1959 – Havana - Cuba amanhece sem Batista
no primeiro dia do ano. Enquanto o ditador aterrissa em São Domingos e pede refúgio a seu colega Trujillo, em Havana os verdugos fogem, salve-se quem puder, em disparada.
Earl Smith, embaixador norte-americano, comprova, horrorizado, que as ruas foram invadidas pela ralé e por alguns guerrilheiros sujos, cabeludos, descalços, iguaizinhos à quadrilha de Dillinger, que dançam guaguancó marcando a tiros o ritmo.
1959 – Havana - “Só ganhamos o direito de começar”
diz Fidel, que chega no alto de um tanque, vindo da serra Maestra. Frente à multidão que fervilha, explica que é apenas o princípio tudo isso que parece o final. Enquanto fala, as pombas descansam em seus ombros.
A metade da terra está sem cultivar. As estatísticas dizem que o ano passado foi o mais próspero da história de Cuba; mas os camponeses, que não sabem ler estatísticas nem sabem ler nada não perceberam.
A partir de agora, outro galo cantará: para que cante, a reforma agrária e a alfabetização, como na serra, são as tarefas mais urgentes. E antes, a liquidação deste exército de açougueiros. Os mais ferozes vão para o paredón. O torturador chamado Quebraossos desmaia cada vez que o pelotão aponta para ele. É preciso amarrá-lo num poste.
1961 – Baía dos Porcos – Contra o vento,
contra a morte, sempre de ida, nunca de volta, a Revolução Cubana continua escandalosamente viva bem ali, a oito minutos de vôo de Miami.
Para acabar com a insolência, a CIA lança uma invasão a partir dos Estados Unidos, da Guatemala e da Nicarágua. No cais, Somoza II se despede dos expedicionários. O Exército Cubano de Libertação, que a CIA fabricou e pôs em funcionamento, está formado por militares e policiais da ditadura de Batista e pelos desalojados herdeiros das plantações de açúcar, dos bancos, dos jornais, dos garitos, dos bordéis e dos partidos políticos.
_Tragam-me alguns pêlos da barba de Castro! - encomenda Somoza.
Aviões dos Estados Unidos entram no céu de Cuba. Estão camuflados. Levam pintada a estrela da Força Aérea Cubana. Os aviões metralham, voando baixo, o povo que os saúda, e descarregam bombas sobre as cidades. Atrás do bombardeio, que prepara o terreno, os invasores desembarcam nos pântanos da baía dos Porcos. Enquanto isso, o presidente Kennedy joga golfe na Virgínia.
Kennedy deu a ordem, mas tinha sido Eisenhower quem tinha posto em ação o plano de invasão. Eisenhower tinha aprovado a invasão de Cuba na mesma escrivaninha onde antes tinha aprovado a invasão da Guatemala. O chefe da CIA, Alien Dules, garantiu-lhe que acabaria com Fidel Castro como tinha acabado com Arbenz. Seria coisa de algumas semanas, dia a mais, dia a menos, e a mesma equipe da CIA cuidaria do assunto: os mesmos homens, as mesmas bases. O desembarque dos libertadores desencadearia a insurreição popular na ilha submetida à tirania vermelha. Os espiões norte-americanos sabiam que o povo de Cuba, farto de entrar em filas, não esperava outra coisa além do sinal de rebelião.
1961 – Praia Girón – A segunda derrota militar dos Estados Unidos na América Latina
Em três dias Cuba acaba com os invasores. Entre os mortos, há quatro pilotos norte-americanos. Os sete navios, escoltados pela Marinha de Guerra dos Estados Unidos, fogem ou afundam na baía dos Porcos.
O presidente Kenneddy assume a responsabilidade total por este fiasco da CIA.
A CIA acreditou, como sempre, nos relatórios dos seus espertos espiões locais, que recebem para dizer o que agrada ser ouvido; e, como sempre, confundiu a geografia com um mapa militar alheio às pessoas e à história. Os pântanos que a CIA escolheu para o desembarque tinham sido o lugar mais miserável de Cuba inteira, um reino de crocodilos e mosquitos, até que a Revolução chegou. Então, o entusiasmo humano transformou estes lodaçais, fundando neles escolas, hospitais e estradas. As pessoas daqui foram as primeiras a expor o peito às balas, contra os invasores que vinham salvá-las.
1961 – Havana – Maria de la Cruz
Pouco depois da invasão, o povo reúne-se na praça. Fidel anuncia que os prisioneiros serão trocados por remédios para crianças. Depois entrega diplomas a quarenta mil camponeses alfabetizados. Uma velha insiste em subir na tribuna, e tanto insiste que enfim sobe. Em vão move as mãos no ar, buscando o altíssimo microfone, até que Fidel o abaixa:
_Eu queria conhecê-lo, Fidel. Queria dizer-lhe...
_Cuidado, vou ficar vermelho...
Mas a velha, mil rugas, meia dúzia de ossinhos, criva-o de elogios e gratidões. Ela aprendeu a ler e a escrever aos cento e seis anos de idade. Chama-se Maria de la Cruz, por ter nascido no mesmo dia da invenção da Santa Cruz, com sobrenome Semanat, porque Semanat se chamava a plantação de cana onde ela nasceu escrava, filha de escravos, neta de escravos. Naquele tempo os amos mandavam ao cepo os negros que queriam letras, explica Maria de la Cruz, porque os negros eram máquinas que funcionavam ao toque do sino e ao ritmo dos açoites, e por isso ela tinha demorado tanto em aprender.
Maria de la Cruz apodera-se da tribuna. Depois de falar, canta. Depois de cantar, dança. Faz mais de um século que desandou a dançar Maria de la Cruz. Dançando saiu do ventre da mãe e dançando atravessou a dor e o horror até chegar aqui, que era onde devia chegar, portanto agora não há quem a detenha.
1963 – Bayamo - O ciclone Flora
surra Cuba com alma e vida durante mais de uma semana. O ciclone mais prolongado da história nacional ataca e foge e regressa como se tivesse esquecido de quebrar alguma coisa: tudo gira, torvelinho furioso, ao redor desta gigantesca serpente de vento que se torce e ataca onde menos se espera.
Não adianta nada pregar portas e janelas. O ciclone arranca tudo pela raiz e brinca com as casas e as árvores atirando-as pelos ares. Esvazia-se o céu, para o susto das aves, e o mar inunda todo o oriente da ilha. Da base de Bayamo, as brigadas saem em lanchas e em helicópteros. Os voluntários vão e vem resgatando gentes e bichos, vacinando tudo que encontram vivo e enterrando e queimando os muitos mortos.
1963 – Havana – Todo mundo é faz-tudo
Nesta ilha devastada pelo ciclone e bloqueada e acossada pelos Estados unidos, é uma façanha o dia-a-dia. As vitrinas exibem cartazes de solidariedade com o Vietnam no lugar de sapatos e camisas, e qualquer comprinha exige horas de fila; os escassos automóveis andam com buchas de chifre de boi nas rodas e nas escolas de arte se rala o grafite dos lápis para improvisar tinta. Nas fábricas há teias de aranha sobre algumas máquinas novas, porque certa peça de reposição não acabou de percorrer seus dez mil quilômetros de caminho. De distantes portos do Báltico vêm o petróleo e todo o resto, e uma carta enviada de Cuba à Venezuela dá a volta ao mundo inteiro antes de chegar ao seu vizinho destino.
E não faltam apenas coisas. Muita gente que sabia de tudo foi-se embora para Miami atrás das pegadas dos que tinham de tudo. E agora?
_Agora, é preciso inventar.
Aos dezoito anos, Ricardo Gutiérrez desfilou em Havana com o fuzil levantado, no meio da maré de fuzis e facões e chapéus de palha que celebrou o fim da ditadura de Batista. No dia seguinte, teve de assumir a responsabilidade de várias empresas abandonadas por seus donos. Coube a ele, entre outras coisas, uma fábrica de peças íntimas femininas. Em seguida começaram os problemas de matéria-prima. Não havia espuma de látex para o enchimento dos sutiãs. Os operários discutiam o assunto numa assembléia e decidiram esvaziar almofadas. Foi um desastre. O enchimento das almofadas não podia ser lavado porque não secava nunca.
Ricardo tinha vinte anos quando meteram-lhe dois pesos no bolso e o mandaram administrar um engenho de açúcar. Nunca em sua vida tinha visto um engenho, nem de longe; lá descobriu que o melado tem uma cor escura. O administrador anterior, fiel servidor com meio século de experiência, tinha se perdido no horizonte levando debaixo do braço o quadro a óleo com o retrato do patrão, Julio Lobo, senhor daqueles canaviais que a revolução tinha expropriado.
Agora o ministro de Relações Exteriores manda chamá-lo. Raúl Roa senta-se no chão, na frente de um grande mapa da Espanha aberto sobre o tapete, e começa a desenhar cruzinhas. Assim Ricardo fica sabendo, aos vinte e dois anos, que virou cônsul.
_Mas eu só escrevo a máquina com dois dedos – balbucia, defendendo-se.
_Eu escrevo com um e sou ministro – sentencia Roa.
1965 – Havana – O multiplicador de revoluções,
o espartano guerrilheiro, vai para outras terras. Fidel revela a carta de despedida do Che Guevara: Já nada legal me ata a Cuba, diz o Che, só os laços que não podem ser rompidos.
O Che também escreve a seus pais e a seus filhos. Aos filhos, pede que sejam capazes de sentir da maneira mais profunda qualquer injustiça cometida contra qualquer um em qualquer parte do mundo.
Aqui em Cuba, com asma e tudo, o Che foi sempre o primeiro a chegar e o último a ir embora, na guerra e na paz, sem afrouxar nem um pouquinho.
Por ele se apaixonaram as mulheres, os homens, as crianças, os cães e as plantas.
O CHE GUEVARA DIZ ADEUS A SEUS PAIS
"Outra vez sinto sob os calcanhares as costelas de Rocinante; volto ao caminho, com minha adaga no braço.
Muitos me dirão aventureiro, e sou; só que de um tipo diferente e dos que arriscam a pele para demonstrar suas verdades. Pode ser que esta seja definitiva. Não procuro isso, mas está dentro do cálculo lógico das probabilidades. Se for assim, vai um último abraço.
Amei-os muito, só que não soube expressar meu carinho; sou extremamente rígido em minhas ações e acho que às vezes não me entenderam. Não era fácil me entender, aliás, acreditem. Somente hoje.
Agora, uma vontade que poli com gozo de artista, sustentará umas pernas flácidas e uns pulmões cansados. Farei isto. Lembrem-se de vez em quando deste pequeno condottieri do século XX..."
1967 – Às margens do rio Ñancahuazú – Dezessete homens caminham para o aniquilamento
O cardeal Maurer chega à Bolívia, vindo de Roma. Traz as bênçãos do Papa e a notícia de que Deus apóia decididamente o general Barrientos contra as guerrilhas.
Enquanto isso, acossados pela fome, oprimidos pela geografia, os guerrilheiros dão voltas pelos matagais do rio Ñancahuazú. Poucos camponeses existem nestas imensas solidões; e nem um, nem um único, incorporou-se à pequena tropa do Che Guevara. Suas forças vão diminuindo de emboscada em emboscada. O Che não fraqueja, não se deixa fraquejar, embora sinta que seu próprio corpo é uma pedra entre as pedras, pesada pedra que ele arrasta avançando à frente de todos; e tampouco se deixa tentar pela idéia de salvar o grupo abandonando os feridos. Por ordem do Che, caminham todos ao ritmo dos que menos podem: juntos serão salvos ou perdidos.
Perdidos. Mil e oitocentos soldados, dirigidos pelos rangers norte-americanos, pisam sua sombra. O cerco se estreita mais e mais. Finalmente delatam a sua localização exata um par de camponeses dedos-duros e os radares eletrônicos da National Security Agency, dos Estados Unidos.
1967 – Quebrada do Yuro – A queda do Che
A rajada de metralhadoras estraçalha suas pernas. Sentado, continua lutando, até que seu fuzil voa pelos ares.
Os soldados disputam a porradas o relógio, o cantil, o cinturão, o cachimbo. Vários oficiais o interrogam, um após outro. O Che cala e jorra sangue. O contra-almirante Ugarteche, ousado lobo da terra, chefe da Marinha de um país sem mar, o insulta e ameaça. O Che cospe em sua cara.
De La Paz, chega a ordem de liquidar o prisioneiro. Uma rajada o atravessa. O Che morre à bala, morre à traição, pouco antes de fazer quarenta anos, a mesma idade na qual morreram, também à bala, também à traição, Zapata e Sandino.
No povoado de Higueras, o general Barrientos exibe seu troféu aos jornalistas. O Che jaz sobre um tanque de lavar roupa. Depois das balas, é atingido pelos flashes. Esta última cara tem olhos que acusam e um sorriso melancólico.
1967 – Higueras – Os sinos dobram por ele
Morreu em 1967, na Bolívia, porque se enganou de hora e de lugar, de ritmo e de maneira? Ou morreu nunca, em nenhum lugar, porque não se enganou no que de verdade vale para todas as horas e lugares e ritmos e maneiras?
Acreditava que é preciso defender-se das armadilhas da cobiça, sem jamais baixar a guarda. Quando era presidente do Banco Nacional de Cuba, assinava Che nas notas, para debochar do dinheiro. Por amor às pessoas desprezava as coisas. Doente está o mundo, acreditava ele, onde ter e ser significavam a mesma coisa. Nunca guardou nada para si, nem pediu nada nunca.
Viver é se dar, acreditava; e se deu.
Fidel
Seus inimigos dizem que foi rei sem coroa e que confundia a unidade com a unanimidade.
E nisso seus inimigos têm razão.
Seus inimigos dizem que, se Napoleão tivesse tido um jornal como o Granma, nenhum francês ficaria sabendo do desastre de Waterloo.
E nisso seus inimigos têm razão.
Seus inimigos dizem que exerceu o poder falando muito e escutando pouco, porque estava mais acostumado aos ecos que às vozes.
E nisso seus inimigos têm razão.
Mas seus inimigos não dizem que não foi para posar para a História que abriu o peito para as balas quando veio a invasão,
que enfrentou os furacões de igual pra igual, de furacão a furacão,
que sobreviveu a 637 atentados,
que sua contagiosa energia foi decisiva para transformar uma colônia em pátria
e que não foi nem por feitiço de mandinga nem por milagre de Deus que essa nova pátria conseguiu sobreviver a dez presidentes dos Estados Unidos, que já estavam com o guardanapo no pescoço para almoçá-la de faca e garfo.
E seus inimigos não dizem que Cuba é um raro país que não compete na Copa Mundial do Capacho.
E não dizem que essa revolução, crescida no castigo, é o que pôde ser e não o quis ser. Nem dizem que em grande medida o muro entre o desejo e a realidade foi se fazendo mais alto e mais largo graças ao bloqueio imperial, que afogou o desenvolvimento da democracia a la cubana, obrigou a militarização da sociedade e outorgou à burocracia, que para cada solução tem um problema, os argumentos que necessitava para se justificar e perpetuar.
E não dizem que apesar de todos os pesares, apesar das agressões de fora e das arbitrariedades de dentro, essa ilha sofrida mas obstinadamente alegre gerou a sociedade latino-americana menos injusta.
E seus inimigos não dizem que essa façanha foi obra do sacrifício de seu povo, mas também foi obra da pertinaz vontade e do antiquado sentido de honra desse cavalheiro que sempre se bateu pelos perdedores, como um certo Dom Quixote, seu famoso colega dos campos de batalha.
O nascedor
Por que será que o Che tem esse perigoso costume de continuar nascendo? Quanto mais o manipulam, quanto mais o traem, mais nasce. Ele é o mais nascedor de todos.
Não será porque o Che dizia o que pensava, e fazia o que dizia? Não será porque isso continua sendo tão extraordinário, em um mundo onde as palavras e os fatos muito raramente se encontram, e quando se encontram não se cumprimentam, porque não se reconhecem?
(Textos de Eduardo Galeano)
Fragmentos retirados de:
GALEANO, Eduardo. Espelhos, uma história quase universal. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre, RS: LP&M, 2008.
GALEANO, Eduardo. Memória do fogo 3: O século do vento. Porto Alegre: L&PM, 1998.
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Releitura obrigatória...já é a terceira vez.
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