quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Um brinde aos derrotados da história

O processo de formação das sociedades se realiza, muitas vezes, a partir de conflitos encarniçados, cruéis, violentos, e têm como um de seus produtos o fato de que os vencedores passam a contar essa história à sua maneira. Do seu ponto de vista - o de quem teve sucesso na luta -, a história aparece como a sucessão de grandes homens, de grandes feitos, de grandes batalhas, de grandes conquistas, de grandes realizações a serem cultuadas. Enfim, uma história de grandezas, de proezas, de prodígios.

Os monumentos que surgem, aqueles que contemplamos todos os dias pelas ruas, as estátuas, os bustos, os arcos do triunfo, são erigidos sempre em homenagem a estes, os vitoriosos. Com tal tipo de criação cultural, buscam estabelecer sobre a coletividade um certo tipo de memória, de representação, de ideologia estruturada em torno de um significado preciso: todos nós devemos admirar os vencedores, cultuá-los, homenageá-los e tentar repetir as suas façanhas.

Dessa forma, os vencedores estabelecem a sua imagem como padrão a ser seguido, e camuflam, de resto, a concepção de mundo onde a sociedade aparece não como uma sucessão de batalhas, não como a reprodução de desigualdades entre grandes e pequenos e entre fortes e fracos, não como perpetuação da competição entre grupos antagônicos, mas como uma reunião de iguais, cada qual como sujeito do processo social, com dignidade, com honra, com múltiplas possibilidades inerentes a si.

Como numa comuna, por exemplo. Comunas existiram em vários lugares do mundo, em várias formas, ao longo da história. Os primeiros cristãos viveram por trezentos anos em sociedades comunais. Na Europa, durante a Idade Média, houve sociedades onde a propriedade era coletiva, onde a organização social e política era da responsabilidade de todos. Na Alemanha, tinham o nome de “associações de marca”. E não existiram só ali. Também na França, na Inglaterra, na Escandinávia, na Rússia. No Brasil, Palmares foi uma comuna. Alguns consideram que Canudos também. E houve até quem achasse que as Missões Jesuíticas foram algo muito próximo a isso.

Contudo, os vencedores da história, aqueles que herdaram o poder de seus ancestrais, querem dar continuidade à concepção de que, enquanto o gênero humano existir, sempre haverá quem manda e quem obedece, quem tem virtude e quem não tem, quem é dono de alguma coisa e quem não é dono de nada, quem é o modelo a ser seguido e quem é o exemplo a ser negado. Querem acabar com a idéia de uma sociedade que supera os seus conflitos e que vive de forma igualitária e com diversidade.

Os relatos históricos estruturados a partir dessa perspectiva pretendem que em nossa memória prevaleça a imagem do vencedor, e que este se nos apresente como um arquétipo que deve se expressar em nós, por nossos atos. Querem que lembremos somente deles, e que passemos a imitá-los com amor e devoção.

Mas é possível afirmar uma desconfiança em relação a essa idéia e propor que também os vencidos merecem recordação e consideração. Todos os vencidos! Todos os que não se encaixaram nos padrões, que não cumpriram as expectativas, que fracassaram diante dos objetivos. Os que sucumbiram, afinal.

Defendo que também estes têm valor. Os que não tiveram seus nomes escritos nos livros de história, os que não se enquadraram nos padrões de sucesso, de beleza, de normalidade, os que nunca foram o ideal, mas que cultivaram sinceramente a esperança de uma vida digna e feliz.

Quero, então, propor, nesta noite, um brinde. Um brinde aos que não saíram na fotografia, aos que foram esquecidos, aos derrotados da história. Aqueles, principalmente, que sucumbiram diante do processo de formação da Civilização Ocidental. Os negros de várias etnias da África, os muitos grupos indígenas da América, os nativos da Ásia, as mulheres que ao longo da história lutaram para que as de agora pudessem ter direitos – mas que infelizmente ainda hoje não desfrutam de uma emancipação genuína e completa -, os homossexuais perseguidos e discriminados, todos os trabalhadores, das várias partes do mundo, que no passado deram a vida para que os trabalhadores de hoje tivessem uma existência mais bonita e justa.

Um brinde a todos os que batalharam, labutaram, se organizaram, todos os que planejaram, que cultivaram a expectativa de emancipação, todos os que morreram sem ver seus sonhos realizados, todos os oprimidos por tiranos, os escravizados, todos os que foram esquecidos nas prisões, nos quartos de pensões, nos leitos de hospital, os doentes e os deformados, os paralíticos, os deficientes, os aleijados, todos os que mendigaram pelas ruas, os que sofreram de doenças incuráveis e prematuras, os mutilados, os queimados nas fogueiras, os órfãos, os torturados, os desempregados, os perseguidos, os que se suicidaram, os que sofreram na carne o ódio e a violência alheia, os viciados em drogas, os que experimentaram a angústia da solidão, a melancolia do abandono, do desprezo, o infortúnio da pobreza, da miséria, da feiúra e da fome, todos os que foram repudiados, denegridos, raptados, desterrados, exilados, todos os que deram o seu melhor e mesmo assim perderam.

Quero que pensem por um momento em todas essas pessoas cujo nome não sabemos. Quero que mentalizem sua luta, suas aspirações, seus sonhos mais íntimos de desfrutar uma existência verdadeiramente humana e digna, com amor, com afeto, com consideração. Quero que pensem nelas, em seu desespero solitário, durante um breve segundo.

Afirmo que, pela eternidade desse segundo, um sopro do ar frio que envolveu a esses que nos precederam roçará de leve o nosso rosto, e, assim, enquanto esse instante existir, tais pessoas estarão aqui, conosco, e se sentirão redimidas e salvas.

Ergamos nossas taças! Hoje, vamos celebrar a derrota. Um brinde, então, a todos os que se encontram sem pátria, sem lar, sem conforto, sem amparo, sem esperança, sem comida, sem trabalho, sem saúde, sem educação, sem liberdade, sem independência, sem carinho, sem afeto, sem amanhã. Um brinde aos derrotados da história!



Tim-tim!

Um comentário:

  1. Texto extremamente lindo. Parabéns! Lembrou muito o que analisou o sociológo canadense E.Goffman em seu livro "Estigmas". Um brinde sim e realmente a totalidade da humanidade, pois se há os que saem nas fotos, há os que ficam por detrás delas. Um abração ! Feliz 2010!

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