Em 1921, Walter Benjamin escreveu um brevíssimo artigo filosófico que viria a conhecimento público somente após sua morte: “O capitalismo como religião”. Nesse texto, o filósofo procurava distinguir algumas das características essenciais da sociedade em que vivia. O capitalismo era, pois, essencialmente cultual. Nesse meio, o dinheiro, a riqueza, etc., seriam as divindades às quais se deveria impreterivelmente servir. Em segundo lugar, o culto preconizado pela religião capitalista não possuiria um dia ou uma ocasião própria para sua realização. Ele seria, de fato, permanente: “Não há dia que não seja de festa, no terrível sentido da ostentação sagrada, da tensão extrema que reside no adorador”, afirmou Benjamin. O terceiro traço do capitalismo como religião é que o culto que esse sistema produz é culpabilizador, mas sem a possibilidade de expiação. Como conseqüência, as pessoas que vivem sob esse jugo são tomadas de um desespero renitente e cruel.
No período em que escreveu seu ensaio, apesar de receber influência e ter a amizade do filósofo marxista alemão Ernst Bloch, Benjamin estava mais próximo politicamente das concepções românticas e libertárias de Gustav Landauer e de Georges Sorel. Mais tarde, em 1924, o autor de Passagens tomou contato com a obra de Lukács Historia e consciência de classe, aproximou-se das concepções de Marx, deixou de condenar o capitalismo como religião e passou a criticar o culto fetichista da mercadoria, analisando as galerias parisienses como “templos do capital mercadológico” (Cf. Löwy, 2007, p. 180).
Em nossos dias, Giorgio Agamben retoma e desenvolve aquelas reflexões benjaminianas, dando a elas, entretanto, uma fundamentação um pouco diferente. Sim, diz ele, o capitalismo possui cultos; sim, esses cultos são permanentes; e sim, a culpabilização que gera não oferece possibilidade de redenção, e generaliza, por isso, o desespero entre os homens e mulheres que vivem no seu interior. Mas o capitalismo deve ser identificado com uma religião, sobretudo, por estabelecer uma cisão em em sua própria substância que cria a esfera do sagrado em contraposição com o mundo humano. O filósofo italiano vai buscar nos escritos dos juristas romanos a fundamentação teórica para sua reflexão. Na Roma antiga,
“Sagradas ou religiosas eram as coisas que de algum modo pertenciam aos deuses. Como tais, elas eram subtraídas ao livre uso e ao comércio dos homens, não podiam ser vendidas nem dadas como fiança, nem cedidas ao usufruto ou gravadas de servidão. Sacrílego era todo ato que violasse ou ou transgredisse esta sua especial indisponibilidade, que as reservava exclusivamente aos deuses celestes (nesse caso eram denominadas propriamente 'sagradas') ou infernais (nesse caso eram simplesmente chamadas 'religiosas').” (Agamben, 2007, p. 65).
Religião é, então, aquilo que retira coisas, lugares, animais ou pessoas do contato com o vulgo e as transfere para uma dimensão à parte da existência. Não há religião sem separação, diz Agamben, e todo tipo de separação feita nesses moldes contem algo de religioso. Nesse contexto, o sacrifício é o dispositivo que realiza a transposição de um determinado ente do mundo dos homens para as regiões divinas.
Muitas pessoas acreditam que o termo religio deriva de religare (isto é, o que une o humano e o divino), mas essa relação não é verdadeira, afirma Agamben. Religio deriva, de fato, de relegere que significa precisamente “a atitude de escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as relações com os deuses, a inquieta hesitação (o 'reler') perante as formas – e as fórmulas – que se devem observar a fim de respeitar a separação entre o sagrado e o profano” (Agamben, 2007, p. 66). Se se compreende essa questão, perceber-se-á então que religião não é o que une o mundo humano e o mundo divino, mas exatamente aquilo que os separa e reforça a sua distinção. O que restitui verdadeiramente as coisas sagradas ao domínio humano e supera a separação entre essas duas esferas não é o escrúpulo e a deferência em relação ao divino, mas uma certa atitude de “negligência” para com as normas que a religião estabelece. É esta atividade que Agamben, na esteira dos juristas romanos, denomina de profanar: “Profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso particular.” (Agamben, 2007, p. 66). Uma das maneiras de se fazer esse “uso particular” do sagrado e burlar o conjunto de normas que realizam a separação entre mundo humano e divino é o jogo.
Por que o jogo?
“Brincar de roda era originalmente um rito matrimonial; jogar com bola reproduz a luta dos deuses pela posse do sol; os jogos de azar derivam de práticas oraculares; o pião e o jogo de xadrez eram instrumentos de adivinhação. Ao analisar a relação entre jogo e rito, Émile Benveniste mostrou que o jogo não só provém da esfera do sagrado, mas também, de algum modo, representa a sua inversão. A potência do ato sagrado – escreve ele – reside na conjunção do mito que narra a história com o rito que a reproduz e a põe em cena. O jogo quebra essa unidade: como ludus, ou jogo de ação, faz desaparecer o mito e conserva o rito; como jocus, ou jogo de palavras, ele cancela o rito e deixa sobreviver o mito (…) Isso significa que o jogo libera e desvia a humanidade da esfera do sagrado, mas sem a abolir simplesmente. O uso a que o sagrado é devolvido é um uso especial, que não coincide com o consumo utilitarista. Assim, a 'profanação' do jogo não tem a ver apenas com a esfera religiosa. As crianças, que brincam com qualquer bugiganga que lhes caia nas mãos, transformam em brinquedo o que pertence à esfera da economia, da guerra, do direito e das outras atividades que estamos acostumadas a considerar sérias. Um automóvel, uma arma de fogo, um contrato jurídico transformam-se improvisadamente em brinquedos.” (Agamben, 2007, p. 66-7).
Note-se, então, que, no jogo, que é uma das formas exemplares de profanação, as coisas são retiradas de suas relações costumeiras e inseridas em novas relações completamente distintas das primeiras. Um objeto com uma função específica, como uma vassoura, por exemplo, pode virar, numa brincadeira, um cavalo-de-pau. É como se uma estrutura que envolve determinadas práticas sociais e significados se quebrasse para que outra viesse à tona.
Contudo, diz Agamben, o “jogo como órgão da profanação está em decadência em todo lugar.” (2007, p. 67). Em nossos dias de “religião capitalista”, os homens e mulheres já não tomam mais o jogo como meio de restituir o sagrado novamente ao mundo humano. Não que não haja jogos – ou festas, ou danças, também concebidas originalmente como praticas que anulavam a distinção entre sagrado e humano – no contexto contemporâneo. Mas é que, naqueles que existem – os “jogos televisivos de massa”, por exemplo – o objetivo realizado é apenas a instauração de uma nova liturgia, que seculariza por um momento o que nas situações diárias é considerado como objeto de culto e reverência. Mas secularização é diferente de profanação.
“A secularização é uma forma de remoção que mantém intactas as forças, que se restringe a deslocar de um lugar a outro. Assim, a secularização política de conceitos teológicos (…) limita-se a transmutar a monarquia celeste em monarquia terrena, deixando, porém, intacto o seu poder. A profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso.”(Agamben, 2007, p. 68).
A secularização, portanto, muda de lugar um elemento no interior de uma certa estrutura de relações que permanece, por sua vez, intacta. A profanação, ao contrário, quebra essa estrutura mesma. É por isso que é a profanação, e não a secularização, que deve ser perseguida por todos os que não querem se deixar aprisionar pelo culto culpabilizador da religião capitalista.
O capitalismo, diz Agamben, generaliza e absolutiza o princípio definidor da religião. Em todos os âmbitos, pode-se verificar o processo multiforme de separação que o sistema implementa. Nesse contexto, é interessante observar como Agamben, leitor atento de Benjamin, aproxima esse fenômeno – a seu ver, essencialmente religioso – do fetichismo da mercadoria de que falava Marx. Nas palavras do filósofo italiano:
“Na sua forma extrema, a religião capitalista realiza a pura forma de separação, sem mais nada a separar. Uma profanação absoluta e sem resíduos coincide agora com uma consagração igualmente vazia e integral. E como, na mercadoria, a separação faz parte da própria forma do objeto, que se distingue em valor de uso e valor de troca e se transforma em fetiche inapreensível, assim agora tudo o que é feito, produzido e vivido – também o corpo humano, também a sexualidade, também a linguagem – acaba sendo dividido por si mesmo e deslocado para uma esfera separada que já não define nenhuma divisão substancial e na qual todo uso [no sentido de profanação] se torna duravelmente impossível. Esta esfera é o consumo." (Agamben, 2007, p. 71. Grifos nossos).
Portanto, tudo que é feito, produzido e vivido se divide e passa a dar forma a uma existência social estruturalmente dividida entre um plano humano e outro sagrado. Tudo se transforma em mercadoria, forma inerentemente cindida de relação social, e o consumo passa a ser a esfera onde a consagração das coisas se consuma. No consumo, realiza-se e reforça-se a consagração e o fetichismo de tudo aquilo que é cindido no capitalismo.
É preciso, então, fazer um outro uso das coisas. É preciso estabelecer uma forma de relacionamento social que elimine a separação instaurada pelo capitalismo, que faz as pessoas tratarem como sagradas certas produções humanas. É preciso, numa palavra, profanar. "A profanação do Improfanável é a tarefa política da geração que vem", diz Agamben.
Mas talvez não seja apenas tarefa da geração que vem. Talvez seja de todos os que hoje resistem em se deixar absorver pelos imperativos desse sistema monstruso que quer nos obrigar a considerar sagradas, divinas, eternas, imutáveis e intocáveis os processos que realizam a sua lógica.
Referências:
Agamben, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.
Löwy, Michael. O capitalismo como religião: Walter Benjamin e Max Weber. In Jinkings, Ivana e Peschanski, João Alexandre. As utopias de Michael Löwy: reflexões de um marxista insubordinado.
sexta-feira, 25 de dezembro de 2009
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Escrevi alguma coisa sobre o jogo na minha monografia, Demétrio. (que afinal você não leu, seu matão!) Se formos entender a religião como religare, o jogo é a grande Força que nos leva a esse religamento. Mas religamento a quê? - poderíamos perguntar. No capítulo sobre o jogo e a criatividade eu dou algumas pistas. Ainda pretendo estudar muito isso, acho interessantíssimo. Isso que eu escrevi na mono foi só pra fincar um primeiro passo. Dá uma olhada lá.
ResponderExcluirUm abraço.
Valeu, meu amigo!
ResponderExcluirVou ler seu texto, sim, pode deixar.
Grande abraço!
D