domingo, 22 de novembro de 2009

O Brasil de FHC a Lula: da hegemonia burguesa a hegemonia às avessas – Notas em torno do pensamento de Francisco de Oliveira

Na última postagem em nosso blog, afirmamos que, com as últimas décadas de globalização e neoliberalismo, os países da América Latina acabaram se tornando semelhantes a uma criaturinha curiosa, de desenvolvimento peculiar, que reúne em si um amplo conjunto de elementos desiguais: o ornitorrinco, alegoria criada por Francisco de Oliveira (2004, p. 115) para expressar a concepção de que nosso continente materializa “uma combinação esdrúxula de altas rendas, consumo ostentatório, acumulação de capital comandada pela revolução molecular-digital, pobreza extrema, lumpesinato moderno, avassalamento pelo capital financeiro, incapacidade técnico-científica.”

O Brasil expressa um caso específico dessa transformação da sociedade em “ornitorrinco”, cujo desdobramento no campo da política produziu a situação, em nossos dias, daquilo que o ilustre sociólogo pernambucano chamou de “hegemonia às avessas”. Que vem a ser isso? Acompanhemos o raciocínio de Francisco de Oliveira.

A presença de ditaduras civis e militares ao longo de tantos anos no Brasil indica, dentre outras coisas, a incapacidade das classes dominantes realizarem a hegemonia. A hegemonia é um conceito formulado por Antonio Gramsci em sua teoria ampliada do Estado. Aí, o filósofo italiano faz um diferenciação importante entre sociedade política e sociedade civil. A sociedade política diz respeito aos espaços concernentes ao Estado em sentido estrito, é o “Estado-coerção” por assim dizer, com suas leis e as instâncias que fazem valer essas leis. A sociedade civil, por sua vez, refere-se ao conjunto de “aparelhos privados de hegemonia” (grandes sindicatos, partidos políticos, parlamento eleito por sufrágio, jornais, igreja, escolas, etc.), organismos de participação política aos quais as pessoas aderem voluntariamente e que não se caracterizam pelo uso da opressão. A sociedade civil seria formada, desse modo, pelo conjunto das instituições e instrumentos que possibilitam a organização material da cultura (revistas, jornais, editoras, meios de comunicação de massa, etc.) e a elaboração e difusão das ideologias. Nesse contexto, a hegemonia pode ser entendida como o consenso, a direção intelectual e moral que se realiza a partir dessas mediações. Diante disso, o Estado, no sentido ampliado que lhe atribui Gramsci, é, justamente, a síntese entre a sociedade civil e a sociedade política – portanto, entre hegemonia e coerção. O Estado é, nas sociedades de capitalismo avançado, grosso modo, a articulação entre as instâncias que garantem ditadura e hegemonia, coerção e consenso. (Cf. COUTINHO, 1981). Ditaduras militares indicam, portanto, a incapacidade das classes dominantes exercerem o poder com base num consenso estabelecido em torno de seus interesses.

No Brasil Republicano, como explica Francisco de Oliveira, tal impossibilidade se devia a uma questão estrutural, isto é, a inexistência de classes nacionais (isto é, classes sociais unificadas e estabelecidas em âmbito nacional). Aos poucos, contudo, essa “nacionalização das classes” foi se realizando, e isso fundamentalmente por iniciativa das classes dominadas, que lutaram, se organizaram, se integraram e reivindicaram seus interesses no plano nacional, fato que obrigou a burguesia a se nacionalizar também. Com o fim da ditadura militar dos anos 1964-1985, esse processo de nacionalização estava quase completo (se completaria efetivamente no governo de Fernando Henrique Cardoso, entre 1994 e 2002).

Como explica Francisco de Oliveira (2001), depois do fim do governo Sarney e da Constituinte, as classes dominantes, em vias de completar seu processo de unificação nacional, elegeram Collor e depois FHC. Collor, já sentindo o “problema” de uma classe trabalhadora nacionalmente unificada, criticou largamente a Constituição de 1988 (que representou a expressão do plano jurídico de algumas das conquistas das classes dominadas). Isso se aprofundou no governo FHC, e ganhou contornos práticos no desmonte do Estado que esse governo veio a realizar. Como explica o sociólogo pernambucano (2001, p. 54):

“Com FHC, o susto de 07 graus na Escala Richter produziu, finalmente, uma liderança que retomou o processo que Collor não foi capaz de conduzir. (…) No plano da política, que é o plano que nos interessa, é capaz de devolver à estrutura os elementos de retorno da dominação burguesa. Estamos vendo como é que isso ocorre, com o processo das privatizações. (…) As privatizações são o reforço das condições estruturais da dominação burguesa, que tornavam virtuais a possibilidade de hegemonia no plano político. Cardoso realiza isso com uma qualidade diferente, porque ele não é um outsider, como Collor. FHC está dentro do miolo dessa articulação: veio de São Paulo, onde o PSDB, na verdade, faz as vezes do antigo partidão, o sonho de uma burguesia que é a vanguarda do processo de crescimento nacional. Dessa ironia a história, essa deusa – as mulheres que me perdoem -, toma ironicamente Fernando Henrique para realizar um sonho do velho Partido Comunista (PC), um antigo militante do PC: a grande burguesia como alavanca do processo de desenvolvimento nacional.”

Como resposta, então, à unificação das classes trabalhadoras, as classes dominantes também se unificam e, nesse movimento, FHC realiza aquilo que Collor não conseguira: desmontar o Estado e reforçar assim as condições estruturais da dominação burguesa. Estabelece-se o consenso em torno de certos interesses capitalistas e, desse modo, passam-se muitos anos sem necessidade de golpes e de ditaduras, visto que a hegemonia burguesa, agora com as classes sociais unificadas em âmbito nacional, se torna possível. Esses processos políticos, por sua vez, não ocorrem de forma isolada no mundo. São a expressão direta da globalização. O Plano Real, nesse contexto, como consolidação da dominação e hegemonia da burguesia no Brasil, é expressão do processo de globalização. O neoliberalismo em nosso país abre as portas, dese modo, para que a economia nacional seja controlada pela economia internacional. Francisco de Oliveira (2001, p. 55) explica que:

“Quando FHC implantou o Plano Real, a inflação já estava a 45% ao mês. De repente nós assistimos, como que num passe de mágica, a inflação de 45% ao mês passar a 3%. Que mágica é essa? A mágica é a do policiamento externo controlando os preços internos. A condição é a de que a importação seja aberta e que o movimento de capitais seja livre. [grifo nosso, DC] Ela não é tão livre como na Argentina e no México, até mesmo porque as forças internas conseguem barrar os Gustavos Francos da vida. Mas o movimento da globalização é um movimento que permite que o pacto burguês se articule da forma tal como está articulado, do ponto de vista econômico e do ponto de vista político. O que deu a possibilidade ao pacto dominante foi o susto de 1989. E, de outro lado, o fato de que a estabilidade adquirida rapidamente é a grande arma que o governo tem para articular o arco conservador. [grifo nosso, DC]”

Para a implementação da hegemonia (do consenso), as classes devem estar, então, “nacionalizadas”. Isso se consolida, como vimos, no governo FHC. Mas só isso não basta. É preciso que se dê, também, a estabilidade econômica. Como conseguir isso? Abrindo as portas da economia nacional para a economia estrangeira, que passa a controlá-la e a dominá-la. FHC realiza exatamente isto. O Plano Real vem, então, garantir a estabilidade, que por sua vez é a condição da hegemonia.

Francisco de Oliveira (2001, p. 55-6) assim comenta a especificidade desse processo: “Gramsci ensinou isso de uma forma extraordinária. A dominação burguesa e a hegemonia dependem 80% de consenso e 20% de força física bruta, onde a estabilidade é os 80% de consenso. A estabilidade do pacto dominante está fundamentalmente ancorada na esperança popular de que essa estabilidade – que se transformou num fetiche – se mantenha. As reformas batem como num muro. Um país tão desigual que precisa, urgentemente, de reformas! A população mais pobre transformou-se em conservadora. Por quê? É preciso fazer a pergunta! Porque a experiência de mais de 20 anos de uma inflação avassaladora produziu na subjetividade popular um terror. Uma pedagogia, estamos numa pós-graduação. Trata-se de uma espécie de pedagogia que torna qualquer reforma, na verdade, uma inimiga da grande maioria da população. Esse é o grande trunfo com que a coalizão conservadora conta, ironicamente, paradoxalmente. Mas o sistema capitalista opera assim. Quando ela consegue esse processo hegemônico, a sua grande garantidora é a credibilidade popular. É aí que se batem todos os esforços para mudar o discurso e encontrar as fissuras que possam destruir ou abrir brechas nesse aparente monolitismo neoliberal. Essa é uma tarefa democrática que temos pela frente.”

Com FHC, então, temos estabilidade econômica, classes sociais “nacionais”, domínio da economia brasileira pelo capital estrangeiro e hegemonia das classes dominantes. Com Lula, afirmará Chico de Oliveira, esse ciclo neoliberal (começado com Collor), terá seu ápice, mas com algumas modificações importantes. Acontece o que Francisco de Oliveira (2007) chamou de “hegemonia às avessas”, uma situação em que a classe dominante aceita ceder à classe dominada o discurso político, com a condição de que os fundamentos (econômicos) da dominação que ela exerce não sejam modificados.

Assim, de acordo com o sociólogo pernambucano, verifica-se uma condição contraditória na qual um grupo político, ao chegar ao poder, pratica “políticas que são o avesso do mandato de classes recebido nas urnas”. O mandato conferido ao PT para o governo nacional teria sido, na visão de Oliveira (2009), “reformista no sentido clássico”, isto é, exigia “avanços na socialização da política em termos gerais e, especificamente, alargamento dos espaços de participação nas decisões da grande massa popular, intensa redistribuição da renda num país obscenamente desigual e, por fim, uma reforma política e da política que desse fim à longa persistência do patrimonialismo.”

Os resultados verificados na prática foram o contrário daquilo que o mandato estabelecia. Por que? “O eterno argumento dos progressistas-conservadores - caso, entre outros, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso - é que faltaria, às reformas e ao reformista-mandatário, o apoio parlamentar. Sem sustentação no Congresso, o país ficaria ingovernável. Daí a necessidade de uma aliança ampla. Ou de uma coalizão acima e à margem de definições ideológicas. Ou, mais simplesmente, de um pragmatismo irrestrito.”(Cf. OLIVEIRA, 2009)

Os progressistas-conservadores (como FHC) usam, portanto, a retórica de que sua prática de combinação do atraso com o progresso é determinada pela necessidade de ter o aval do parlamento, fato que levaria o governo a ser pragmático na tentativa de tentar atender às necessidades de todos os grupos que lhe dão sustentação. Nenhum radicalismo, nessa situação, estaria autorizado.

Apesar dessa retórica, que a muitos pode parecer convincente, o problema é mais complexo. Como afirma Oliveira (2009), baseando-se em Luís Werneck Vianna e Caio Prado Jr., “não se governa o Brasil sem o concurso do atraso não apenas por razões parlamentares, mas porque a estrutura social que sustenta o sistema político é conservadora, e não avalizaria avanços programáticos mais radicais [grifo nosso, DC]. Além disso, as fundas diferenças e desigualdades regionais, bem como o modo como, desde a Colônia, fundiram-se o público e o privado (...) tornam quase obrigatório um pragmatismo permanente, que leva de roldão perspectivas mais ideológicas, ou meramente programáticas.”

A estrutura social e política brasileira é conservadora e exige o pragmatismo dos governantes (e o conseqüente escanteamento de qualquer ideologia que tenham alimentado até então – Oliveira usa outro termo gramsciano, o transformismo, para complementar a explicação desses processos. A história republicana brasileira é profícua nessas situações de transformações conservadoras, muitas vezes “pregadas por radicais e realizadas por conservadores”. Os exemplos dados por Francisco de Oliveira são a abolição da escravatura, a Proclamação da República, a Revolução de 1930 e o golpe de Estado de 1964. O ciclo posterior foi o do neo-liberalismo, que começa com Collor e agora se desdobra no governo Lula. Fernando Henrique Cardoso foi, nesse meio tempo, “o progresso mesmo, em pessoa, adornado com os títulos e as pompas da Universidade de São Paulo (...) realizou o que nem a Dama de Ferro tinha ousado: privatizou praticamente toda a extensão das empresas estatais, numa transferência de renda, de riqueza e de patrimônio que talvez somente tenha sido superada pelo regime russo depois da queda de Mikhail Gorbachev.” (Cf. OLIVEIRA, 2009)

Todas essas foram transformações conservadoras, realizadas agora num contexto histórico específico, donde ainda não logramos sair. Lula, nesse ínterim, não pode modificar muita coisa, pois seu governo foi, em larga medida, determinado pela herança deixada pelos seus antecessores. A diferença específica do governo Lula reside apenas no fato de que este descumpriu “um mandato que lhe foi conferido para reverter o desastre FHC.” É nesta situação que opera, segundo Francisco de Oliveira, a “hegemonia às avessas”.

Inserido nessa conjuntura, segue o sociólogo brasileiro, o que o governo Lula pôde produzir foi, no máximo, uma diminuição da pobreza absoluta, mas com aumento da desigualdade (Ver o artigo de Francisco de Oliveira intitulado O avesso do avesso, lançado em outubro último), reforço da “vocação agrícola” do país baseada na exportação de commodities agropecuárias, política do espetáculo levada a cabo pelo governo e expressa no fato de que “o presidente anuncia com desfaçatez avanços e descobertas que no dia seguinte são desmentidos” (Cf. OLIVEIRA, 2009), administração de políticas sociais e co-optação de movimentos sociais. O crescimento econômico é, por fim, menor do que a média da taxa histórica da economia brasileira, mas apresentado com grandiloqüência pelo governo.

Por que o governo Lula é, então, neo-liberal? Porque, situando-se “na senda aberta por Collor e alargada por Fernando Henrique, só faz aumentar a autonomia do capital, retirando às classes trabalhadoras e à política qualquer possibilidade de diminuir a desigualdade social e aumentar a participação democrática [grifo nosso, DC]”(Cf. OLIVEIRA, 2009). Lula segue, portanto, a via de FHC, com a diferença que, se se esperava do governo petista uma organização das classes populares para resistir ao movimento do neo-liberalismo, o que se verifica na prática é exatamente o contrário. Como explica Francisco de Oliveira (2009), “se FHC destruiu os músculos do Estado para implementar o projeto privatista, Lula destrói os músculos da sociedade, que já não se opõe às medidas de desregulamentação.”

O resultado absolutamente perverso que esse quadro produz é o retrocesso da classe trabalhadora, que cada vez mais se precariza “em velocidade espantosa” e a transformação das classes dominantes em “gangues no sentido preciso do termo”. Assim, o quadro atual do nosso tempo histórico é resumido pelo sociólogo brasileiro com as seguintes palavras: “A novidade do capitalismo globalitário é que ele se tornou um campo aberto de bandidagem - que o diga Bernard Madoff, o grande líder da bolsa Nasdaq durante anos. Nas condições de um país periférico, a competição global obriga a uma intensa aceleração, que não permite regras de competição que Weber gostaria de louvar. O velho Marx dizia que o sistema não é um sistema de roubo, mas de exploração. Na fase atual, Marx deveria reexaminar seu ditame e dizer: de exploração e roubo. O capitalismo globalitário avassala todas as instituições, rompe todos os limites, dispensa a democracia.”(Cf. OLIVEIRA, 2009)

Penso que a palavra que melhor pode resumir essa conjuntura na qual nos situamos é de barbárie. É contra essa realidade que deve se opor a classe trabalhadora.


Referências:

COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci. L&PM, Porto Alegre, 1981 (Coleção: Fontes do Pensamento Político).

OLIVEIRA, Francisco de. A nova hegemonia da burguesia no Brasil dos anos 90 e os desafios de uma alternativa democrática. in FRIGOTTO, Gaudêncio e CIAVATTA, Maria (orgs.). Teoria e Educação no labirinto do capital. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. (p. 47-56)

OLIVEIRA, Francisco de. Há Vias Abertas para a América Latina? in BORÓN, Atílio (org.) - 1ª ed. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2004, p. 112.

OLIVEIRA, Francisco de. Hegemonia às avessas. Revista Piauí, janeiro de 2007.

OLIVEIRA, Francisco de. O avesso do avesso. Revista Piauí, outubro de 2009.

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