Roswitha Scholz quer compreender a relação entre o capitalismo e o patriarcado, entre a formação social onde predomina a produção do valor e a sujeição das mulheres realizadas pelos homens. Com esse intento, entabula uma investigação a fim de verificar as várias formas de expressão da dominação masculina nas sociedades ocidentais ao longo da história.
O patriarcado é, bem entendido, para Scholz, uma criação cultural e histórica. O patriarcado ocidental ligado à forma-valor teve sua origem, segundo a filósofa, na Grécia antiga, e persistiu durante o Império Romano. Nessas sociedades, as condições sociais vigentes fizeram surgir uma esfera pública que os homens tomaram como exclusividade sua.
“As mulheres atenienses viviam exiladas em casa, de onde deveriam sair o menos possível. A principal tarefa da mulher era conceber um filho; caso isso não ocorresse, sua vida teria sido em vão. A hipóstase da nova esfera pública, que exigia a conduta abstrata e racional, andava de mãos dadas com a degradação da sexualidade em geral. A ascensão do pensamento racional associou-se já desde o berço à exclusão das mulheres. A esfera pública, de quem também fazia parte a formação cultural, necessitava (na figura da esfera privada) de um domínio que lhe fosse contraposto, para o qual pudesse olhar do alto de sua posição. O homem precisava da mulher como 'antípoda', no qual ele projetava tudo o que não era admitido no âmbito público e nas esferas adjacentes. Assim, já na antiga Atenas, a mulher era tida e havida na conta de lasciva, eticamente inferior, irracional, intelectualmente pouco dotada etc. - atributos esses que permaneceram em vigor até à modernidade. ” (Cf. Scholz, 1992. Grifos nossos).
Na Idade Média, condições históricas diversas fizeram com que desmoronasse a antiga diferenciação entre esfera pública e privada. Scholz afirma que na sociedade medieval chegaram a subsistir resquícios “semimatriarcais” no seio do patriarcado, especialmente entre as tribos germânicas, onde as mulheres desfrutavam de uma espécie de “significação mística”. A própria figura da bruxa não era vista de antemão como negativa, pois considerava-se que, se a magia poderia resultar em algo “mau”, também poderia produzir algo “bom”. Nesse período, a mulher era juridicamente subordinada ao marido e podia até ser negociada como escrava ou cabeça de gado. Mas, podia, por outro lado, dedicar-se ao comércio e ocupar-se de um ofício fora do ambiente doméstico (Alta Idade Média). Além disso, possuía ainda certa autoridade no interior da família e tinha a chamada “última palavra” como administradora do lar.
No início da Idade Moderna, a condição das mulheres foi dificultada drasticamente. Isso se deveu ao “renascimento” do antigo mundo espiritual e às respectivas mudanças nos fundamentos da sociedade. “Embora os estágios evolutivos da Idade Média sejam bastante diversos no que respeita às mulheres, sendo muitas vezes contraditórios e avessos a uma imagem uniforme, podemos observar no início da Idade Moderna que a situação das mulheres piorou a olhos vistos, como dão prova as repressões por ela sofridas em todos os âmbitos sociais. Quanto mais se desenvolvem uma esfera pública supra-regional, uma jurisdição estatal e uma ciência institucionalizada, mais nítido se torna o papel marginal atribuído à mulher.” (Becker, apud Scholz, 1992. Grifos nossos).
As transformações desse período já deixavam entrever o capitalismo nascente e a sociedade do valor. O “feminino” sofreu aí uma campanha da aniquilação. Se na figura da bruxa, que vigorou na etapa histórica anterior, ela mantinha uma relação “simpática” com a natureza (e até fazia as vezes de natureza, em certo sentido), agora, com o predomínio da racionalidade do homem moderno, tudo isso precisava ser reconfigurado. Não que a mulher perdesse essa associação com o místico e o natural. Mas, como o próprio “natural” era concebido de forma diferente, como objeto de domínio, também a mulher precisava ser dominada. A Igreja contribuía, nesse contexto, para a sujeição do feminino. Como explica Scholz (1992),
“Não se tratava apenas do fato de os homens expropriarem brutalmente a ciência medicinal empírica das mulheres; antes, o que estava em jogo era um projeto fundamentalmente diverso de relacionamento com a natureza. A fundamentação teórica é fornecida sobretudo pelo chamado Malleus maleficarum (O martelo das bruxas), de 1487, redigido pelos padres H. Kraemer e J. Sprenger. Pais da Igreja, poetas e pensadores antigos eram citados no fito de tornar plausível a inferioridade da mulher e sua predisposição à bruxaria e ao pacto com o demônio. Imputavam-se mais uma vez às mulheres atributos como inconstância, concupiscência, raciocínio débil, extravagância, perfídia e credulidade.” (Grifos nossos)
A ética protestante nesse período também não foi nada benevolente com as mulheres. Para Scholz, a Reforma se empenhou em domesticar a mulher, fazendo com que ela levasse uma vida serena, amável, humilde, controlada pelo patriarcado e encerrada “no claustro do casamento”. (Lutero teria sido um dos principais responsáveis por esta concepção do feminino).
A era do Iluminismo, por sua vez, deu novo impulso a essa “domesticação”. Apesar do fato de que alguns dos filósofos da época defendiam o projeto de uma emancipação igualitária entre os gêneros, tais concepções não foram capazes de se impor na prática, em virtude do peso do tipo de processos sociais nos quais estavam inseridos, “a saber, a progressiva socialização pelo valor.” (Cf. Scholz, 1992. Grifos nossos). Este tipo de socialização exigia, segundo a filósofa, uma certa diferenciação dos papéis patriarcais entre os sexos, onde a mulher deveria destinar-se, “por natureza”, a ser não mais que esposa, dona-de-casa e mãe.
Note-se que, desde o principio da Idade Moderna, verifica-se a persistência e o acentuamento entre a esfera do público e do privado e a restrição da atividade da mulher a este último domínio. Scholz afirma que o período do Iluminismo em especial atribuiu a essa divisão uma nuance peculiar: a polarização de caráter dos sexos.
“Na medida em que à mulher se imputavam novas qualidades como passividade e emotividade (se bem que agora restritas ao círculo familiar burguês) e ao homem, por sua vez, a ação e a racionalidade no espaço público da incipiente sociedade industrial, ocorreu uma "polarização de caráter entre os sexos". A mulher e a família deviam converter-se em pólos de oposição ao mundo externo cada vez mais dominado pela racionalidade instrumental. Cabia à mulher não apenas ser uma dona-de-casa exemplar, mas também tornar agradável a vida do marido com sua assistência, seus cuidados e seu interesse. Essas tarefas adicionais representavam uma inovação. À diferença dos primeiros patriarcados da Antiguidade, presos à forma-valor, em que o homem ainda encontrava sua satisfação na própria esfera pública, elas são testemunha do quanto a racionalidade patriarcal e do valor fugiu ao controle do homem nesse meio tempo, do quanto ele depende agora de um 'bem-estar doméstico' propiciado pela mulher.” (Grifos nossos).
No século XIX, as cisões entre o feminino e o masculino e entre o privado e o público se aprofundam. A “vocação” materna da mulher da sociedade burguesa foi acentuado ainda mais. O sujeito feminino recebeu a tarefa precípua de manter a família em equilíbrio, realizar os afazeres domésticos e dar cabo de tudo que tivesse um cunho mais pessoal na vida conjugal, ao passo que o homem, que tinha no âmbito público seu locus “natural” de atuação realizadora, foi talhado para atividades produtivas em múltiplos campos: ciência, tecnologia, cultura, etc.
O século XIX, contudo, assistiu a proliferação de vários movimentos feministas (muitos deles burgueses) que exigiam a modificação das condições de existência das mulheres. Isso se prolongou no século XX e, especialmente em sua segunda metade, a relação entre os sexos dava a impressão de sofrer grandes mudanças, com as mulheres transcendendo o espaço doméstico/privado no qual os homens queriam lhe confinar a todo custo.
Na contemporaneidade, então, a situação das mulheres estaria melhor? Aqui, há que se ter um pouco de cuidado e atenção para ir além do aparente. Para Scholz, o que se verifica hoje é, na verdade, uma contradição muito mais aguda do que a que ocorria em épocas anteriores. Para entender como isso se dá, é preciso que nos detenhamos sobre sua teoria do valor-dissociação. De que trata tal teoria? A filósofa parte de uma compreensão crítica das concepções de Marx sobre o capital.
De acordo com o pensador alemão, o capital é um sistema que se realiza pela valorização do valor. Para tanto, mercadorias precisam ser produzidas e trocadas no mercado. É necessário, pois, que elas tenham então um valor de troca. No mercado, as trocas de mercadorias só se realizam por valores equivalentes. Ou seja, uma mercadoria só pode ser trocada por outra de mesmo valor. Mas o que é que determina o valor de uma mercadoria? Para Marx, não são é nenhuma característica física específica - capaz de satisfazer certa necessidade humana - (isto é, o seu valor de uso) que determina esse valor. O valor das mercadorias só pode ser determinado pela presença de um elemento que seja comum a todos os tipos de mercadorias. Que elemento é esse? É o trabalho. Nas palavras de Marx, “quando consideramos as mercadorias como valores, vemo-las somente sob o aspecto de trabalho social realizado, plasmado ou, se assim quiserdes, cristalizado. […] os valores relativos das mercadorias se determinam pelas correspondentes quantidades ou somas de trabalho invertidas, realizadas, plasmadas nelas. As quantidades correspondentes de mercadorias que foram produzidas no mesmo tempo de trabalho são iguais. Ou, dito de outro modo, o valor de uma mercadoria está para o valor de outra, assim como a quantidade de trabalho plasmada numa está para a quantidade de trabalho na outra” (1978, p. 74-5).
Para produzir capital, então, o capitalista vai ao mercado e compra matéria-prima, instrumentos de trabalho e força de trabalho (que só pode ser fornecida por trabalhadores dispostos a vendê-la). Essas coisas (que são todas mercadorias) possuem um certo valor determinado (valor este que é definido pela quantidade de tempo de trabalho social passado plasmado nessas mercadorias, inclusive na força de trabalho). Quando os trabalhadores colocam em movimento esses meios de produção, o produto que daí surge possui um quantum de valor maior (porque no produto foram invertidas mais horas de trabalho social) do que aquele presente nas mercadorias no início do ciclo. Este novo valor é trocado no mercado por uma soma de valor exatamente equivalente à sua. Uma parte desse valor em dinheiro obtido pela venda da mercadoria é destinada a repor as mercadorias originais (meios de produção e força de trabalho). A outra parte do valor (a mais-valia) é apropriada pelo capitalista. Como a essência do sistema do capital é produzir valores para serem trocados no mercado, subordinando para esse fim as próprias necessidades dos sujeitos históricos (diz-se que o valor de troca subsume o valor de uso), o processo de formação do valor passa a funcionar por si mesmo, fazendo das pessoas meros apêndices da produção das mercadorias. Então, é como se o próprio capital se torna-se o “sujeito” e as pessoas os “objetos” desse circuito. A este fenômeno Marx denominou de fetichismo. O processo de realização do valor é eminentemente fetichista, pois o capital adquire propriedades de sujeito (se “humaniza”) e as pessoas adquirem características de objeto (se “coisificam”).
No geral, Roswitha Scholz concorda com essa concepção de Marx, embora acredite que, na pós-modernidade, o trabalho abstrato (que é o que gera valor de troca, ao contrário do trabalho concreto, que é o que dá à luz valores de uso), esteja em “crise”. Isso não invalida, contudo, a teoria de que o capital é essencialmente um mecanismo centrado no valor. A filósofa acrescentará apenas que esse processo envolve especificação sexual. Ou seja, é um determinado patriarcado que produz as mercadorias e, nesse movimento, projeta sobre as mulheres certas características que serão dissociadas da formação dos valores. Isto já era visível no patriarcado grego (que mantinha atividades comerciais mercantis). E mais ainda do Renascimento em diante, quando os processos que envolviam a realização do capital foram novamente despontando no horizonte histórico e se consolidando a seguir. É nesse sentido, então, que “o valor é o homem, não o homem como ser biológico, mas o homem como depositário histórico da objectivação valorativa. Foram quase exclusivamente os homens que se comportaram como autores e executores da socialização pelo valor. Eles puseram em movimento, embora sem o saber, mecanismos fetichistas que começaram a levar vida própria, cada vez mais independente, por trás de suas costas (e obviamente por trás das costas das mulheres). Como nesse processo a mulher foi posta como o antípoda objectivo do 'trabalhador' abstracto - antípoda obrigado a lhe dar sustentação feminina, em posição oculta ou inferior -, a constituição valorativa do fetiche já é sexualmente assimétrica em sua própria base e assim permanecerá até cair por terra.”(Cf. Scholz, 1992. Grifos nossos).
Essa dissociação na formação do valor foi responsável por uma divisão das esferas sociais entre público e privado, onde a primeira foi tomada como o campo “natural” de atuação dos homens, e a última, das mulheres. Na segunda metade do século XX, as mulheres conseguiram transcender em parte a clausura do lar e do ambiente privado imposta a elas pelos homens. Contudo, em nossos dias, onde, na visão de Scholz, a família tradicional nuclear tende a se dissolver, as mulheres ainda aparecem numa condição que ela chama de “duplamente socializadas”, isto é, responsáveis tanto pela família como pela profissão. Isso significa que as mulheres ainda aparecem como as principais responsáveis pelas atividades “reprodutivas” (próprias ao ambiente familiar). Juntamente com isso, tem de desempenhar atividades profissionais nas quais ganham menos, recebem menos oportunidades de promoção e assim por diante.
Por essa razão, segundo a filósofa alemã, é errôneo dizer que em nossos dias o patriarcado se enfraqueceu. Para Roswitha Scholz, ele na verdade se asselvajou. Como superá-lo? Ora, se se entende que esse patriarcado observado em nossos dias está relacionado com um tipo de socialização que tem na realização do valor o seu cerne, a superação da dominação de gênero exige também que se supere o tipo de sociabilidade que se vincula à produção de mercadorias, à produção de valor. Nas suas palavras:
“A fim de enfrentar a crise de modo produtivo, há que se constituir uma 'esquerda feminista' que tenha consciência tanto subjetiva e pessoal quanto objetiva e social do mecanismo de cisão [entre os gêneros]. Um feminismo nesses moldes não se pode dar ao luxo de restringir-se às mulheres e ao movimento feminista. Tanto homens quanto mulheres têm de compreender que 'nossa' sociedade é determinada pelo patriarcado e pelo valor. [...] além disso, é urgente a luta feminista de ambos os sexos contra as formas de existência sociais, objetivadas e reificadas das cisões patriarcais produzidas pelo valor. A superação do patriarcado é ao mesmo tempo a superação da forma fetichista da mercadoria, pois esta é o fundamento da cisão patriarcal. O objectivo revolucionário seria portanto um grau mais elevado de civilização, no qual homens e mulheres sejam capazes de fazer pelas próprias mãos sua história, para além do fetichismo e de suas atribuições sexuais.” (Scholz, 1992. Grifos nossos).
O ensaio de Roswitha Scholz é, evidentemente, muito mais rico e cheio de nuances do que essa parca exposição que fizemos. Fica o convite para a leitura de seus textos, muitos dos quais estão à disposição, em português, na internet, no site do grupo intelectual do qual Roswitha faz parte, o Exit (http://obeco.planetaclix.pt/).
Referências:
MARX, Karl. Salário, preço e lucro. In MARX, Karl, Os pensadores (Seleção de textos de José Arthur Gianotti). São Paulo: Abril Cultural, 1978.
SCHOLZ, Roswitha. O valor é o homem – Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos. (1992) In http://obeco.planetaclix.pt/rst1.htm
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