Um dos principais temas desenvolvidos por István Mészáros no livro O desafio e o fardo do tempo histórico diz respeito à forma como o sistema do capital instaura uma temporalidade “reificada” (coisificada) sobre o metabolismo social. O metabolismo social foi um tema tratado já por Marx, em seus escritos, no século XIX, e diz respeito às relações que os homens e mulheres estabelecem entre si e com a natureza no processo de produção e reprodução de suas vidas. Conforme a história humana se processa, as formas que regem esse metabolismo se modificam. Por exemplo: nas antigas comunas rurais que existiram durante quase toda a Idade Média na Inglaterra, na França e na Alemanha (neste país eram chamadas de marks, ou “associações de marca”), onde a terra era propriedade comum e considerada como pátria pelos homens livres da época, a lógica que comandava o metabolismo social era de um tipo. No capitalismo, formação social na qual nos situamos hoje, sistema baseado na propriedade privada dos meios de produção, na exploração do trabalho, na produção de mercadorias, etc., o metabolismo se realiza a partir de uma forma completamente diferente.
O metabolismo social se dá no tempo, e as temporalidades – os ritmos das várias atividades que compõem as múltiplas instâncias das vidas dos indivíduos sociais - de cada formação social são determinadas pela lógica que, em cada momento histórico particular, comanda a relação dos homens entre si e com a natureza no processo de produção e reprodução de suas existências. Conforme modifica-se essa lógica, transformam-se também os “tempos históricos” das pessoas em suas épocas específicas. Daí que o tempo para um sujeito de uma comuna alemã do século XV seria algo bem diverso do tempo para uma pessoa que vive no capitalismo do século XXI. Neste sistema social, a produção, a circulação e distribuição dos produtos, e o seu consumo, são comandados pela lógica do capital, que imprime assim certas características sui generis sobre a temporalidade dos indivíduos. Essa temporalidade passa a ser determinada, justamente, pelos processos de produção de mercadorias, que adquirem preponderância sobre os interesses conscientes das pessoas e as converte em “apêndices” do sistema. Mészáros, na esteira de Marx, dirá que temporalidade do capital absorve e incorpora as atividades dos seres humanos e os transforma em “carcaças do tempo”. Como explica o filósofo húngaro (2007, p. 43),
“no interior da estrutura do sistema socioeconômico existente, uma multiplicidade de interconexões potencialmente dialéticas é reproduzida na forma de dualismos, dicotomias e antinomias práticas perversas, que reduzem os seres humanos à condição reificada (por meio da qual eles são trazidos a um denominador comum com as 'locomotivas' e outras máquinas e tornam-se substituíveis por elas) e à posição ignominiosa de 'carcaça do tempo'."
O capital realiza-se, então, a partir de um conjunto de processos que articula e estrutura os tempos do metabolismo social. Esse fenômeno é provocado pela própria atividade produtiva humana que se organiza hierarquicamente, se divide e se volta contra os sujeitos dessas ações. Os produtos da atividade humana se tornam como “coisas”, como entidades estranhas, apartadas, alienadas dos sujeitos da produção. O capital é, nesse contexto, ele também, o próprio trabalho passado “coisificado” (reificado).
Como é sabido, esses são aspectos de um problema que foi abordado primeiramente por Marx em O capital, o problema do fetichismo. Ao analisar as chamadas “sutilezas metafísicas e argúcias teológicas” da mercadoria, o filósofo alemão explicou que:
“a mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la como relação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho. Através dessa dissimulação, os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais, com propriedades perceptíveis e imperceptíveis aos sentidos. [...] Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar um símile, temos de recorrer à região nebulosa da crença. Aí, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas que mantêm relações entre si e com os seres humanos. É o que ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo a isto de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável da produção de mercadorias.” (Marx, s/d, p. 81)
O fetichismo é assim definido como o processo pelo qual homens e mulheres, durante a produção de suas condições de existência, desenvolvem relações sociais (por exemplo, mercadorias) que, em dado momento, ganham uma vida “independente”, relativamente autônoma, e que se voltam, em seguida, contra os sujeitos dessas ações, submetendo-os. A relação das pessoas no interior desse sistema torna-se, assim, uma relação “coisificada”, pois é como se elas, as pessoas, deixassem de controlar as coisas que produzem e passassem a ser controladas por essas coisas. Em outras palavras, é como se as coisas se tornassem “sujeitos” e os sujeitos, “coisas”. Como conseqüência, a atividade consciente se eclipsa a fim de que adquiram preponderância as relações entre as coisas (mercadorias!). Não há uma escolha livre, social e democraticamente planejada sobre a produção e o consumo global realizado. Há apenas o livre movimentar-se das coisas, das mercadorias, do dinheiro, do capital. As relações sociais de produção e troca como que se “enfeitiçam”, e tudo isso se dá com uma “naturalização” dessas relações num duplo sentido: objetivo e subjetivo.
Isso ainda é observado no século XXI, visto que continuamos vivendo dentro de um sistema de produção de mercadorias. Tal como no século XIX, quando Marx teorizou de forma pioneira sobre esses fenômenos, sofremos os efeitos do fetichismo da mercadoria, do dinheiro, do capital. Mas, se podemos constatar a continuidade desse processo, não haveria também alguma diferença entre a época do autor de O capital e a nossa? O que mudou de lá pra cá? Que se pode dizer sobre o fenômeno do fetichismo em nossos dias? Quais determinações compõem hoje a sua concretude? Acreditamos que a obra de István Mészáros nos fornece algumas pistas.
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Segundo Mészáros, ocorreram nas últimas quatro décadas transformações importantes que redefiniram os parâmetros produtivos e distributivos do capitalismo em sua inteireza. Nesse contexto, o capital se apresenta, como dissemos, como uma forma de controle do metabolismo social que se define pela submissão dos trabalhadores aos produtos do seu trabalho. Verifica-se, de fato, a presença de um comando sobre o trabalho que se afirma enquanto um poder separado, tanto do trabalhador como do próprio processo de trabalho. Esse fenômeno exige a produção de personificações do capital e do trabalho, isto é, pessoas que, enquanto individualidades e enquanto classe, assumem, como sentido de suas existências, os valores e fins que expressam as necessidades do processo de reprodução ampliada do capital.
O capital é, então, como explica Mészáros, um processo onde “o poder que domina o trabalhador é, de forma circular, o poder do próprio trabalho social transformado”, que “funda a si próprio na ‘situação fetichizada na qual o produto é o proprietário do produtor’”. (Mészáros, apud Lessa, 1998, p. 1). Faz parte desse processo uma tendência expansionista que submete toda a existência social à sua lógica.
Mészáros explica que, depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o principal antagonismo enfrentado pelo capital foi o de, mantendo-se o controle do metabolismo social vigente até então, ampliar o consumo na mesma dimensão com que se desenvolviam as forças produtivas. A fim de resolver essa contradição, o capital lançou mão de algumas estratégias. Em primeiro lugar, procurou aumentar o consumo pela estruturação de um mercado consumidor de massas que teve no Welfare State sua necessária regulamentação política. Em segundo lugar, buscou intensificar o caráter destrutivo do sistema pela adoção da estratégia de obsolescência planejada, que acelerou a tendência à aproximação funcional entre consumo e destruição dos produtos sociais. Esse fenômeno chegou, em dado momento, ao seu ápice e conseguiu mesmo produzir a identificação entre consumo e destruição em setores econômicos da maior importância, como, por exemplo, o Complexo Industrial Militar.
Para Mészáros, contudo, tanto o Welfare State quanto a intensificação da destrutividade – representada tanto pela obsolescência planejada quanto pelo Complexo Industrial Militar - não seriam outra coisa que não a forma que assumiu, no pós-guerra, a crise estrutural do sistema do capital. O Welfare State respondeu pelo primeiro momento dessa crise, de 1945 até meados da década de 1970. Desde então, a crise estrutural enfrenta a sua segunda fase, caracterizada por um continuum de depressão, que tende a abolir mesmo os mecanismos de controle que existiram nas crises passadas. Lessa (1998, p. 2) explica que, para Mészáros, esses acontecimentos comprovam a velha concepção marxiana de que
“a tendência do capital à expansão nada mais é, ao fim e ao cabo, que a tendência à expansão de riqueza humana alienada, — e, nesse sentido, é uma tendência à expansão, intensiva e extensiva, da destrutividade das relações sociais. Ao ampliarem suas forças produtivas sob a regência do capital, os homens terminam por ampliar também sua desumanidade, o que se expressa concentradamente, hoje, na ampliação de suas capacidades de autodestruição. Não apenas pela produção de armas de destruição maciça, mas também pela destruição mais danosa para a humanidade: a de individualidades reduzidas à força de trabalho excedente.”
Assim, reprodução do capital e produção destrutiva se tornaram, hoje, para Mészáros, sinônimos. O sistema do capital de alimenta, hoje, de produzir destruição. Com base, então, no autor de Para além do capital, acreditamos ser possível afirmar que o fetichismo que se verifica nos dias atuais possui um caráter eminentemente destrutivo.
Pensamos, então, que uma grande e importante questão que se coloca, hoje, para as forças sociais que pretendem superar a ordem atualmente estabelecida, é: como resistir e superar aos processos fetichistas e destrutivos que compõem a substância do capital? Isto é, diante da atual condição em que nos encontramos, submetidos a processos sócio-metabólicos dominados por uma lógica essencialmente destrutiva, como é possível organizar-se social e politicamente para enfrentar e ir além do atual estado de coisas?
Nas pegadas de Mészáros, acreditamos que, para transcender essa situação no sentido da construção de uma comunidade humana emancipada, é preciso uma proposta que não se limite a uma atitude defensiva, mas que seja eminentemente ofensiva. Isto é, que não se restrinja às lutas que se desenvolvem meramente no âmbito da política, mas que seja fundamentalmente social. Nesse contexto, as várias possibilidades de intervenção social e cultural que temos à disposição atualmente podem e devem contribuir para esse projeto na medida em que são capazes de fomentar a generalização de um pensamento e ação críticos, que sejam negativos em relação a esta ordem de coisas dada, e que sejam afirmativos a ponto de estabelecer os princípios de construção de uma ordem radicalmente alternativa, sustentável, socialista. A generalização do pensamento e da ação críticos é um dos pontos fundamentais da teoria política de István Mészaros para a superação da ordem do capital, que comentaremos em postagens posteriores.
Referências:
LESSA, Sérgio. Beyond Capital – a atualidade do projeto socialista,1998. In http://www. sergiolessa.com/
MARX, Karl. O capital - Crítica da economia política. Livro primeiro: o processo de produção do capital. Volume 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, s/d.
MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007.
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