A América Latina sofre, há décadas, um fardo que parece às vezes mais pesado que suas forças, o fardo do neoliberalismo, a forma que o capitalismo assumiu em nossa região periférica. Na retórica das classes dominantes, tais transformações prometiam realizar um desenvolvimento justo e constante. Em contrapartida, o que se verifica é que somos hoje o continente de maior desigualdade no mundo, com inúmeros e complexos problemas de ordem social, política e econômica.
Nesse contexto, cada país do continente apresenta particularidades importantes. Francisco de Oliveira (2004, p. 112) dá uma valorosa contribuição para nosso esclarecimento a esse respeito, ao explicar por estas palavras a conjuntura latino-americana desta primeira década de século:
“Sob o diagnóstico geral, escondem-se especificidades: desde a fulminante transformação do México no maior exportador isolado para os EUA nos quadros do NAFTA – o que, entretanto, não o livrou do défault da dívida externa do começo dos 1990 e não vem resolvendo a questão da desigualdade mexicana – até o estrondoso fracasso e incrível retrocesso da Argentina, uma das cinco economias mais importantes do mundo no início do século XX. O Chile conhece o desenvolvimento menos errático desde a ditadura Pinochet, mas seus trabalhadores já experimentam as vinhas amargas – logo no belo país vinícola – da previdência privatizada, agora que é chegada a hora de pagar a conta. De qualquer forma, o isolacionismo chileno em relação à América Latina coloca-o na dependência quase exclusiva do mercado norte-americano, e de fato o Chile regrediu em termos da divisão social do trabalho: voltou à condição de uma economia primário-exportadora, ancorada no bom e velho cobre estatal. As economias uruguaia e paraguaia sofrem os efeitos do retrocesso argentino e do neoliberalismo brasileiro, e o Mercosul não tem sido suficiente, no estado em que está, para devolver-lhes dinamismo. A Colômbia transformou-se numa tragédia, cujas características todos conhecemos, e está em vias de transformar-se num não-Estado e numa não-nação. Equador, Peru e Bolívia têm experimentado espasmos tão violentos que mesmo a ciência social mais cautelosa não se arrisca a nenhuma previsão: pode-se passar do Sendero Luminoso a Fujimori, e deste a Toledo, das experimentações ao estilo de Thatcher avant la lettre a Evo Morales, e da dolarização a fórceps ao movimento indígena anti-capitalista quase sem mediações. A Venezuela sofreu a mais desenfreada corrupção sob o partido mais social-democrata que o continente conheceu, e vem experimentando cotidianamente todas as tentativas de desestabilização de sua revolução bolivariana, passando pelo escandaloso assalto à presidência da República liderado diretamente pelo presidente da associação de empresários.”
Tal quadro é o resultado de um processo levado a cabo pelo sistema do capital desde suas transformações no início da década de 1970 e que tem como um dos principais sintomas a declaração de guerra aberta contra toda e qualquer possibilidade de ação política que vá contra suas exigências. Como o capital faz isso? Provocando a erosão das instituições democráticas e republicanas. O neoliberalismo, conjunto de práticas político-econômicas realizadas com o objetivo de exacerbar a dimensão privada da vida social sob o capitalismo - e, conseqüentemente, enfraquecer a dimensão pública - representa, por isso mesmo, um enfraquecimento da política. A debilitação da esfera pública na América Latina é explicada de forma clara e concisa por Chomsky (2004, p. 24) nestas palavras:
“As privatizações reduzem a arena pública por definição, transferindo decisões da arena pública para as mãos de tiranias privadas que não prestam contas a ninguém. As sociedades anônimas não são outra coisa além disso. E isso, por definição, limita a democracia. Agora estão negociando as privatizações dos serviços. Se isso chegar a se concretizar, a esfera pública seria reduzida a virtualmente nada. Reduzi-la-iam de maneira tão drástica que a democracia formal poderia ser tolerável. Na verdade, foi introduzida na América Latina sem maiores preocupações quanto aos efeitos que podia ter: A extensão da democracia formal na América Latina em anos recentes fez-se acompanhar por uma crescente falta de confiança neste regime (…). Anos atrás, a extensão da democracia formal coincidiu com a aplicação das políticas neoliberais, que desta maneira minaram o funcionamento da democracia. De fato, são políticas elaboradas com esse propósito [grifo nossos].”
Esse quadro foi tomando forma, gradativamente, há algumas décadas atrás. Com o fim das ditaduras militares na América Latina, a liberdade que surgia parecia concorrer para a revitalização da atuação política. A década de 1980 viu surgir movimentos sociais, sindicalismos, partidos de massa com centralidade da classe trabalhadora e até uma reidentificação com o ideal bolivariano de unidade entre as nações, fenômenos que, em virtude da ampla participação popular de que eram compostos, prometiam consolidar a democracia em nosso continente.
Mas a herança das ditaduras militares, nesse contexto, foi deveras pesada. As modificações, por elas perpetradas, na estrutura social, política e econômica dos países latino-americanos, fizeram com que a globalização acabasse por subordinar a democratização. Como explica Francisco de Oliveira (2004, p. 113):
“Talvez na verdade tivéssemos subestimado o 'trabalho sujo' das ditaduras, os estragos produzidos na estrutura social, no aumento das desigualdades, na capacidade estatal de regulação dos conflitos, na identidade entre projeto nacional para as classes dominantes e projeto nacional para as classes dominadas. Uma espécie de assincronia, para dizer o mínimo, tinha-se produzido: as burguesias renunciavam a um projeto nacional, e o espaço da política era, assim, transformado em um confinamento para as classes dominadas. A onda de democratização foi engolfada pela globalização, com todas as suas conseqüências: as ditaduras haviam inserido definitivamente as economias da América Latina na financeirização do capital, o que esterilizam em grau extremado o poder do Estado nessa nova e original democratização.”
As forças políticas que assumiram o poder estatal após o desenlace das ditaduras acabaram por se constituir em epílogos desses regimes. Tudo o que fizeram foi apressar o passo para completar o trabalho de integração das economias nacionais latino-americanas dentro da nova estrutura do capital globalizado. As proteções alfandegárias foram derrubadas, privatizaram-se as empresas estatais, os mercados de trabalho sofreram desregulamentação, o precário Estado de Bem-Estar foi desmontado. Um dos resultados mais graves desses processos foi chamado por Francisco de Oliveira (2004, p. 114) de “estilhaçamento das relações de classe”, fenômeno que se expressou nos altos níveis de desemprego, de informalidade e na formação de um numeroso lumpesinato em nosso continente.
Além disso, a desestruturação das relações de classe gerou em muitos países a implosão dos vínculos existentes entre classes sociais e partidos políticos, fazendo assim com que a política institucional passasse a girar em falso. Desse modo, a globalização, com a financeirização, com a subordinação das economias nacionais aos processos internacionais de acumulação de capital, com o enfraquecimento do Estado em sua capacidade de impulsionar o desenvolvimento econômico, com o aumento das desigualdades e com a lumpenização que produziu, acabou tornando as instituições democráticas – a política institucional – muito débeis. O resultado é descrito por Francisco de Oliveira (2004, p. 115) com estas palavras: “Os bancos centrais são as verdadeiras autoridades nacionais, e eles não são autoridades democráticas. Na definição schmittiana, soberano é quem decide o Estado de Exceção [grifo nosso]. Os Estados nacionais transformam-se em Estado de Exceção: todas as políticas públicas são políticas de exceção. E quem decide entre nós?”
A globalização deu origem, então, a uma situação onde a democracia “se anula”, especialmente no que tange a determinação da economia por parte das classes trabalhadoras. Os grupos chamados de centro-esquerda que chegaram ao poder nos últimos anos acabaram prisioneiros das heranças recebidas de seus antecessores: tornaram-se “os executores da exceção [grifo nosso]: dos superávits combinados com o Fundo Monetário internacional (FMI), da pressa para implementar o tratado de livre comércio (ALCA), da submissão à Organização Mundial do Comércio (OMC), de nossa conversão ao livre-câmbio e ao livre comércio.” (OLIVEIRA, 2004, p. 115).
Desse modo, com o enfraquecimento do Estado em sua capacidade de fomentar o desenvolvimento, restou apenas a possibilidade de administração de políticas de funcionalização da pobreza, políticas que podem ser consideradas, como denominou o sociólogo pernambucano, “de exceção”.
Do ponto de vista social e econômico, observa-se então a momentânea perda da capacidade das forças do trabalho de proporem políticas e afiançá-las, ou de vetar reformas contra seus interesses. Os trabalhadores tornaram-se objetos de políticas compensatórias cujo objetivo precípuo é o de funcionalizar a pobreza. O resultado maior é que, como explica Oliveira (2003, p. 115), as sociedades da América Latina se tornam semelhantes aos ornitorrincos, “uma combinação esdrúxula de altas rendas, consumo ostentatório, acumulação de capital comandada pela revolução molecular-digital, pobreza extrema, lumpesinato moderno, avassalamento pelo capital financeiro, incapacidade técnico-científica.”
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Mas as classes exploradas latino-americanas não assistiram de braços cruzados a realização desses processos. Houve, de fato, muitos enfrentamentos por parte daqueles que se negavam em sucumbir passivamente diante das engrenagens da globalização. No campo e na cidade, em vários países, as pessoas se organizaram para protestar, combater e reivindicar seus direitos, dando assim seguimento à tradição de luta que permeia a história de nosso continente. Se as últimas décadas verificaram o domínio do neoliberalismo na América Latina, por outro lado também se viram encarniçados combates por parte de todos os grupos sociais que se percebiam explorados pelo capital.
Alguns deles, por exemplo: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), surgido em 1984, no Brasil, resultado de longos anos de trabalho de conscientização e de promoção da auto-organização camponesa pela Comissão Pastoral da Igreja, e que reúne centenas de milhares de militantes, constituindo-se, sem dúvida, no movimento social mais importante e combativo no Brasil na atualidade; O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), surgido no México, na década de 1990, que organizou Encontros Intercontinentais - “Intergalácticos” na linguagem irônica do subcomandante Marcos – que reuniram milhares de sindicalistas, militantes camponeses, indígenas, intelectuais, estudantes e ativistas das diferentes correntes de esquerda, provenientes de quarenta países do mundo inteiro – inclusive muitos da Europa e dos Estados Unidos –, todos com o objetivo de lutar pela humanidade e contra o neoliberalismo; a ascensão de movimentos indígenas no Equador, no Chile, na Bolívia, no Peru, na Guatemala, etc.; os piqueteros na Argentina, a ascensão ao governo de Hugo Chávez, na Venezuela, que retomou a bandeira da unidade antiimperialista – “bolivariana” – dos povos latino-americanos e a perspectiva socialista; a eleição de Evo Morales, na Bolívia, em 2005, dirigente do sindicato dos cocaleros e fundador do Movimento para o Socialismo (MAS); e, sobretudo o movimento altermundista, que é hoje, como afirmam Löwy e Besancenot (2009, p. 118):
“[...] sem dúvida o mais importante fenômeno de resistência anti-sistêmico do início do século XXI. Essa vasta nebulosa, 'movimento dos movimentos', toma forma visível por ocasião dos Fóruns Sociais – regionais ou mundiais – e das grandes manifestações de protesto contra a OMC, o G-8 ou a guerra imperialista no Iraque. Ampla rede descentralizada, ela é múltipla, diversa e heterogênea, associando sindicatos operários e movimentos camponeses, ONGs e organizações indígenas, movimentos de mulheres e associações ecológicas, intelectuais e jovens ativistas. Longe de ser uma fraqueza, sua pluralidade é uma das fontes da força, crescente e em expansão, do movimento.”
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É juntamente com estes que nos situamos. Somente do ponto de vista destes é que se torna visível a necessidade de elaborar uma teoria social, política e econômica que vá além do capital. Acreditamos que, se por um lado a conjuntura é difícil, por outro abre novas possibilidades para a luta. Se sentimos empatia e apostamos nos explorados pelo sistema do capital e na sua capacidade de criar um modo de existência qualitativamente novo, uma das tarefas que se nos apresenta imprescindível na atual conjuntura é a generalização do pensamento crítico que poderá, quiçá, orientar ações igualmente críticas. Por isto, as reflexões desses autores que ora compartilhamos com vocês.
Referências:
CHOMSKY, Noam. Os dilemas da dominação. in BORÓN, Atílio (org.) Nova hegemonia mundial. Alternativas de mudanças e movimentos sociais. 1ª ed. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2004.
LÖWY, Michael e BESANCENOT, Olivier. Che Guevara: uma chama que continua ardendo. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
OLIVEIRA, Francisco de. Há Vias Abertas para a América Latina? in BORÓN, Atílio (org.) Nova hegemonia mundial. Alternativas de mudanças e movimentos sociais. 1ª ed. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2004, p. 112.
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