-se em conservadora. Por quê? É preciso fazer a pergunta! Porque a experiência de mais de 20 anos de uma inflação avassaladora produziu na subjetividade popular um terror. Uma pedagogia, estamos numa pós-graduação. Trata-se de uma espécie de pedagogia que torna qualquer reforma, na verdade, uma inimiga da grande maioria da população. Esse é o grande trunfo com que a coalizão conservadora conta, ironicamente, paradoxalmente. Mas o sistema capitalista opera assim. Quando ela consegue esse processo hegemônico, a sua grande garantidora é a credibilidade popular. É aí que se batem todos os esforços para mudar o discurso e encontrar as fissuras que possam destruir ou abrir brechas nesse aparente monolitismo neoliberal. Essa é uma tarefa democrática que temos pela frente.”
Com FHC, então, temos estabilidade econômica, classes sociais “nacionais”, domínio da economia brasileira pelo capital estrangeiro e hegemonia das classes dominantes. Com Lula, afirmará Chico de Oliveira, esse ciclo neoliberal (começado com Collor), terá seu ápice, mas com algumas modificações importantes. Acontece o que Francisco de Oliveira (2007) chamou de “hegemonia às avessas”, uma situação em que a classe dominante aceita ceder à classe dominada o discurso político, com a condição de que os fundamentos (econômicos) da dominação que ela exerce não sejam modificados.
Assim, de acordo com o sociólogo pernambucano, verifica-se uma condição contraditória na qual um grupo político, ao chegar ao poder, pratica “políticas que são o avesso do mandato de classes recebido nas urnas”. O mandato conferido ao PT para o governo nacional teria sido, na visão de Oliveira (2009), “reformista no sentido clássico”, isto é, exigia “avanços na socialização da política em termos gerais e, especificamente, alargamento dos espaços de participação nas decisões da grande massa popular, intensa redistribuição da renda num país obscenamente desigual e, por fim, uma reforma política e da política que desse fim à longa persistência do patrimonialismo.”
Os resultados verificados na prática foram o contrário daquilo que o mandato estabelecia. Por que? “O eterno argumento dos progressistas-conservadores - caso, entre outros, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso - é que faltaria, às reformas e ao reformista-mandatário, o apoio parlamentar. Sem sustentação no Congresso, o país ficaria ingovernável. Daí a necessidade de uma aliança ampla. Ou de uma coalizão acima e à margem de definições ideológicas. Ou, mais simplesmente, de um pragmatismo irrestrito.”(Cf. OLIVEIRA, 2009)
Os progressistas-conservadores (como FHC) usam, portanto, a retórica de que sua prática de combinação do atraso com o progresso é determinada pela necessidade de ter o aval do parlamento, fato que levaria o governo a ser pragmático na tentativa de tentar atender às necessidades de todos os grupos que lhe dão sustentação. Nenhum radicalismo, nessa situação, estaria autorizado.
Apesar dessa retórica, que a muitos pode parecer convincente, o problema é mais complexo. Como afirma Oliveira (2009), baseando-se em Luís Werneck Vianna e Caio Prado Jr., “não se governa o Brasil sem o concurso do atraso não apenas por razões parlamentares, mas porque a estrutura social que sustenta o sistema político é conservadora, e não avalizaria avanços programáticos mais radicais [grifo nosso, DC]. Além disso, as fundas diferenças e desigualdades regionais, bem como o modo como, desde a Colônia, fundiram-se o público e o privado (...) tornam quase obrigatório um pragmatismo permanente, que leva de roldão perspectivas mais ideológicas, ou meramente programáticas.”
A estrutura social e política brasileira é conservadora e exige o pragmatismo dos governantes (e o conseqüente escanteamento de qualquer ideologia que tenham alimentado até então – Oliveira usa outro termo gramsciano, o transformismo, para complementar a explicação desses processos. A história republicana brasileira é profícua nessas situações de transformações conservadoras, muitas vezes “pregadas por radicais e realizadas por conservadores”. Os exemplos dados por Francisco de Oliveira são a abolição da escravatura, a Proclamação da República, a Revolução de 1930 e o golpe de Estado de 1964. O ciclo posterior foi o do neo-liberalismo, que começa com Collor e agora se desdobra no governo Lula. Fernando Henrique Cardoso foi, nesse meio tempo, “o progresso mesmo, em pessoa, adornado com os títulos e as pompas da Universidade de São Paulo (...) realizou o que nem a Dama de Ferro tinha ousado: privatizou praticamente toda a extensão das empresas estatais, numa transferência de renda, de riqueza e de patrimônio que talvez somente tenha sido superada pelo regime russo depois da queda de Mikhail Gorbachev.” (Cf. OLIVEIRA, 2009)
Todas essas foram transformações conservadoras, realizadas agora num contexto histórico específico, donde ainda não logramos sair. Lula, nesse ínterim, não pode modificar muita coisa, pois seu governo foi, em larga medida, determinado pela herança deixada pelos seus antecessores. A diferença específica do governo Lula reside apenas no fato de que este descumpriu “um mandato que lhe foi conferido para reverter o desastre FHC.” É nesta situação que opera, segundo Francisco de Oliveira, a “hegemonia às avessas”.
Inserido nessa conjuntura, segue o sociólogo brasileiro, o que o governo Lula pôde produzir foi, no máximo, uma diminuição da pobreza absoluta, mas com aumento da desigualdade (Ver o artigo de Francisco de Oliveira intitulado O avesso do avesso, lançado em outubro último), reforço da “vocação agrícola” do país baseada na exportação de commodities agropecuárias, política do espetáculo levada a cabo pelo governo e expressa no fato de que “o presidente anuncia com desfaçatez avanços e descobertas que no dia seguinte são desmentidos” (Cf. OLIVEIRA, 2009), administração de políticas sociais e co-optação de movimentos sociais. O crescimento econômico é, por fim, menor do que a média da taxa histórica da economia brasileira, mas apresentado com grandiloqüência pelo governo.
Por que o governo Lula é, então, neo-liberal? Porque, situando-se “na senda aberta por Collor e alargada por Fernando Henrique, só faz aumentar a autonomia do capital, retirando às classes trabalhadoras e à política qualquer possibilidade de diminuir a desigualdade social e aumentar a participação democrática [grifo nosso, DC]”(Cf. OLIVEIRA, 2009). Lula segue, portanto, a via de FHC, com a diferença que, se se esperava do governo petista uma organização das classes populares para resistir ao movimento do neo-liberalismo, o que se verifica na prática é exatamente o contrário. Como explica Francisco de Oliveira (2009), “se FHC destruiu os músculos do Estado para implementar o projeto privatista, Lula destrói os músculos da sociedade, que já não se opõe às medidas de desregulamentação.”
O resultado absolutamente perverso que esse quadro produz é o retrocesso da classe trabalhadora, que cada vez mais se precariza “em velocidade espantosa” e a transformação das classes dominantes em “gangues no sentido preciso do termo”. Assim, o quadro atual do nosso tempo histórico é resumido pelo sociólogo brasileiro com as seguintes palavras: “A novidade do capitalismo globalitário é que ele se tornou um campo aberto de bandidagem - que o diga Bernard Madoff, o grande líder da bolsa Nasdaq durante anos. Nas condições de um país periférico, a competição global obriga a uma intensa aceleração, que não permite regras de competição que Weber gostaria de louvar. O velho Marx dizia que o sistema não é um sistema de roubo, mas de exploração. Na fase atual, Marx deveria reexaminar seu ditame e dizer: de exploração e roubo. O capitalismo globalitário avassala todas as instituições, rompe todos os limites, dispensa a democracia.”(Cf. OLIVEIRA, 2009)
Penso que a palavra que melhor pode resumir essa conjuntura na qual nos situamos é de barbárie. É contra essa realidade que deve se opor a classe trabalhadora.
Referências:
COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci. L&PM, Porto Alegre, 1981 (Coleção: Fontes do Pensamento Político).
OLIVEIRA, Francisco de. A nova hegemonia da burguesia no Brasil dos anos 90 e os desafios de uma alternativa democrática. in FRIGOTTO, Gaudêncio e CIAVATTA, Maria (orgs.). Teoria e Educação no labirinto do capital. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. (p. 47-56)
OLIVEIRA, Francisco de. Há Vias Abertas para a América Latina? in BORÓN, Atílio (org.) - 1ª ed. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2004, p. 112.
OLIVEIRA, Francisco de. Hegemonia às avessas. Revista Piauí, janeiro de 2007.
OLIVEIRA, Francisco de. O avesso do avesso. Revista Piauí, outubro de 2009.
domingo, 22 de novembro de 2009
quinta-feira, 19 de novembro de 2009
A América Latina pode bem ser um ornitorrinco, mas pode bem ser transformada – Notas sobre a conjuntura
A América Latina sofre, há décadas, um fardo que parece às vezes mais pesado que suas forças, o fardo do neoliberalismo, a forma que o capitalismo assumiu em nossa região periférica. Na retórica das classes dominantes, tais transformações prometiam realizar um desenvolvimento justo e constante. Em contrapartida, o que se verifica é que somos hoje o continente de maior desigualdade no mundo, com inúmeros e complexos problemas de ordem social, política e econômica.
Nesse contexto, cada país do continente apresenta particularidades importantes. Francisco de Oliveira (2004, p. 112) dá uma valorosa contribuição para nosso esclarecimento a esse respeito, ao explicar por estas palavras a conjuntura latino-americana desta primeira década de século:
“Sob o diagnóstico geral, escondem-se especificidades: desde a fulminante transformação do México no maior exportador isolado para os EUA nos quadros do NAFTA – o que, entretanto, não o livrou do défault da dívida externa do começo dos 1990 e não vem resolvendo a questão da desigualdade mexicana – até o estrondoso fracasso e incrível retrocesso da Argentina, uma das cinco economias mais importantes do mundo no início do século XX. O Chile conhece o desenvolvimento menos errático desde a ditadura Pinochet, mas seus trabalhadores já experimentam as vinhas amargas – logo no belo país vinícola – da previdência privatizada, agora que é chegada a hora de pagar a conta. De qualquer forma, o isolacionismo chileno em relação à América Latina coloca-o na dependência quase exclusiva do mercado norte-americano, e de fato o Chile regrediu em termos da divisão social do trabalho: voltou à condição de uma economia primário-exportadora, ancorada no bom e velho cobre estatal. As economias uruguaia e paraguaia sofrem os efeitos do retrocesso argentino e do neoliberalismo brasileiro, e o Mercosul não tem sido suficiente, no estado em que está, para devolver-lhes dinamismo. A Colômbia transformou-se numa tragédia, cujas características todos conhecemos, e está em vias de transformar-se num não-Estado e numa não-nação. Equador, Peru e Bolívia têm experimentado espasmos tão violentos que mesmo a ciência social mais cautelosa não se arrisca a nenhuma previsão: pode-se passar do Sendero Luminoso a Fujimori, e deste a Toledo, das experimentações ao estilo de Thatcher avant la lettre a Evo Morales, e da dolarização a fórceps ao movimento indígena anti-capitalista quase sem mediações. A Venezuela sofreu a mais desenfreada corrupção sob o partido mais social-democrata que o continente conheceu, e vem experimentando cotidianamente todas as tentativas de desestabilização de sua revolução bolivariana, passando pelo escandaloso assalto à presidência da República liderado diretamente pelo presidente da associação de empresários.”
Tal quadro é o resultado de um processo levado a cabo pelo sistema do capital desde suas transformações no início da década de 1970 e que tem como um dos principais sintomas a declaração de guerra aberta contra toda e qualquer possibilidade de ação política que vá contra suas exigências. Como o capital faz isso? Provocando a erosão das instituições democráticas e republicanas. O neoliberalismo, conjunto de práticas político-econômicas realizadas com o objetivo de exacerbar a dimensão privada da vida social sob o capitalismo - e, conseqüentemente, enfraquecer a dimensão pública - representa, por isso mesmo, um enfraquecimento da política. A debilitação da esfera pública na América Latina é explicada de forma clara e concisa por Chomsky (2004, p. 24) nestas palavras:
“As privatizações reduzem a arena pública por definição, transferindo decisões da arena pública para as mãos de tiranias privadas que não prestam contas a ninguém. As sociedades anônimas não são outra coisa além disso. E isso, por definição, limita a democracia. Agora estão negociando as privatizações dos serviços. Se isso chegar a se concretizar, a esfera pública seria reduzida a virtualmente nada. Reduzi-la-iam de maneira tão drástica que a democracia formal poderia ser tolerável. Na verdade, foi introduzida na América Latina sem maiores preocupações quanto aos efeitos que podia ter: A extensão da democracia formal na América Latina em anos recentes fez-se acompanhar por uma crescente falta de confiança neste regime (…). Anos atrás, a extensão da democracia formal coincidiu com a aplicação das políticas neoliberais, que desta maneira minaram o funcionamento da democracia. De fato, são políticas elaboradas com esse propósito [grifo nossos].”
Esse quadro foi tomando forma, gradativamente, há algumas décadas atrás. Com o fim das ditaduras militares na América Latina, a liberdade que surgia parecia concorrer para a revitalização da atuação política. A década de 1980 viu surgir movimentos sociais, sindicalismos, partidos de massa com centralidade da classe trabalhadora e até uma reidentificação com o ideal bolivariano de unidade entre as nações, fenômenos que, em virtude da ampla participação popular de que eram compostos, prometiam consolidar a democracia em nosso continente.
Mas a herança das ditaduras militares, nesse contexto, foi deveras pesada. As modificações, por elas perpetradas, na estrutura social, política e econômica dos países latino-americanos, fizeram com que a globalização acabasse por subordinar a democratização. Como explica Francisco de Oliveira (2004, p. 113):
“Talvez na verdade tivéssemos subestimado o 'trabalho sujo' das ditaduras, os estragos produzidos na estrutura social, no aumento das desigualdades, na capacidade estatal de regulação dos conflitos, na identidade entre projeto nacional para as classes dominantes e projeto nacional para as classes dominadas. Uma espécie de assincronia, para dizer o mínimo, tinha-se produzido: as burguesias renunciavam a um projeto nacional, e o espaço da política era, assim, transformado em um confinamento para as classes dominadas. A onda de democratização foi engolfada pela globalização, com todas as suas conseqüências: as ditaduras haviam inserido definitivamente as economias da América Latina na financeirização do capital, o que esterilizam em grau extremado o poder do Estado nessa nova e original democratização.”
As forças políticas que assumiram o poder estatal após o desenlace das ditaduras acabaram por se constituir em epílogos desses regimes. Tudo o que fizeram foi apressar o passo para completar o trabalho de integração das economias nacionais latino-americanas dentro da nova estrutura do capital globalizado. As proteções alfandegárias foram derrubadas, privatizaram-se as empresas estatais, os mercados de trabalho sofreram desregulamentação, o precário Estado de Bem-Estar foi desmontado. Um dos resultados mais graves desses processos foi chamado por Francisco de Oliveira (2004, p. 114) de “estilhaçamento das relações de classe”, fenômeno que se expressou nos altos níveis de desemprego, de informalidade e na formação de um numeroso lumpesinato em nosso continente.
Além disso, a desestruturação das relações de classe gerou em muitos países a implosão dos vínculos existentes entre classes sociais e partidos políticos, fazendo assim com que a política institucional passasse a girar em falso. Desse modo, a globalização, com a financeirização, com a subordinação das economias nacionais aos processos internacionais de acumulação de capital, com o enfraquecimento do Estado em sua capacidade de impulsionar o desenvolvimento econômico, com o aumento das desigualdades e com a lumpenização que produziu, acabou tornando as instituições democráticas – a política institucional – muito débeis. O resultado é descrito por Francisco de Oliveira (2004, p. 115) com estas palavras: “Os bancos centrais são as verdadeiras autoridades nacionais, e eles não são autoridades democráticas. Na definição schmittiana, soberano é quem decide o Estado de Exceção [grifo nosso]. Os Estados nacionais transformam-se em Estado de Exceção: todas as políticas públicas são políticas de exceção. E quem decide entre nós?”
A globalização deu origem, então, a uma situação onde a democracia “se anula”, especialmente no que tange a determinação da economia por parte das classes trabalhadoras. Os grupos chamados de centro-esquerda que chegaram ao poder nos últimos anos acabaram prisioneiros das heranças recebidas de seus antecessores: tornaram-se “os executores da exceção [grifo nosso]: dos superávits combinados com o Fundo Monetário internacional (FMI), da pressa para implementar o tratado de livre comércio (ALCA), da submissão à Organização Mundial do Comércio (OMC), de nossa conversão ao livre-câmbio e ao livre comércio.” (OLIVEIRA, 2004, p. 115).
Desse modo, com o enfraquecimento do Estado em sua capacidade de fomentar o desenvolvimento, restou apenas a possibilidade de administração de políticas de funcionalização da pobreza, políticas que podem ser consideradas, como denominou o sociólogo pernambucano, “de exceção”.
Do ponto de vista social e econômico, observa-se então a momentânea perda da capacidade das forças do trabalho de proporem políticas e afiançá-las, ou de vetar reformas contra seus interesses. Os trabalhadores tornaram-se objetos de políticas compensatórias cujo objetivo precípuo é o de funcionalizar a pobreza. O resultado maior é que, como explica Oliveira (2003, p. 115), as sociedades da América Latina se tornam semelhantes aos ornitorrincos, “uma combinação esdrúxula de altas rendas, consumo ostentatório, acumulação de capital comandada pela revolução molecular-digital, pobreza extrema, lumpesinato moderno, avassalamento pelo capital financeiro, incapacidade técnico-científica.”
*
Mas as classes exploradas latino-americanas não assistiram de braços cruzados a realização desses processos. Houve, de fato, muitos enfrentamentos por parte daqueles que se negavam em sucumbir passivamente diante das engrenagens da globalização. No campo e na cidade, em vários países, as pessoas se organizaram para protestar, combater e reivindicar seus direitos, dando assim seguimento à tradição de luta que permeia a história de nosso continente. Se as últimas décadas verificaram o domínio do neoliberalismo na América Latina, por outro lado também se viram encarniçados combates por parte de todos os grupos sociais que se percebiam explorados pelo capital.
Alguns deles, por exemplo: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), surgido em 1984, no Brasil, resultado de longos anos de trabalho de conscientização e de promoção da auto-organização camponesa pela Comissão Pastoral da Igreja, e que reúne centenas de milhares de militantes, constituindo-se, sem dúvida, no movimento social mais importante e combativo no Brasil na atualidade; O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), surgido no México, na década de 1990, que organizou Encontros Intercontinentais - “Intergalácticos” na linguagem irônica do subcomandante Marcos – que reuniram milhares de sindicalistas, militantes camponeses, indígenas, intelectuais, estudantes e ativistas das diferentes correntes de esquerda, provenientes de quarenta países do mundo inteiro – inclusive muitos da Europa e dos Estados Unidos –, todos com o objetivo de lutar pela humanidade e contra o neoliberalismo; a ascensão de movimentos indígenas no Equador, no Chile, na Bolívia, no Peru, na Guatemala, etc.; os piqueteros na Argentina, a ascensão ao governo de Hugo Chávez, na Venezuela, que retomou a bandeira da unidade antiimperialista – “bolivariana” – dos povos latino-americanos e a perspectiva socialista; a eleição de Evo Morales, na Bolívia, em 2005, dirigente do sindicato dos cocaleros e fundador do Movimento para o Socialismo (MAS); e, sobretudo o movimento altermundista, que é hoje, como afirmam Löwy e Besancenot (2009, p. 118):
“[...] sem dúvida o mais importante fenômeno de resistência anti-sistêmico do início do século XXI. Essa vasta nebulosa, 'movimento dos movimentos', toma forma visível por ocasião dos Fóruns Sociais – regionais ou mundiais – e das grandes manifestações de protesto contra a OMC, o G-8 ou a guerra imperialista no Iraque. Ampla rede descentralizada, ela é múltipla, diversa e heterogênea, associando sindicatos operários e movimentos camponeses, ONGs e organizações indígenas, movimentos de mulheres e associações ecológicas, intelectuais e jovens ativistas. Longe de ser uma fraqueza, sua pluralidade é uma das fontes da força, crescente e em expansão, do movimento.”
*
É juntamente com estes que nos situamos. Somente do ponto de vista destes é que se torna visível a necessidade de elaborar uma teoria social, política e econômica que vá além do capital. Acreditamos que, se por um lado a conjuntura é difícil, por outro abre novas possibilidades para a luta. Se sentimos empatia e apostamos nos explorados pelo sistema do capital e na sua capacidade de criar um modo de existência qualitativamente novo, uma das tarefas que se nos apresenta imprescindível na atual conjuntura é a generalização do pensamento crítico que poderá, quiçá, orientar ações igualmente críticas. Por isto, as reflexões desses autores que ora compartilhamos com vocês.
Referências:
CHOMSKY, Noam. Os dilemas da dominação. in BORÓN, Atílio (org.) Nova hegemonia mundial. Alternativas de mudanças e movimentos sociais. 1ª ed. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2004.
LÖWY, Michael e BESANCENOT, Olivier. Che Guevara: uma chama que continua ardendo. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
OLIVEIRA, Francisco de. Há Vias Abertas para a América Latina? in BORÓN, Atílio (org.) Nova hegemonia mundial. Alternativas de mudanças e movimentos sociais. 1ª ed. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2004, p. 112.
Nesse contexto, cada país do continente apresenta particularidades importantes. Francisco de Oliveira (2004, p. 112) dá uma valorosa contribuição para nosso esclarecimento a esse respeito, ao explicar por estas palavras a conjuntura latino-americana desta primeira década de século:
“Sob o diagnóstico geral, escondem-se especificidades: desde a fulminante transformação do México no maior exportador isolado para os EUA nos quadros do NAFTA – o que, entretanto, não o livrou do défault da dívida externa do começo dos 1990 e não vem resolvendo a questão da desigualdade mexicana – até o estrondoso fracasso e incrível retrocesso da Argentina, uma das cinco economias mais importantes do mundo no início do século XX. O Chile conhece o desenvolvimento menos errático desde a ditadura Pinochet, mas seus trabalhadores já experimentam as vinhas amargas – logo no belo país vinícola – da previdência privatizada, agora que é chegada a hora de pagar a conta. De qualquer forma, o isolacionismo chileno em relação à América Latina coloca-o na dependência quase exclusiva do mercado norte-americano, e de fato o Chile regrediu em termos da divisão social do trabalho: voltou à condição de uma economia primário-exportadora, ancorada no bom e velho cobre estatal. As economias uruguaia e paraguaia sofrem os efeitos do retrocesso argentino e do neoliberalismo brasileiro, e o Mercosul não tem sido suficiente, no estado em que está, para devolver-lhes dinamismo. A Colômbia transformou-se numa tragédia, cujas características todos conhecemos, e está em vias de transformar-se num não-Estado e numa não-nação. Equador, Peru e Bolívia têm experimentado espasmos tão violentos que mesmo a ciência social mais cautelosa não se arrisca a nenhuma previsão: pode-se passar do Sendero Luminoso a Fujimori, e deste a Toledo, das experimentações ao estilo de Thatcher avant la lettre a Evo Morales, e da dolarização a fórceps ao movimento indígena anti-capitalista quase sem mediações. A Venezuela sofreu a mais desenfreada corrupção sob o partido mais social-democrata que o continente conheceu, e vem experimentando cotidianamente todas as tentativas de desestabilização de sua revolução bolivariana, passando pelo escandaloso assalto à presidência da República liderado diretamente pelo presidente da associação de empresários.”
Tal quadro é o resultado de um processo levado a cabo pelo sistema do capital desde suas transformações no início da década de 1970 e que tem como um dos principais sintomas a declaração de guerra aberta contra toda e qualquer possibilidade de ação política que vá contra suas exigências. Como o capital faz isso? Provocando a erosão das instituições democráticas e republicanas. O neoliberalismo, conjunto de práticas político-econômicas realizadas com o objetivo de exacerbar a dimensão privada da vida social sob o capitalismo - e, conseqüentemente, enfraquecer a dimensão pública - representa, por isso mesmo, um enfraquecimento da política. A debilitação da esfera pública na América Latina é explicada de forma clara e concisa por Chomsky (2004, p. 24) nestas palavras:
“As privatizações reduzem a arena pública por definição, transferindo decisões da arena pública para as mãos de tiranias privadas que não prestam contas a ninguém. As sociedades anônimas não são outra coisa além disso. E isso, por definição, limita a democracia. Agora estão negociando as privatizações dos serviços. Se isso chegar a se concretizar, a esfera pública seria reduzida a virtualmente nada. Reduzi-la-iam de maneira tão drástica que a democracia formal poderia ser tolerável. Na verdade, foi introduzida na América Latina sem maiores preocupações quanto aos efeitos que podia ter: A extensão da democracia formal na América Latina em anos recentes fez-se acompanhar por uma crescente falta de confiança neste regime (…). Anos atrás, a extensão da democracia formal coincidiu com a aplicação das políticas neoliberais, que desta maneira minaram o funcionamento da democracia. De fato, são políticas elaboradas com esse propósito [grifo nossos].”
Esse quadro foi tomando forma, gradativamente, há algumas décadas atrás. Com o fim das ditaduras militares na América Latina, a liberdade que surgia parecia concorrer para a revitalização da atuação política. A década de 1980 viu surgir movimentos sociais, sindicalismos, partidos de massa com centralidade da classe trabalhadora e até uma reidentificação com o ideal bolivariano de unidade entre as nações, fenômenos que, em virtude da ampla participação popular de que eram compostos, prometiam consolidar a democracia em nosso continente.
Mas a herança das ditaduras militares, nesse contexto, foi deveras pesada. As modificações, por elas perpetradas, na estrutura social, política e econômica dos países latino-americanos, fizeram com que a globalização acabasse por subordinar a democratização. Como explica Francisco de Oliveira (2004, p. 113):
“Talvez na verdade tivéssemos subestimado o 'trabalho sujo' das ditaduras, os estragos produzidos na estrutura social, no aumento das desigualdades, na capacidade estatal de regulação dos conflitos, na identidade entre projeto nacional para as classes dominantes e projeto nacional para as classes dominadas. Uma espécie de assincronia, para dizer o mínimo, tinha-se produzido: as burguesias renunciavam a um projeto nacional, e o espaço da política era, assim, transformado em um confinamento para as classes dominadas. A onda de democratização foi engolfada pela globalização, com todas as suas conseqüências: as ditaduras haviam inserido definitivamente as economias da América Latina na financeirização do capital, o que esterilizam em grau extremado o poder do Estado nessa nova e original democratização.”
As forças políticas que assumiram o poder estatal após o desenlace das ditaduras acabaram por se constituir em epílogos desses regimes. Tudo o que fizeram foi apressar o passo para completar o trabalho de integração das economias nacionais latino-americanas dentro da nova estrutura do capital globalizado. As proteções alfandegárias foram derrubadas, privatizaram-se as empresas estatais, os mercados de trabalho sofreram desregulamentação, o precário Estado de Bem-Estar foi desmontado. Um dos resultados mais graves desses processos foi chamado por Francisco de Oliveira (2004, p. 114) de “estilhaçamento das relações de classe”, fenômeno que se expressou nos altos níveis de desemprego, de informalidade e na formação de um numeroso lumpesinato em nosso continente.
Além disso, a desestruturação das relações de classe gerou em muitos países a implosão dos vínculos existentes entre classes sociais e partidos políticos, fazendo assim com que a política institucional passasse a girar em falso. Desse modo, a globalização, com a financeirização, com a subordinação das economias nacionais aos processos internacionais de acumulação de capital, com o enfraquecimento do Estado em sua capacidade de impulsionar o desenvolvimento econômico, com o aumento das desigualdades e com a lumpenização que produziu, acabou tornando as instituições democráticas – a política institucional – muito débeis. O resultado é descrito por Francisco de Oliveira (2004, p. 115) com estas palavras: “Os bancos centrais são as verdadeiras autoridades nacionais, e eles não são autoridades democráticas. Na definição schmittiana, soberano é quem decide o Estado de Exceção [grifo nosso]. Os Estados nacionais transformam-se em Estado de Exceção: todas as políticas públicas são políticas de exceção. E quem decide entre nós?”
A globalização deu origem, então, a uma situação onde a democracia “se anula”, especialmente no que tange a determinação da economia por parte das classes trabalhadoras. Os grupos chamados de centro-esquerda que chegaram ao poder nos últimos anos acabaram prisioneiros das heranças recebidas de seus antecessores: tornaram-se “os executores da exceção [grifo nosso]: dos superávits combinados com o Fundo Monetário internacional (FMI), da pressa para implementar o tratado de livre comércio (ALCA), da submissão à Organização Mundial do Comércio (OMC), de nossa conversão ao livre-câmbio e ao livre comércio.” (OLIVEIRA, 2004, p. 115).
Desse modo, com o enfraquecimento do Estado em sua capacidade de fomentar o desenvolvimento, restou apenas a possibilidade de administração de políticas de funcionalização da pobreza, políticas que podem ser consideradas, como denominou o sociólogo pernambucano, “de exceção”.
Do ponto de vista social e econômico, observa-se então a momentânea perda da capacidade das forças do trabalho de proporem políticas e afiançá-las, ou de vetar reformas contra seus interesses. Os trabalhadores tornaram-se objetos de políticas compensatórias cujo objetivo precípuo é o de funcionalizar a pobreza. O resultado maior é que, como explica Oliveira (2003, p. 115), as sociedades da América Latina se tornam semelhantes aos ornitorrincos, “uma combinação esdrúxula de altas rendas, consumo ostentatório, acumulação de capital comandada pela revolução molecular-digital, pobreza extrema, lumpesinato moderno, avassalamento pelo capital financeiro, incapacidade técnico-científica.”
*
Mas as classes exploradas latino-americanas não assistiram de braços cruzados a realização desses processos. Houve, de fato, muitos enfrentamentos por parte daqueles que se negavam em sucumbir passivamente diante das engrenagens da globalização. No campo e na cidade, em vários países, as pessoas se organizaram para protestar, combater e reivindicar seus direitos, dando assim seguimento à tradição de luta que permeia a história de nosso continente. Se as últimas décadas verificaram o domínio do neoliberalismo na América Latina, por outro lado também se viram encarniçados combates por parte de todos os grupos sociais que se percebiam explorados pelo capital.
Alguns deles, por exemplo: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), surgido em 1984, no Brasil, resultado de longos anos de trabalho de conscientização e de promoção da auto-organização camponesa pela Comissão Pastoral da Igreja, e que reúne centenas de milhares de militantes, constituindo-se, sem dúvida, no movimento social mais importante e combativo no Brasil na atualidade; O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), surgido no México, na década de 1990, que organizou Encontros Intercontinentais - “Intergalácticos” na linguagem irônica do subcomandante Marcos – que reuniram milhares de sindicalistas, militantes camponeses, indígenas, intelectuais, estudantes e ativistas das diferentes correntes de esquerda, provenientes de quarenta países do mundo inteiro – inclusive muitos da Europa e dos Estados Unidos –, todos com o objetivo de lutar pela humanidade e contra o neoliberalismo; a ascensão de movimentos indígenas no Equador, no Chile, na Bolívia, no Peru, na Guatemala, etc.; os piqueteros na Argentina, a ascensão ao governo de Hugo Chávez, na Venezuela, que retomou a bandeira da unidade antiimperialista – “bolivariana” – dos povos latino-americanos e a perspectiva socialista; a eleição de Evo Morales, na Bolívia, em 2005, dirigente do sindicato dos cocaleros e fundador do Movimento para o Socialismo (MAS); e, sobretudo o movimento altermundista, que é hoje, como afirmam Löwy e Besancenot (2009, p. 118):
“[...] sem dúvida o mais importante fenômeno de resistência anti-sistêmico do início do século XXI. Essa vasta nebulosa, 'movimento dos movimentos', toma forma visível por ocasião dos Fóruns Sociais – regionais ou mundiais – e das grandes manifestações de protesto contra a OMC, o G-8 ou a guerra imperialista no Iraque. Ampla rede descentralizada, ela é múltipla, diversa e heterogênea, associando sindicatos operários e movimentos camponeses, ONGs e organizações indígenas, movimentos de mulheres e associações ecológicas, intelectuais e jovens ativistas. Longe de ser uma fraqueza, sua pluralidade é uma das fontes da força, crescente e em expansão, do movimento.”
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É juntamente com estes que nos situamos. Somente do ponto de vista destes é que se torna visível a necessidade de elaborar uma teoria social, política e econômica que vá além do capital. Acreditamos que, se por um lado a conjuntura é difícil, por outro abre novas possibilidades para a luta. Se sentimos empatia e apostamos nos explorados pelo sistema do capital e na sua capacidade de criar um modo de existência qualitativamente novo, uma das tarefas que se nos apresenta imprescindível na atual conjuntura é a generalização do pensamento crítico que poderá, quiçá, orientar ações igualmente críticas. Por isto, as reflexões desses autores que ora compartilhamos com vocês.
Referências:
CHOMSKY, Noam. Os dilemas da dominação. in BORÓN, Atílio (org.) Nova hegemonia mundial. Alternativas de mudanças e movimentos sociais. 1ª ed. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2004.
LÖWY, Michael e BESANCENOT, Olivier. Che Guevara: uma chama que continua ardendo. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
OLIVEIRA, Francisco de. Há Vias Abertas para a América Latina? in BORÓN, Atílio (org.) Nova hegemonia mundial. Alternativas de mudanças e movimentos sociais. 1ª ed. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2004, p. 112.
domingo, 15 de novembro de 2009
A ditadura: essa nossa oculta (e desconhecida) companhia de todos os dias – Breve reflexão em torno do pensamento de Giorgio Agamben
Em 13 de novembro de 2001, o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, promulgou uma ordem militar que autorizava a “indefinite detention” e o processo perante as “military commisions” dos não-cidadãos suspeitos de atividades terroristas. Alguns dias antes, em 26 de outubro de 2001, o Senado norte-americano havia promulgado o USA Patriot Act, que permitia ao secretário de Justiça desse país manter preso o estrangeiro suspeito de atividades capazes de colocar em perigo a segurança nacional dos Estados Unidos.
A novidade desta ordem estava em “anular radicalmente todo estatuto jurídico do indivíduo, produzindo, dessa forma, um ser juridicamente inominável e inclassificável.” (cf. Agamben, 2004, 14). Isso significa, por exemplo, que um talibã capturado no Afeganistão não pode gozar do estatuto de prisioneiro de guerra, conforme assegura a Convenção de Genebra, assim como também não pode receber o status de acusado segundo as leis norte-americanas. Acaba por converter-se, portanto, em objeto de uma pura dominação de fato, uma detenção indeterminada em relação ao tempo, uma situação totalmente fora da lei e fora do controle judiciário. Semelhante aos judeus nos campos de concentração nazistas, que perdiam, junto com a cidadania, toda a identidade jurídica, apesar de guardarem a identidade de judeus. Esse é exemplo mais claro para ilustrar a realidade do estado de exceção, o paradigma de governo dominante no contexto da política contemporânea, segundo Giorgio Agamben.
O estado de exceção pode ser definido como a suspensão da ordem jurídica levada a cabo em situações “extremas”, com o objetivo de “salvar” essa mesma ordem jurídica. Em outras palavras, é a “suspensão legal” da lei. Nessas condições, a ditadura se instala amparada pela lei e o poder passa a ser exercido de forma arbitrária. O estado de exceção constitui o paradigma de funcionamento das estruturas jurídicas que procuram normatizar o campo da política e da ação social. Os Estados que fazem uso desse mecanismo tornam-se, então, além de garantidores e administradores da ordem, produtores e gestores da desordem. E, se considerarmos que os Estados têm, nos últimos dois séculos, lançado mão cada vez mais freqüentemente desse dispositivo, não poderíamos dizer, com Agamben, que o estado de exceção seria, de fato, a regra?
Esse dispositivo, o do estado de exceção, tem uma longa história. Foi criado pela Assembléia Constituinte Francesa, sob o nome de estado de sítio, em 1791. Inicialmente, era aplicado apenas à praças fortes e portos militares. Em 1811, Napoleão estabeleceu que o estado de sítio era passível de ser declarado pelo imperador a despeito da situação efetiva de uma cidade estar ameaçada militarmente. A partir de então, observa-se um progressivo desenvolvimento de dispositivos jurídicos semelhantes na Alemanha, Suíça, Itália, Reino Unido e EUA, que serão aplicados, ao longo dos séculos XIX e XX, em momentos variados de necessidade política ou econômica. Verifica-se, então, um processo de generalização dos dispositivos governamentais de exceção. Esse processo teria sido, segundo Agamben, o “motor invisível” das democracias ocidentais. A contradição está em que, suspendendo a norma sem necessariamente abolir a norma, o estado de exceção, que pretende, em última instância, salvaguardar a ordem democrática, torna a ordem democrática, de fato, impossível.
Uma pergunta que cabe, nesse contexto, é a seguinte: como o estado de exceção afeta a nós, latino-americanos, na contemporaneidade?
Referências:
1. AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
2. SAFATLE, Vladimir. A política da profanação (entrevista com Giorgio Agamben). Jornal Folha de São Paulo, 18/09/05. http://www.geocities.com/vladimirsafatle/vladi081.htm
A novidade desta ordem estava em “anular radicalmente todo estatuto jurídico do indivíduo, produzindo, dessa forma, um ser juridicamente inominável e inclassificável.” (cf. Agamben, 2004, 14). Isso significa, por exemplo, que um talibã capturado no Afeganistão não pode gozar do estatuto de prisioneiro de guerra, conforme assegura a Convenção de Genebra, assim como também não pode receber o status de acusado segundo as leis norte-americanas. Acaba por converter-se, portanto, em objeto de uma pura dominação de fato, uma detenção indeterminada em relação ao tempo, uma situação totalmente fora da lei e fora do controle judiciário. Semelhante aos judeus nos campos de concentração nazistas, que perdiam, junto com a cidadania, toda a identidade jurídica, apesar de guardarem a identidade de judeus. Esse é exemplo mais claro para ilustrar a realidade do estado de exceção, o paradigma de governo dominante no contexto da política contemporânea, segundo Giorgio Agamben.
O estado de exceção pode ser definido como a suspensão da ordem jurídica levada a cabo em situações “extremas”, com o objetivo de “salvar” essa mesma ordem jurídica. Em outras palavras, é a “suspensão legal” da lei. Nessas condições, a ditadura se instala amparada pela lei e o poder passa a ser exercido de forma arbitrária. O estado de exceção constitui o paradigma de funcionamento das estruturas jurídicas que procuram normatizar o campo da política e da ação social. Os Estados que fazem uso desse mecanismo tornam-se, então, além de garantidores e administradores da ordem, produtores e gestores da desordem. E, se considerarmos que os Estados têm, nos últimos dois séculos, lançado mão cada vez mais freqüentemente desse dispositivo, não poderíamos dizer, com Agamben, que o estado de exceção seria, de fato, a regra?
Esse dispositivo, o do estado de exceção, tem uma longa história. Foi criado pela Assembléia Constituinte Francesa, sob o nome de estado de sítio, em 1791. Inicialmente, era aplicado apenas à praças fortes e portos militares. Em 1811, Napoleão estabeleceu que o estado de sítio era passível de ser declarado pelo imperador a despeito da situação efetiva de uma cidade estar ameaçada militarmente. A partir de então, observa-se um progressivo desenvolvimento de dispositivos jurídicos semelhantes na Alemanha, Suíça, Itália, Reino Unido e EUA, que serão aplicados, ao longo dos séculos XIX e XX, em momentos variados de necessidade política ou econômica. Verifica-se, então, um processo de generalização dos dispositivos governamentais de exceção. Esse processo teria sido, segundo Agamben, o “motor invisível” das democracias ocidentais. A contradição está em que, suspendendo a norma sem necessariamente abolir a norma, o estado de exceção, que pretende, em última instância, salvaguardar a ordem democrática, torna a ordem democrática, de fato, impossível.
Uma pergunta que cabe, nesse contexto, é a seguinte: como o estado de exceção afeta a nós, latino-americanos, na contemporaneidade?
Referências:
1. AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
2. SAFATLE, Vladimir. A política da profanação (entrevista com Giorgio Agamben). Jornal Folha de São Paulo, 18/09/05. http://www.geocities.com/vladimirsafatle/vladi081.htm
domingo, 8 de novembro de 2009
Serão revolucionários os favelados?
O mundo está se favelizando. Esta é a conclusão que se chega ao se ler o artigo do sociólogo norte-americano Mike Davis, publicado há algum tempo atrás na revista New Left Review. De acordo com Davis, o que se observa hoje é que, como resultado dos processos econômicos e políticos do capitalismo global, a maioria das cidades do hemisfério sul tornou-se semelhante à Dublin vitoriana, ou seja, um amontoado de cortiços. As análises de Davis estão baseadas em um relatório publicado em 2003 pelo Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas (UN-Habitat), intitulado The challenge of slums [O desafio das favelas] (daqui em diante apenas Slums), que revela pela primeira vez uma imagem verdadeiramente global da pobreza urbana.
Segundo Davis, o relatório é interessante não só pela abrangência e pela competência técnica com que foi elaborado. Ele é incomum também pela honestidade intelectual. “Um dos pesquisadores contou-me que ‘os tipos de Consenso de Washington (Banco Mundial, FMI, etc.) sempre insistiram em definir os problemas das favelas globais não como resultado da globalização e da desigualdade, mas como resultado do mau governo’ (grifos de Davis). No entanto, o novo relatório rompe a seriedade e a autocensura tradicionais da ONU para condenar abertamente o neoliberalismo, em especial os programas de ajuste estrutural do FMI” (cf. Davis, 2006, 107). O relatório mostra que o resultado dessas ações políticas e econômicas nos últimos vinte anos aumentaram a pobreza urbana e as favelas, e elevaram, por conseguinte, a desigualdade econômica e social.
As condições de vida nas favelas são: excesso de população, habitações pobres ou informais, acesso inadequado à água potável e ao esgoto sanitário e insegurança da posse da terra. O relatório Slums estima que, em 2001, havia 921 milhões de moradores de favelas, no mundo. Eles constituem um terço da população urbana mundial. Pelo menos metade dessa população tem menos de vinte anos. As previsões mais sombrias são de que, em algumas décadas, os habitantes de favelas passem a constituir metade da população urbana mundial.
Como afirma Davis, “os maiores percentuais de moradores de moradores de favelas do mundo são da Etiópia (espantosos 99,4% da população urbana), Tchade (também 99,4%), Afeganistão (98,5%) e Nepal (92%)” (Davis, 2006, 199). Em cidades como Déhli, o absurdo se manifesta em situações como a existência de “favelas dentro de favelas”. E, no Cairo, as pessoas recém-chegadas à cidade podem se acomodar em confortáveis espaços nos telhados, criando, assim, favelas no ar.
Há cerca de 250 mil favelas na Terra. Nas cinco maiores cidades do sul da Ásia (Karachi, Mumbai, Délhi, Kolkata e Daca) existem aproximadamente 20 milhões de pessoas distribuídas nas cerca de 15 mil favelas. Na África, a situação é semelhante, só que pior. No estado de Lagos, na Nigéria, aproximadamente dois terços dos 3577 km² de superfície do estado estão cobertos de barracos e favelas. O estado de Lagos é constituído de um corredor de 70 milhões de favelados que se estende por entre as cidades de Abidjan e Ibadan, provavelmente a maior área de solo coberta de pobreza urbana em nosso planeta. Estimados 57% dos africanos urbanos não tem acesso a saneamento básico. Em Nairóbi, no Quênia, os pobres recorrem freqüentemente a “banheiros voadores” (defecar num saco plástico).
Não bastasse isso, por toda parte as pessoas são obrigadas a habitar terrenos perigosos e inapropriados para a construção – encostas, margens de rios, proximidades de refinarias, indústrias químicas, depósitos de lixo tóxico e nas margens de ferrovias e auto-estradas. Como conseqüência, “a pobreza ‘construiu’ um problema de desastre urbano de freqüência e alcance sem precedentes, como exemplificam as inundações crônicas em Manila, Daca, e Rio de Janeiro; as explosões de dutos na Cidade do México e em Cubatão (no Brasil); a catástrofe de Bhopal, na Índia; a explosão de uma fábrica de munição em Lagos e os deslizamentos fatais em Caracas, La Paz e Tegucicalpa. Além disso, as comunidades de pobres urbanos sem direito a voto são vulneráveis às explosões súbitas de violência estatal, como na famosa destruição, em 1990, da favela praiana de Maroko, em Lagos (‘uma agressão à paisagem para a comunidade vizinha de Victoria Island, fortaleza dos ricos’), ou a demolição, em 1995, sob clima congelante, da grande cidade de ocupantes ilegais de Zhejiangcun, nos arredores de Beijing” (Cf. Davis, idem, 202). Miséria, então, rima com favela, que, por sua vez, rima com tragédia.
A população de favelados cresce, portanto, vertiginosamente ao redor do mundo. Sua existência revela o predomínio de um aspecto peculiar do trabalho no contexto da contemporaneidade: o trabalho informal. As cidades, em verdade, se converteram, ao longo do século XX, em depósitos de lixo que concentram o “excedente de população” que tem que sobreviver mediante trabalho realizado nos mais diferentes setores da informalidade, sem especialização, sem amparo de legislação e com baixíssimos salários. E como garante o relatório Slums, “O crescimento d[este] setor informal é [...] resultado direto da liberalização” (apud Davis, idem, 209).
O número de trabalhadores informais no mundo atinge cifras espantosas: um bilhão de pessoas (número que se sobrepõe, mas não é idêntico ao dos moradores das favelas). O setor informal equivale a dois terços da população economicamente ativa do mundo em desenvolvimento. 57% da força de trabalho latino-americana está nesse setor. Na Indonésia, um dos países mais populosos do mundo, essa cifra chega a 65%. Na África, um pouco menos: 60%. E na Ásia, “apenas” 40%. Em algumas regiões do planeta, como nas cidades sub-saarianas, o “emprego formal” praticamente deixou de existir. Slums estima, ainda, que, na África, nos próximos dez anos, 90% das vagas urbanas de trabalho virão do setor informal. E a tendência macro-econômica real do trabalho informal é a reprodução da pobreza absoluta.
Pode-se esperar dessas pessoas miseráveis, marginalizadas e esquecidas algum movimento radical e transformação em relação à ordem política, social e econômica dominante? Que pensam elas? Em que crêem? Quais as aspirações, expectativas e sonhos que alimentam? Seriam as favelas vulcões em erupção, prestes a derramar sua lava incandescente por sobre a sociedade burguesa do século XXI? Ou manterão seus habitantes um comportamento mais parecido com os processos de competição darwiniana pela vida, lutando e devorando-se uns ao outros, sobrevivendo dos restos e resíduos que conquistam? Enfim, que se pode esperar desses sujeitos e quais projetos cultivam?
Davis não hesita em dizer que, pelo menos por enquanto, “Marx cedeu o palco histórico a Maomé e ao Espírito Santo” (Davis, idem, 214), ou seja, o materialismo revolucionário não é a visão de mundo que tem ganhado espaço entre os trabalhadores informais da sociedade das favelas. O que prolifera, hoje, é uma concepção religiosa do mundo, dividida entre o islamismo populista e o cristianismo pentecostal (cf. Davis, idem, ibidem). Seria este fato motivo para desesperar de transformações mais fundamentais da estrutura social, política e econômica em que vivemos?
É preciso esclarecer que estas visões de mundo têm uma grande diferença: enquanto o islamismo populista enfatiza a continuidade da civilização e prega a solidariedade de fé entre as classes – assumindo, assim, uma postura complacente com o capitalismo globalizado –, o pentecostalismo mantém uma identidade fundamentalmente exílica. Como nos assegura o sociólogo norte-americano, “sua premissa básica é a de que o mundo urbano é corrupto, injusto e impossível de reformar” (Davis, idem, 218). Em outras palavras, a postura implícita dessas pessoas em relação ao mundo profano é de negatividade.
Que se pode esperar, então, dessas comunidades em que prepondera uma religiosidade capaz de fazer o mundo parecer como um lugar hostil e que se deve recusar? Acreditamos que é perfeitamente cabível considerar essas comunidades como uma resistência efetiva contra o sistema econômico, social e político vigente. Em verdade, como afirmou o estudioso Jean Comaroff (citado por Davis, idem, ibidem), elas constituem mesmo uma resistência “mais radical” do que a atividade política sindical formal.
Portanto, se é assim, não poderíamos apostar nelas, nas comunidades de favelados, como um terreno fértil para concepções que, em breve, poderão vir a exigir transformações efetivas e profundas da sociedade de capitalismo globalizado que hoje se estabelece?
Esta parece ser a aposta do filósofo esloveno Slavoj Zizek, em um recente livro: Às portas da revolução, escritos de Lênin de 1917. No prefácio da obra, comentando o crescimento explosivo das favelas ao redor do mundo e considerando este fato como o possível “evento geopolítico crucial do nosso tempo” (Zizek, 2005, 20), visto que, nas favelas, as pessoas estão à margem do controle do Estado - ainda que vivam incorporadas na economia global de várias formas – Zizek se pergunta: “não seriam eles [os bairros e favelas miseráveis das megalópoles da atualidade] os primeiros ‘territórios libertados’, as células de futuras sociedades auto-organizadas?” (idem, ibidem, 17). Ou seja, não seriam esses espaços protótipos de uma comunidade alternativa, que rejeita completamente o espaço do Estado em vigor? Não seria esse, agora, o novo eixo da luta de classes? Mais ainda: “seria a ‘classe simbólica’ [isto é, a classe dominante] inerentemente dividida, a ponto de podermos fazer uma aposta emancipatória na coalizão entre os moradores dos bairros miseráveis e a parte ‘progressista’ da classe simbólica?” (idem, ibidem, 21).
Para Zizek, as favelas do mundo contemporâneo, com seus trabalhadores informais, religiões pentecostais, mendigos, vagabundos e párias de todo tipo, são semelhantes a Canudos, comunidade alternativa existente no sertão brasileiro durante alguns anos da última década do século XIX. “Canudos, liderado por um profeta apocalíptico, era um espaço utópico sem dinheiro, propriedade, impostos ou casamento [...] Tudo deve ser defendido neste caso, até mesmo o ‘fanatismo’ religioso. É como se, nesse tipo de comunidade, o outro lado benjaminiano do progresso histórico, o dos derrotados, adquirisse seu próprio espaço. A utopia existiu ali por um breve período [...]. Até agora, tais comunidades surgiram de tempos em tempos como um fenômeno passageiro, pontos de eternidade interrompendo o fluxo do progresso temporal [...]” (idem, ibid. 17).
Zizek considera que os ecos de Canudos são perfeitamente identificáveis nas favelas contemporâneas. Caberiam aqui, por conseguinte, aquelas palavras de Walter Benjamin, apresentadas na segunda tese sobre o Conceito de História, que parecem nos questionar a nós, os vivos, se, por acaso, “não nos afaga levemente um sopro de ar que envolveu os que nos precederam? Não ressoa nas vozes a que damos ouvido um eco das que estão, agora, caladas?”. Não guardaria, então, o nosso tempo estilhaços de um passado que importa, agora, interpretar? Quem eram os insurgentes do passado? Como viviam aqueles que, em outros tempos, ao perceber que a exceção se tornara a regra, tentavam eles mesmos criar um verdadeiro estado de exceção?
Nesse sentido, é interessante observar a explicação de Hobsbawm sobre a situação de urbanização, pobreza e segregação no contexto imediatamente anterior às revoluções de 1848, na Europa: “Em nosso período [primeiras décadas do século XIX], o desenvolvimento urbano foi um gigantesco processo de segregação de classes, que empurrava os novos trabalhadores pobres para as grandes concentrações de miséria alijadas dos centros de governo e dos negócios, e das novas áreas residenciais da burguesia. A divisão das grandes cidades européias, de caráter quase universal, em zonas ricas localizadas a oeste e zonas pobres localizadas a leste se desenvolveu neste período. E que instituições sociais, exceto a taverna e talvez a capela, foram criadas nestas novas aglomerações de trabalhadores, a não ser pela própria iniciativa dos trabalhadores?” (Hobsbawn, 2002, p. 283-4). E que fizeram estes segregados, derrotados, oprimidos miseráveis? “A alternativa da fuga ou da derrota era a rebelião. A situação dos trabalhadores pobres, e especialmente do proletariado industrial que formava seu núcleo, era tal que a rebelião era não somente possível mas virtualmente compulsória. Nada foi mais inevitável na primeira metade do século XIX do que o aparecimento dos movimentos trabalhista e socialista, assim como a intranqüilidade revolucionária das massas. A revolução de 1848 foi sua conseqüência direta.” (Hobsbawm, idem, p. 285).
A rebelião, a revolta, a insurgência, a revolução, aparecerão, então, como uma alternativa aos que não quiserem ser passivamente esmagados pelo sistema. Será impossível de imaginar revoluções futuras num mundo onde um bilhão de pessoas vive com cerca de um dólar por dia? Não há, porventura, uma correspondência entre a nossa situação de miséria e marginalidade e a dos que viveram antes de nós? Não somos também oprimidos como os de outrora? Não resistimos, também, ativamente? Não alimentamos ora velada, ora abertamente, um sonho de libertação? Não estamos submetidos a uma situação de exceção que se converteu em regra? Não estamos tentando, ainda que de forma e subterrânea e imperceptível ao vulgo, instaurar aquilo que Benjamin chamou de "verdadeiro estado de exceção"?
Se assim é, um encontro secreto está marcado entre as gerações passadas e a nossa. Se assim é, torna-se necessário que agora essa relação entre o passado e o presente se torne visível - ainda que esta seja uma visibilidade fugaz, tal qual a de um raio que reluz efêmero numa noite de tempestade. Essa luz momentânea nos permitirá a organização das energias críticas e uma melhor locomoção dentro dessa tempestade ininterrupta que é a história. Temos que ter bem presente essa realidade, pois, ao que parece, o futuro passa por aí.
Referências:
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. in Löwy, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio - uma leitura sobre as teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo, Boitempo, 2005.
DAVIS, Mike. Planeta de favelas. in SADER, Emir (org.). Contragolpes. Seleção de artigos da New Left Review. São Paulo: Boitempo, 2006.
HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções. 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, 16ª ed.
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio - uma leitura sobre as teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo, Boitempo, 2005.
ZIZEK, Slavoj. Às portas da revolução. Escritos de Lênin de 1917. São Paulo: Boitempo, 2005
Segundo Davis, o relatório é interessante não só pela abrangência e pela competência técnica com que foi elaborado. Ele é incomum também pela honestidade intelectual. “Um dos pesquisadores contou-me que ‘os tipos de Consenso de Washington (Banco Mundial, FMI, etc.) sempre insistiram em definir os problemas das favelas globais não como resultado da globalização e da desigualdade, mas como resultado do mau governo’ (grifos de Davis). No entanto, o novo relatório rompe a seriedade e a autocensura tradicionais da ONU para condenar abertamente o neoliberalismo, em especial os programas de ajuste estrutural do FMI” (cf. Davis, 2006, 107). O relatório mostra que o resultado dessas ações políticas e econômicas nos últimos vinte anos aumentaram a pobreza urbana e as favelas, e elevaram, por conseguinte, a desigualdade econômica e social.
As condições de vida nas favelas são: excesso de população, habitações pobres ou informais, acesso inadequado à água potável e ao esgoto sanitário e insegurança da posse da terra. O relatório Slums estima que, em 2001, havia 921 milhões de moradores de favelas, no mundo. Eles constituem um terço da população urbana mundial. Pelo menos metade dessa população tem menos de vinte anos. As previsões mais sombrias são de que, em algumas décadas, os habitantes de favelas passem a constituir metade da população urbana mundial.
Como afirma Davis, “os maiores percentuais de moradores de moradores de favelas do mundo são da Etiópia (espantosos 99,4% da população urbana), Tchade (também 99,4%), Afeganistão (98,5%) e Nepal (92%)” (Davis, 2006, 199). Em cidades como Déhli, o absurdo se manifesta em situações como a existência de “favelas dentro de favelas”. E, no Cairo, as pessoas recém-chegadas à cidade podem se acomodar em confortáveis espaços nos telhados, criando, assim, favelas no ar.
Há cerca de 250 mil favelas na Terra. Nas cinco maiores cidades do sul da Ásia (Karachi, Mumbai, Délhi, Kolkata e Daca) existem aproximadamente 20 milhões de pessoas distribuídas nas cerca de 15 mil favelas. Na África, a situação é semelhante, só que pior. No estado de Lagos, na Nigéria, aproximadamente dois terços dos 3577 km² de superfície do estado estão cobertos de barracos e favelas. O estado de Lagos é constituído de um corredor de 70 milhões de favelados que se estende por entre as cidades de Abidjan e Ibadan, provavelmente a maior área de solo coberta de pobreza urbana em nosso planeta. Estimados 57% dos africanos urbanos não tem acesso a saneamento básico. Em Nairóbi, no Quênia, os pobres recorrem freqüentemente a “banheiros voadores” (defecar num saco plástico).
Não bastasse isso, por toda parte as pessoas são obrigadas a habitar terrenos perigosos e inapropriados para a construção – encostas, margens de rios, proximidades de refinarias, indústrias químicas, depósitos de lixo tóxico e nas margens de ferrovias e auto-estradas. Como conseqüência, “a pobreza ‘construiu’ um problema de desastre urbano de freqüência e alcance sem precedentes, como exemplificam as inundações crônicas em Manila, Daca, e Rio de Janeiro; as explosões de dutos na Cidade do México e em Cubatão (no Brasil); a catástrofe de Bhopal, na Índia; a explosão de uma fábrica de munição em Lagos e os deslizamentos fatais em Caracas, La Paz e Tegucicalpa. Além disso, as comunidades de pobres urbanos sem direito a voto são vulneráveis às explosões súbitas de violência estatal, como na famosa destruição, em 1990, da favela praiana de Maroko, em Lagos (‘uma agressão à paisagem para a comunidade vizinha de Victoria Island, fortaleza dos ricos’), ou a demolição, em 1995, sob clima congelante, da grande cidade de ocupantes ilegais de Zhejiangcun, nos arredores de Beijing” (Cf. Davis, idem, 202). Miséria, então, rima com favela, que, por sua vez, rima com tragédia.
A população de favelados cresce, portanto, vertiginosamente ao redor do mundo. Sua existência revela o predomínio de um aspecto peculiar do trabalho no contexto da contemporaneidade: o trabalho informal. As cidades, em verdade, se converteram, ao longo do século XX, em depósitos de lixo que concentram o “excedente de população” que tem que sobreviver mediante trabalho realizado nos mais diferentes setores da informalidade, sem especialização, sem amparo de legislação e com baixíssimos salários. E como garante o relatório Slums, “O crescimento d[este] setor informal é [...] resultado direto da liberalização” (apud Davis, idem, 209).
O número de trabalhadores informais no mundo atinge cifras espantosas: um bilhão de pessoas (número que se sobrepõe, mas não é idêntico ao dos moradores das favelas). O setor informal equivale a dois terços da população economicamente ativa do mundo em desenvolvimento. 57% da força de trabalho latino-americana está nesse setor. Na Indonésia, um dos países mais populosos do mundo, essa cifra chega a 65%. Na África, um pouco menos: 60%. E na Ásia, “apenas” 40%. Em algumas regiões do planeta, como nas cidades sub-saarianas, o “emprego formal” praticamente deixou de existir. Slums estima, ainda, que, na África, nos próximos dez anos, 90% das vagas urbanas de trabalho virão do setor informal. E a tendência macro-econômica real do trabalho informal é a reprodução da pobreza absoluta.
Pode-se esperar dessas pessoas miseráveis, marginalizadas e esquecidas algum movimento radical e transformação em relação à ordem política, social e econômica dominante? Que pensam elas? Em que crêem? Quais as aspirações, expectativas e sonhos que alimentam? Seriam as favelas vulcões em erupção, prestes a derramar sua lava incandescente por sobre a sociedade burguesa do século XXI? Ou manterão seus habitantes um comportamento mais parecido com os processos de competição darwiniana pela vida, lutando e devorando-se uns ao outros, sobrevivendo dos restos e resíduos que conquistam? Enfim, que se pode esperar desses sujeitos e quais projetos cultivam?
Davis não hesita em dizer que, pelo menos por enquanto, “Marx cedeu o palco histórico a Maomé e ao Espírito Santo” (Davis, idem, 214), ou seja, o materialismo revolucionário não é a visão de mundo que tem ganhado espaço entre os trabalhadores informais da sociedade das favelas. O que prolifera, hoje, é uma concepção religiosa do mundo, dividida entre o islamismo populista e o cristianismo pentecostal (cf. Davis, idem, ibidem). Seria este fato motivo para desesperar de transformações mais fundamentais da estrutura social, política e econômica em que vivemos?
É preciso esclarecer que estas visões de mundo têm uma grande diferença: enquanto o islamismo populista enfatiza a continuidade da civilização e prega a solidariedade de fé entre as classes – assumindo, assim, uma postura complacente com o capitalismo globalizado –, o pentecostalismo mantém uma identidade fundamentalmente exílica. Como nos assegura o sociólogo norte-americano, “sua premissa básica é a de que o mundo urbano é corrupto, injusto e impossível de reformar” (Davis, idem, 218). Em outras palavras, a postura implícita dessas pessoas em relação ao mundo profano é de negatividade.
Que se pode esperar, então, dessas comunidades em que prepondera uma religiosidade capaz de fazer o mundo parecer como um lugar hostil e que se deve recusar? Acreditamos que é perfeitamente cabível considerar essas comunidades como uma resistência efetiva contra o sistema econômico, social e político vigente. Em verdade, como afirmou o estudioso Jean Comaroff (citado por Davis, idem, ibidem), elas constituem mesmo uma resistência “mais radical” do que a atividade política sindical formal.
Portanto, se é assim, não poderíamos apostar nelas, nas comunidades de favelados, como um terreno fértil para concepções que, em breve, poderão vir a exigir transformações efetivas e profundas da sociedade de capitalismo globalizado que hoje se estabelece?
Esta parece ser a aposta do filósofo esloveno Slavoj Zizek, em um recente livro: Às portas da revolução, escritos de Lênin de 1917. No prefácio da obra, comentando o crescimento explosivo das favelas ao redor do mundo e considerando este fato como o possível “evento geopolítico crucial do nosso tempo” (Zizek, 2005, 20), visto que, nas favelas, as pessoas estão à margem do controle do Estado - ainda que vivam incorporadas na economia global de várias formas – Zizek se pergunta: “não seriam eles [os bairros e favelas miseráveis das megalópoles da atualidade] os primeiros ‘territórios libertados’, as células de futuras sociedades auto-organizadas?” (idem, ibidem, 17). Ou seja, não seriam esses espaços protótipos de uma comunidade alternativa, que rejeita completamente o espaço do Estado em vigor? Não seria esse, agora, o novo eixo da luta de classes? Mais ainda: “seria a ‘classe simbólica’ [isto é, a classe dominante] inerentemente dividida, a ponto de podermos fazer uma aposta emancipatória na coalizão entre os moradores dos bairros miseráveis e a parte ‘progressista’ da classe simbólica?” (idem, ibidem, 21).
Para Zizek, as favelas do mundo contemporâneo, com seus trabalhadores informais, religiões pentecostais, mendigos, vagabundos e párias de todo tipo, são semelhantes a Canudos, comunidade alternativa existente no sertão brasileiro durante alguns anos da última década do século XIX. “Canudos, liderado por um profeta apocalíptico, era um espaço utópico sem dinheiro, propriedade, impostos ou casamento [...] Tudo deve ser defendido neste caso, até mesmo o ‘fanatismo’ religioso. É como se, nesse tipo de comunidade, o outro lado benjaminiano do progresso histórico, o dos derrotados, adquirisse seu próprio espaço. A utopia existiu ali por um breve período [...]. Até agora, tais comunidades surgiram de tempos em tempos como um fenômeno passageiro, pontos de eternidade interrompendo o fluxo do progresso temporal [...]” (idem, ibid. 17).
Zizek considera que os ecos de Canudos são perfeitamente identificáveis nas favelas contemporâneas. Caberiam aqui, por conseguinte, aquelas palavras de Walter Benjamin, apresentadas na segunda tese sobre o Conceito de História, que parecem nos questionar a nós, os vivos, se, por acaso, “não nos afaga levemente um sopro de ar que envolveu os que nos precederam? Não ressoa nas vozes a que damos ouvido um eco das que estão, agora, caladas?”. Não guardaria, então, o nosso tempo estilhaços de um passado que importa, agora, interpretar? Quem eram os insurgentes do passado? Como viviam aqueles que, em outros tempos, ao perceber que a exceção se tornara a regra, tentavam eles mesmos criar um verdadeiro estado de exceção?
Nesse sentido, é interessante observar a explicação de Hobsbawm sobre a situação de urbanização, pobreza e segregação no contexto imediatamente anterior às revoluções de 1848, na Europa: “Em nosso período [primeiras décadas do século XIX], o desenvolvimento urbano foi um gigantesco processo de segregação de classes, que empurrava os novos trabalhadores pobres para as grandes concentrações de miséria alijadas dos centros de governo e dos negócios, e das novas áreas residenciais da burguesia. A divisão das grandes cidades européias, de caráter quase universal, em zonas ricas localizadas a oeste e zonas pobres localizadas a leste se desenvolveu neste período. E que instituições sociais, exceto a taverna e talvez a capela, foram criadas nestas novas aglomerações de trabalhadores, a não ser pela própria iniciativa dos trabalhadores?” (Hobsbawn, 2002, p. 283-4). E que fizeram estes segregados, derrotados, oprimidos miseráveis? “A alternativa da fuga ou da derrota era a rebelião. A situação dos trabalhadores pobres, e especialmente do proletariado industrial que formava seu núcleo, era tal que a rebelião era não somente possível mas virtualmente compulsória. Nada foi mais inevitável na primeira metade do século XIX do que o aparecimento dos movimentos trabalhista e socialista, assim como a intranqüilidade revolucionária das massas. A revolução de 1848 foi sua conseqüência direta.” (Hobsbawm, idem, p. 285).
A rebelião, a revolta, a insurgência, a revolução, aparecerão, então, como uma alternativa aos que não quiserem ser passivamente esmagados pelo sistema. Será impossível de imaginar revoluções futuras num mundo onde um bilhão de pessoas vive com cerca de um dólar por dia? Não há, porventura, uma correspondência entre a nossa situação de miséria e marginalidade e a dos que viveram antes de nós? Não somos também oprimidos como os de outrora? Não resistimos, também, ativamente? Não alimentamos ora velada, ora abertamente, um sonho de libertação? Não estamos submetidos a uma situação de exceção que se converteu em regra? Não estamos tentando, ainda que de forma e subterrânea e imperceptível ao vulgo, instaurar aquilo que Benjamin chamou de "verdadeiro estado de exceção"?
Se assim é, um encontro secreto está marcado entre as gerações passadas e a nossa. Se assim é, torna-se necessário que agora essa relação entre o passado e o presente se torne visível - ainda que esta seja uma visibilidade fugaz, tal qual a de um raio que reluz efêmero numa noite de tempestade. Essa luz momentânea nos permitirá a organização das energias críticas e uma melhor locomoção dentro dessa tempestade ininterrupta que é a história. Temos que ter bem presente essa realidade, pois, ao que parece, o futuro passa por aí.
Referências:
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. in Löwy, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio - uma leitura sobre as teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo, Boitempo, 2005.
DAVIS, Mike. Planeta de favelas. in SADER, Emir (org.). Contragolpes. Seleção de artigos da New Left Review. São Paulo: Boitempo, 2006.
HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções. 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, 16ª ed.
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio - uma leitura sobre as teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo, Boitempo, 2005.
ZIZEK, Slavoj. Às portas da revolução. Escritos de Lênin de 1917. São Paulo: Boitempo, 2005
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