Há uma passagem marcante, nos Manuscritos econômico-filosóficos, onde Marx descreve, com entusiasmo e admiração, suas observações acerca das reuniões de trabalhadores franceses, que ele conheceu pessoalmente em Paris, em 1844:
“Quando os operários comunistas se reúnem, a doutrina, a propaganda, etc. constituem as finalidades imediatas. Mas, ao mesmo tempo, criam uma nova necessidade, a necessidade da sociedade, e o que aparece como meio tornou-se fim. É possível apreciar este movimento prático nos seus mais brilhantes efeitos, ao notar as aglomerações de trabalhadores socialistas franceses. Fumar, beber, comer, etc. já não são simples meios para reunir as pessoas. A sociedade, a associação, o entretenimento, que novamente tem a sociedade como seu objetivo, é o que basta para eles; a fraternidade humana não é uma frase vazia entre eles, mas uma verdade, e a nobreza da humanidade brilha nestas figuras endurecidas pelo trabalho.”
Como se sabe, a vida vivida sob o domínio das práticas sociais capitalistas nos põe todos os dias, individual e coletivamente, na condição de antagonistas em relação ao outro. Temos que produzir, que vender nossa força de trabalho, temos que ter dinheiro, que consumir, competir, concorrer, lucrar, tomar freqüentemente o outro como meio para a realização dos nossos fins individuais, e nos colocar também como instrumentos, como coisas, para que o outro, através de nós, satisfaça as suas necessidades egoístas. Conhecemos a dura realidade da alienação, da dominação, da exploração, da coisificação, da fragmentação e, não raro, da solidão. Como disse Carlos Drummond de Andrade: “Este é tempo de partido/ tempo de homens partidos/... / tempo de gente cortada/ De mãos viajando sem braços/ obscenos gestos avulsos”. As relações sociais estabelecidas dessa forma nos tornam amargos, angustiados, egoístas, mesquinhos, cruéis, bárbaros e brutos.
Com a fraternidade, a solidariedade, a camaradagem, isso se inverte. As outras pessoas, a sociedade, não são mais um meio para a realização dos nossos fins. São os nossos fins mesmos. Quando isso se estabelece, saímos momentaneamente do âmbito das relações alienantes do capitalismo. Superamos, ainda que de forma efêmera, essa estrutura de relações sociais que nos aprisiona, nos escraviza e faz com que nos tornemos como lobos para os nossos semelhantes.
Este é o sentido de ser comunista. Criar - se não for de forma permanente, que seja ao menos por breves instantes - luz dentro da ininterrupta tempestade barbarizante produzida pelo capital. Negar a ordem que nos coisifica e afirmar uma que nos humanize. Se, ao assim procederemos, em cada momento, afinarmos os canais da nossa percepção, poderemos quem sabe ouvir o eco das canções e risos daqueles trabalhadores franceses de outrora clamando em nossa direção. Assim, um sopro do ar fresco que envolveu a esses, que nos precederam, afagará de leve os nossos rostos e renovará o nosso ânimo para a luta.
Quereremos, nessa hora, prolongar esse momento, e nos daremos conta de que isso só se faz possível por meio de uma revolução. E então a revolução se tornará, pois, aquilo que de mais valioso haverá para nós. Não a reforma, não a capitulação, não a resignação, não o ego pessoal e as distrações cotidianas de que está cheio o mundo capitalista, não o conforto ou bem-estar material, mas a revolução. Isto será para nós uma questão de insuperável importância, de urgência mesmo, pois diz respeito às possibilidades de rumo que poderá tomar o nosso destino, se este será de liberdade, numa sociedade emancipada, ou de cativeiro, no redemoinho dos processos fetichistas do capital. E com base nesse ideal pautaremos nossas ações. Não de forma rígida, não de forma mecânica, nem linear, nem ditatorial conosco ou com os outros. Nem, obviamente, fetichista. A revolução não é para o comunista um fetiche. É, na verdade, a quebra e a superação de todo tipo de fetiche, é ir além do modo de organização social que vive de produzir fetiches.
A vida do comunista é dedicada então a... viver. A não se tornar um robô programado para produzir, possuir, consumir – objetos e pessoas -, gozar desse consumo e se auto-destruir com as coisas que consome. A não ser, enfim, mero espectador passivo do fluxo do devir da humanidade onde tem o ser. O comunista está convencido de que vive justamente quando supera essas imposições. E se as situações lhe determinam o isolamento e a solidão, ele estabelece um vínculo duradouro com o outro onde este se lhe aparece, não como meio, mas como fim.
Se tudo ao redor conspira para a inibição das suas melhores potencialidades, ele age, decidida e afirmativamente, para as exteriorizar, exercitando, dia após dia, as qualidades que lhe possibilitam realizar uma multiplicidade de “manifestações humanas de vida” (cf. Marx). Quando o conjunto das relações sociais, no interior das quais ele se faz, se estrutura de maneira a adquirir o sentido da afirmação de uma oposição entre ele e os seus semelhantes, entre ele e a natureza, entre ele e as suas constituições mais essenciais, e até com os frutos do seu trabalho, o comunista luta para transformar essas relações e eliminar essa oposição.
Sabe ele que vale a pena lutar por isso e que as revoluções são possíveis. Sabe que vieram outros antes que, em embates semelhantes, tiveram muitas derrotas, mas tiveram também vitórias. Sabe, sobretudo, onde está e quem é o seu inimigo, ainda que porventura, numa dada conjuntura histórica, possa não ter a clareza e a precisão exigidas a respeito dos passos necessários para derrotá-lo. Essa clareza ele buscará na práxis revolucionária, realizada em conjunto com aqueles camaradas seus imbuídos do mesmo ideal. É por intermédio dessa atividade profundamente inquiridora que ele tratará de encontrar as respostas para si e para os que estão em posição semelhante à sua.
O comunista não dispõe de bola de cristal, não tem gurus, nem cartomantes. A despeito disso, sabe exatamente o que quer e deixa as indecisões quanto aos objetivos de vida para os que, ao contrário dele, se limitam a transitar, conscientemente ou não, entre as inúmeras compensações, entorpecentes e mistificações que a sociedade burguesa é pródiga em produzir.
O comunista não é exatamente um otimista, pois é difícil o ser numa conjuntura tão sórdida, mórbida e bárbara. Está, em verdade, mais próximo de um pessimismo crítico. É alguém, sobretudo, que não renuncia a um tipo específico de fé: a fé profana na capacidade humana de resistir, de enfrentar aquilo que lhe oprime, de transformar para melhor a si e ao mundo em redor de si.
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