domingo, 8 de novembro de 2009

Serão revolucionários os favelados?

O mundo está se favelizando. Esta é a conclusão que se chega ao se ler o artigo do sociólogo norte-americano Mike Davis, publicado há algum tempo atrás na revista New Left Review. De acordo com Davis, o que se observa hoje é que, como resultado dos processos econômicos e políticos do capitalismo global, a maioria das cidades do hemisfério sul tornou-se semelhante à Dublin vitoriana, ou seja, um amontoado de cortiços. As análises de Davis estão baseadas em um relatório publicado em 2003 pelo Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas (UN-Habitat), intitulado The challenge of slums [O desafio das favelas] (daqui em diante apenas Slums), que revela pela primeira vez uma imagem verdadeiramente global da pobreza urbana.

Segundo Davis, o relatório é interessante não só pela abrangência e pela competência técnica com que foi elaborado. Ele é incomum também pela honestidade intelectual. “Um dos pesquisadores contou-me que ‘os tipos de Consenso de Washington (Banco Mundial, FMI, etc.) sempre insistiram em definir os problemas das favelas globais não como resultado da globalização e da desigualdade, mas como resultado do mau governo’ (grifos de Davis). No entanto, o novo relatório rompe a seriedade e a autocensura tradicionais da ONU para condenar abertamente o neoliberalismo, em especial os programas de ajuste estrutural do FMI” (cf. Davis, 2006, 107). O relatório mostra que o resultado dessas ações políticas e econômicas nos últimos vinte anos aumentaram a pobreza urbana e as favelas, e elevaram, por conseguinte, a desigualdade econômica e social.

As condições de vida nas favelas são: excesso de população, habitações pobres ou informais, acesso inadequado à água potável e ao esgoto sanitário e insegurança da posse da terra. O relatório Slums estima que, em 2001, havia 921 milhões de moradores de favelas, no mundo. Eles constituem um terço da população urbana mundial. Pelo menos metade dessa população tem menos de vinte anos. As previsões mais sombrias são de que, em algumas décadas, os habitantes de favelas passem a constituir metade da população urbana mundial.

Como afirma Davis, “os maiores percentuais de moradores de moradores de favelas do mundo são da Etiópia (espantosos 99,4% da população urbana), Tchade (também 99,4%), Afeganistão (98,5%) e Nepal (92%)” (Davis, 2006, 199). Em cidades como Déhli, o absurdo se manifesta em situações como a existência de “favelas dentro de favelas”. E, no Cairo, as pessoas recém-chegadas à cidade podem se acomodar em confortáveis espaços nos telhados, criando, assim, favelas no ar.

Há cerca de 250 mil favelas na Terra. Nas cinco maiores cidades do sul da Ásia (Karachi, Mumbai, Délhi, Kolkata e Daca) existem aproximadamente 20 milhões de pessoas distribuídas nas cerca de 15 mil favelas. Na África, a situação é semelhante, só que pior. No estado de Lagos, na Nigéria, aproximadamente dois terços dos 3577 km² de superfície do estado estão cobertos de barracos e favelas. O estado de Lagos é constituído de um corredor de 70 milhões de favelados que se estende por entre as cidades de Abidjan e Ibadan, provavelmente a maior área de solo coberta de pobreza urbana em nosso planeta. Estimados 57% dos africanos urbanos não tem acesso a saneamento básico. Em Nairóbi, no Quênia, os pobres recorrem freqüentemente a “banheiros voadores” (defecar num saco plástico).

Não bastasse isso, por toda parte as pessoas são obrigadas a habitar terrenos perigosos e inapropriados para a construção – encostas, margens de rios, proximidades de refinarias, indústrias químicas, depósitos de lixo tóxico e nas margens de ferrovias e auto-estradas. Como conseqüência, “a pobreza ‘construiu’ um problema de desastre urbano de freqüência e alcance sem precedentes, como exemplificam as inundações crônicas em Manila, Daca, e Rio de Janeiro; as explosões de dutos na Cidade do México e em Cubatão (no Brasil); a catástrofe de Bhopal, na Índia; a explosão de uma fábrica de munição em Lagos e os deslizamentos fatais em Caracas, La Paz e Tegucicalpa. Além disso, as comunidades de pobres urbanos sem direito a voto são vulneráveis às explosões súbitas de violência estatal, como na famosa destruição, em 1990, da favela praiana de Maroko, em Lagos (‘uma agressão à paisagem para a comunidade vizinha de Victoria Island, fortaleza dos ricos’), ou a demolição, em 1995, sob clima congelante, da grande cidade de ocupantes ilegais de Zhejiangcun, nos arredores de Beijing” (Cf. Davis, idem, 202). Miséria, então, rima com favela, que, por sua vez, rima com tragédia.

A população de favelados cresce, portanto, vertiginosamente ao redor do mundo. Sua existência revela o predomínio de um aspecto peculiar do trabalho no contexto da contemporaneidade: o trabalho informal. As cidades, em verdade, se converteram, ao longo do século XX, em depósitos de lixo que concentram o “excedente de população” que tem que sobreviver mediante trabalho realizado nos mais diferentes setores da informalidade, sem especialização, sem amparo de legislação e com baixíssimos salários. E como garante o relatório Slums, “O crescimento d[este] setor informal é [...] resultado direto da liberalização” (apud Davis, idem, 209).

O número de trabalhadores informais no mundo atinge cifras espantosas: um bilhão de pessoas (número que se sobrepõe, mas não é idêntico ao dos moradores das favelas). O setor informal equivale a dois terços da população economicamente ativa do mundo em desenvolvimento. 57% da força de trabalho latino-americana está nesse setor. Na Indonésia, um dos países mais populosos do mundo, essa cifra chega a 65%. Na África, um pouco menos: 60%. E na Ásia, “apenas” 40%. Em algumas regiões do planeta, como nas cidades sub-saarianas, o “emprego formal” praticamente deixou de existir. Slums estima, ainda, que, na África, nos próximos dez anos, 90% das vagas urbanas de trabalho virão do setor informal. E a tendência macro-econômica real do trabalho informal é a reprodução da pobreza absoluta.

Pode-se esperar dessas pessoas miseráveis, marginalizadas e esquecidas algum movimento radical e transformação em relação à ordem política, social e econômica dominante? Que pensam elas? Em que crêem? Quais as aspirações, expectativas e sonhos que alimentam? Seriam as favelas vulcões em erupção, prestes a derramar sua lava incandescente por sobre a sociedade burguesa do século XXI? Ou manterão seus habitantes um comportamento mais parecido com os processos de competição darwiniana pela vida, lutando e devorando-se uns ao outros, sobrevivendo dos restos e resíduos que conquistam? Enfim, que se pode esperar desses sujeitos e quais projetos cultivam?

Davis não hesita em dizer que, pelo menos por enquanto, “Marx cedeu o palco histórico a Maomé e ao Espírito Santo” (Davis, idem, 214), ou seja, o materialismo revolucionário não é a visão de mundo que tem ganhado espaço entre os trabalhadores informais da sociedade das favelas. O que prolifera, hoje, é uma concepção religiosa do mundo, dividida entre o islamismo populista e o cristianismo pentecostal (cf. Davis, idem, ibidem). Seria este fato motivo para desesperar de transformações mais fundamentais da estrutura social, política e econômica em que vivemos?

É preciso esclarecer que estas visões de mundo têm uma grande diferença: enquanto o islamismo populista enfatiza a continuidade da civilização e prega a solidariedade de fé entre as classes – assumindo, assim, uma postura complacente com o capitalismo globalizado –, o pentecostalismo mantém uma identidade fundamentalmente exílica. Como nos assegura o sociólogo norte-americano, “sua premissa básica é a de que o mundo urbano é corrupto, injusto e impossível de reformar” (Davis, idem, 218). Em outras palavras, a postura implícita dessas pessoas em relação ao mundo profano é de negatividade.

Que se pode esperar, então, dessas comunidades em que prepondera uma religiosidade capaz de fazer o mundo parecer como um lugar hostil e que se deve recusar? Acreditamos que é perfeitamente cabível considerar essas comunidades como uma resistência efetiva contra o sistema econômico, social e político vigente. Em verdade, como afirmou o estudioso Jean Comaroff (citado por Davis, idem, ibidem), elas constituem mesmo uma resistência “mais radical” do que a atividade política sindical formal.

Portanto, se é assim, não poderíamos apostar nelas, nas comunidades de favelados, como um terreno fértil para concepções que, em breve, poderão vir a exigir transformações efetivas e profundas da sociedade de capitalismo globalizado que hoje se estabelece?

Esta parece ser a aposta do filósofo esloveno Slavoj Zizek, em um recente livro: Às portas da revolução, escritos de Lênin de 1917. No prefácio da obra, comentando o crescimento explosivo das favelas ao redor do mundo e considerando este fato como o possível “evento geopolítico crucial do nosso tempo” (Zizek, 2005, 20), visto que, nas favelas, as pessoas estão à margem do controle do Estado - ainda que vivam incorporadas na economia global de várias formas – Zizek se pergunta: “não seriam eles [os bairros e favelas miseráveis das megalópoles da atualidade] os primeiros ‘territórios libertados’, as células de futuras sociedades auto-organizadas?” (idem, ibidem, 17). Ou seja, não seriam esses espaços protótipos de uma comunidade alternativa, que rejeita completamente o espaço do Estado em vigor? Não seria esse, agora, o novo eixo da luta de classes? Mais ainda: “seria a ‘classe simbólica’ [isto é, a classe dominante] inerentemente dividida, a ponto de podermos fazer uma aposta emancipatória na coalizão entre os moradores dos bairros miseráveis e a parte ‘progressista’ da classe simbólica?” (idem, ibidem, 21).

Para Zizek, as favelas do mundo contemporâneo, com seus trabalhadores informais, religiões pentecostais, mendigos, vagabundos e párias de todo tipo, são semelhantes a Canudos, comunidade alternativa existente no sertão brasileiro durante alguns anos da última década do século XIX. “Canudos, liderado por um profeta apocalíptico, era um espaço utópico sem dinheiro, propriedade, impostos ou casamento [...] Tudo deve ser defendido neste caso, até mesmo o ‘fanatismo’ religioso. É como se, nesse tipo de comunidade, o outro lado benjaminiano do progresso histórico, o dos derrotados, adquirisse seu próprio espaço. A utopia existiu ali por um breve período [...]. Até agora, tais comunidades surgiram de tempos em tempos como um fenômeno passageiro, pontos de eternidade interrompendo o fluxo do progresso temporal [...]” (idem, ibid. 17).

Zizek considera que os ecos de Canudos são perfeitamente identificáveis nas favelas contemporâneas. Caberiam aqui, por conseguinte, aquelas palavras de Walter Benjamin, apresentadas na segunda tese sobre o Conceito de História, que parecem nos questionar a nós, os vivos, se, por acaso, “não nos afaga levemente um sopro de ar que envolveu os que nos precederam? Não ressoa nas vozes a que damos ouvido um eco das que estão, agora, caladas?”. Não guardaria, então, o nosso tempo estilhaços de um passado que importa, agora, interpretar? Quem eram os insurgentes do passado? Como viviam aqueles que, em outros tempos, ao perceber que a exceção se tornara a regra, tentavam eles mesmos criar um verdadeiro estado de exceção?

Nesse sentido, é interessante observar a explicação de Hobsbawm sobre a situação de urbanização, pobreza e segregação no contexto imediatamente anterior às revoluções de 1848, na Europa: “Em nosso período [primeiras décadas do século XIX], o desenvolvimento urbano foi um gigantesco processo de segregação de classes, que empurrava os novos trabalhadores pobres para as grandes concentrações de miséria alijadas dos centros de governo e dos negócios, e das novas áreas residenciais da burguesia. A divisão das grandes cidades européias, de caráter quase universal, em zonas ricas localizadas a oeste e zonas pobres localizadas a leste se desenvolveu neste período. E que instituições sociais, exceto a taverna e talvez a capela, foram criadas nestas novas aglomerações de trabalhadores, a não ser pela própria iniciativa dos trabalhadores?” (Hobsbawn, 2002, p. 283-4). E que fizeram estes segregados, derrotados, oprimidos miseráveis? “A alternativa da fuga ou da derrota era a rebelião. A situação dos trabalhadores pobres, e especialmente do proletariado industrial que formava seu núcleo, era tal que a rebelião era não somente possível mas virtualmente compulsória. Nada foi mais inevitável na primeira metade do século XIX do que o aparecimento dos movimentos trabalhista e socialista, assim como a intranqüilidade revolucionária das massas. A revolução de 1848 foi sua conseqüência direta.” (Hobsbawm, idem, p. 285).

A rebelião, a revolta, a insurgência, a revolução, aparecerão, então, como uma alternativa aos que não quiserem ser passivamente esmagados pelo sistema. Será impossível de imaginar revoluções futuras num mundo onde um bilhão de pessoas vive com cerca de um dólar por dia? Não há, porventura, uma correspondência entre a nossa situação de miséria e marginalidade e a dos que viveram antes de nós? Não somos também oprimidos como os de outrora? Não resistimos, também, ativamente? Não alimentamos ora velada, ora abertamente, um sonho de libertação? Não estamos submetidos a uma situação de exceção que se converteu em regra? Não estamos tentando, ainda que de forma e subterrânea e imperceptível ao vulgo, instaurar aquilo que Benjamin chamou de "verdadeiro estado de exceção"?

Se assim é, um encontro secreto está marcado entre as gerações passadas e a nossa. Se assim é, torna-se necessário que agora essa relação entre o passado e o presente se torne visível - ainda que esta seja uma visibilidade fugaz, tal qual a de um raio que reluz efêmero numa noite de tempestade. Essa luz momentânea nos permitirá a organização das energias críticas e uma melhor locomoção dentro dessa tempestade ininterrupta que é a história. Temos que ter bem presente essa realidade, pois, ao que parece, o futuro passa por aí.

Referências:

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. in Löwy, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio - uma leitura sobre as teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo, Boitempo, 2005.

DAVIS, Mike. Planeta de favelas. in SADER, Emir (org.). Contragolpes. Seleção de artigos da New Left Review. São Paulo: Boitempo, 2006.

HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções. 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, 16ª ed.

LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio - uma leitura sobre as teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo, Boitempo, 2005.

ZIZEK, Slavoj. Às portas da revolução. Escritos de Lênin de 1917. São Paulo: Boitempo, 2005

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