sábado, 12 de dezembro de 2009

O asselvajamento do patriarcado - Algumas palavras sobre o pensamento de Roswitha Scholz

A filósofa alemã Roswitha Scholz deu o nome de valor-dissociação à sua teoria sobre a discriminação e relação assimétrica de gêneros. Por que essa denominação?

De maneira bem sucinta, costuma-se definir o capital, nas pegadas de Marx, como um processo de mudança do valor, ou, como nos informa Paul Singer (1987, p. 27), o capital é “valor que se valoriza”. Para que ocorra essa “valorização do valor”, a riqueza inicial deve passar por uma metamorfose. O capital-dinheiro inicial deve passar a ser capital-mercadoria (isto é, o capitalista, possuidor do dinheiro, deve adquirir por seu intermédio as seguintes mercadorias: meios de produção e força de trabalho). Os trabalhadores, então, mediante sua força de trabalho (que é uma mercadoria que eles vendem ao capitalista), colocarão em movimento os meios de produção (também mercadorias compradas pelo capitalista) e darão origem a novos produtos (novas mercadorias). Estas, por sua vez, precisarão ser realizadas, isto é, vendidas no mercado a fim de se obter novamente capital-dinheiro. Ao longo desse processo, a mercadoria que aparecerá no fim da cadeia valerá mais que as mercadorias que estavam dadas no início. Nesse contexto, em condições “normais”, também o capital-dinheiro que resultará da venda dessas mercadorias será maior que o capital-dinheiro que o capitalista possuía naquele primeiro momento. (Via de regra, o capital do fim do ciclo será, grosso modo, igual ao capital inicial mais o lucro, que é expressão da mais-valia em dinheiro). O valor acrescido no processo de produção das mercadorias é resultante do trabalho dos trabalhadores. É o trabalho, em suma, que produz esse acréscimo de valor. No fim do ciclo, portanto, o valor se transformou. (Diz-se que o valor se valorizou). Uma parte dessa nova soma é usada para pagar os salários dos trabalhadores, os gastos com a reposição dos meios de produção, os impostos, etc. e restituir assim o valor inicial. A outra parte do valor, o “mais-valor” - ou mais-valia, isto é, o valor que foi produzido pelos trabalhadores sobre o valor tido no início e que não retornou a eles -, é apropriada pelo capitalista.

Segundo Marx, esse processo é eminentemente fetichista. Ou seja, conforme tudo isso se desenrola, as relações sociais mediadas pela troca de mercadorias/dinheiro ganham “vida própria”, parcialmente se autonomizam, se invertem e se voltam contra os trocadores do mercado (sejam eles capitalistas ou trabalhadores). É como se as mercadorias, o dinheiro, o capital, se tornassem os “sujeitos” do seu próprio processo de produção e reprodução, e as pessoas, nesse movimento, se convertessem em “objetos”, apêndices do sistema. (As pessoas adquiririam a condição de “coisas”). É como se, enfim, o valor fosse um atributo das coisas mesmas, e não o produto da atividade de seres humanos no seu processo de vir-a-ser histórico. (As coisas revestir-se-iam, assim, de “propriedades humanas”). Em síntese, o que é uma construção histórica (a formação do valor) passa a se realizar “automaticamente” e vista, nesse contexto, como “natural”.

Roswitha Scholz partirá disso. Acrescentará, contudo, a tese de que, nesse processo, as propriedades que num determinado contexto são relacionadas ao feminino, - que podem consistir, por exemplo, desde a educação dos filhos, passando pelo “trabalho” doméstico, até o “amor” - são dissociadas da produção do valor. Nas suas palavras, “de acordo com a teoria da dissociação-valor, [...] tanto as atividades reprodutivas femininas quanto os sentimentos, qualidades e atitudes a elas ligados ou associados [...] – esta a tese – são dissociados do valor” (Scholz, 2004). Desse modo, o valor-dissociação seria o princípio – ou a lógica - da forma social na qual se realiza o capital.

Roswitha Scholz afirma que, no capitalismo, a formação do valor não obedece apenas a um conjunto de processos econômico e políticos, mas diz respeito sobretudo a uma relação sócio-psíquica específica: “determinadas qualidades, atitudes e sentimentos avaliados como menores (sensualidade, emocionalidade, fraqueza de caráter e de entendimento, etc.) são projectados sobre 'a mulher' e dissociados pelo sujeito masculino, que se constrói como forte, realizador, concorrencial, eficiente e por aí fora. Por isso também tem de ser levada em consideração a correspondente dimensão sócio-psicológica, bem como a dimensão cultural-simbólica, com o que o patriarcado produtor de mercadorias (grifo nosso, DC) há-de ser apreendido como modelo civilizacional, e não apenas como um sistema econômico” (Scholz, 2004 b).

Parecem claras, assim, as conseqüências políticas de uma teoria desse tipo. O capital não é somente uma conjunto de processos econômicos e políticos de produção de mercadorias. É, sobretudo, um sistema patriarcal de formação de valor. E a sua superação em direção a uma comunidade humana emancipada exige que não se perca de vista essas duas dimensões do complexo em questão: a “sexual” (sócio-psíquica) e a econômico-política.

Scholz argumenta que o valor-dissociação é um processo histórico que acompanha o processo de “trabalho abstrato” (produção de mercadorias), por um lado, e “trabalho doméstico”, por outro. Nos tempos contemporâneos, o valor-dissociação apresenta novas características, diferentes das dos primórdios do capitalismo. Segundo a filósofa, “a tradicional família nuclear está a dissolver-se e, com ela, também a clássica relação moderna entre os sexos. Sob muitos aspectos, as mulheres – pelo menos na Alemanha – já se equipararam aos homens, por exemplo no que diz respeito às habilitações escolares e acadêmicas. Contrariamente ao velho ideal da dona de casa, as mulheres ora individualizadas são consideradas 'duplamente socializadas', ou seja, responsáveis tanto pela família como pela profissão.”

É justamente essa “dupla socialização”, que exige da mulher as tarefas de responder às exigências da sua profissão e da família, sem ter por seu trabalho o mesmo reconhecimento que os homens, que configura, não o desaparecimento do patriarcado, como querem algumas teorias, mas o seu asselvajamento. Nas palavras de Scholz (2004), “ao contrário dos homens, elas continuam a ser as primeiras responsáveis pelas atividades reprodutivas dissociadas, continuam a ganhar menos que os homens, têm menos oportunidades de ascensão etc. Portanto, com a era da globalização temos de lidar não com a abolição do patriarcado, mas apenas com o seu asselvajamento (grifo nosso, DC), uma vez que as instituições trabalho e família se diluem cada vez mais na crise do sistema de produção de mercadorias, sem que outras formas de reprodução seja colocadas em seu lugar.”

Em que pese as discordâncias que temos em relação a algumas das concepções teóricas de Roswitha Scholz (p. ex.: o conceito de classes sociais e a categoria de pós-modernidade), acreditamos que suas reflexões são absolutamente pertinentes para que compreendamos a íntima relação entre a dominação econômico-política exercida pelo capital e a discriminação de gênero predominante na sociedade burguesa. Scholz é uma autora que nos adverte de maneira precisa e contundente sobre como, em nossos dias, necessitamos compreender ambas as questões de maneira igual, e colocá-las conjuntamente na ordem do dia das nossas reivindicações históricas. Por isso, o convite que ora realizamos para a leitura e debate de suas formulações críticas.


Referências:

SCHOLZ, Roswitha. A teoria da dissociação sexual e a teoria crítica de Adorno. In: http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz9.htm (2004).

SCHOLZ, Roswitha. A nova crítica social e o problema das diferenças. In http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz3.htm (2004 b).

SINGER, Paul. O capitalismo: sua evolução, sua lógica e sua dinâmica. São Paulo: Moderna, 1987.

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