O processo de formação das sociedades se realiza, muitas vezes, a partir de conflitos encarniçados, cruéis, violentos, e têm como um de seus produtos o fato de que os vencedores passam a contar essa história à sua maneira. Do seu ponto de vista - o de quem teve sucesso na luta -, a história aparece como a sucessão de grandes homens, de grandes feitos, de grandes batalhas, de grandes conquistas, de grandes realizações a serem cultuadas. Enfim, uma história de grandezas, de proezas, de prodígios.
Os monumentos que surgem, aqueles que contemplamos todos os dias pelas ruas, as estátuas, os bustos, os arcos do triunfo, são erigidos sempre em homenagem a estes, os vitoriosos. Com tal tipo de criação cultural, buscam estabelecer sobre a coletividade um certo tipo de memória, de representação, de ideologia estruturada em torno de um significado preciso: todos nós devemos admirar os vencedores, cultuá-los, homenageá-los e tentar repetir as suas façanhas.
Dessa forma, os vencedores estabelecem a sua imagem como padrão a ser seguido, e camuflam, de resto, a concepção de mundo onde a sociedade aparece não como uma sucessão de batalhas, não como a reprodução de desigualdades entre grandes e pequenos e entre fortes e fracos, não como perpetuação da competição entre grupos antagônicos, mas como uma reunião de iguais, cada qual como sujeito do processo social, com dignidade, com honra, com múltiplas possibilidades inerentes a si.
Como numa comuna, por exemplo. Comunas existiram em vários lugares do mundo, em várias formas, ao longo da história. Os primeiros cristãos viveram por trezentos anos em sociedades comunais. Na Europa, durante a Idade Média, houve sociedades onde a propriedade era coletiva, onde a organização social e política era da responsabilidade de todos. Na Alemanha, tinham o nome de “associações de marca”. E não existiram só ali. Também na França, na Inglaterra, na Escandinávia, na Rússia. No Brasil, Palmares foi uma comuna. Alguns consideram que Canudos também. E houve até quem achasse que as Missões Jesuíticas foram algo muito próximo a isso.
Contudo, os vencedores da história, aqueles que herdaram o poder de seus ancestrais, querem dar continuidade à concepção de que, enquanto o gênero humano existir, sempre haverá quem manda e quem obedece, quem tem virtude e quem não tem, quem é dono de alguma coisa e quem não é dono de nada, quem é o modelo a ser seguido e quem é o exemplo a ser negado. Querem acabar com a idéia de uma sociedade que supera os seus conflitos e que vive de forma igualitária e com diversidade.
Os relatos históricos estruturados a partir dessa perspectiva pretendem que em nossa memória prevaleça a imagem do vencedor, e que este se nos apresente como um arquétipo que deve se expressar em nós, por nossos atos. Querem que lembremos somente deles, e que passemos a imitá-los com amor e devoção.
Mas é possível afirmar uma desconfiança em relação a essa idéia e propor que também os vencidos merecem recordação e consideração. Todos os vencidos! Todos os que não se encaixaram nos padrões, que não cumpriram as expectativas, que fracassaram diante dos objetivos. Os que sucumbiram, afinal.
Defendo que também estes têm valor. Os que não tiveram seus nomes escritos nos livros de história, os que não se enquadraram nos padrões de sucesso, de beleza, de normalidade, os que nunca foram o ideal, mas que cultivaram sinceramente a esperança de uma vida digna e feliz.
Quero, então, propor, nesta noite, um brinde. Um brinde aos que não saíram na fotografia, aos que foram esquecidos, aos derrotados da história. Aqueles, principalmente, que sucumbiram diante do processo de formação da Civilização Ocidental. Os negros de várias etnias da África, os muitos grupos indígenas da América, os nativos da Ásia, as mulheres que ao longo da história lutaram para que as de agora pudessem ter direitos – mas que infelizmente ainda hoje não desfrutam de uma emancipação genuína e completa -, os homossexuais perseguidos e discriminados, todos os trabalhadores, das várias partes do mundo, que no passado deram a vida para que os trabalhadores de hoje tivessem uma existência mais bonita e justa.
Um brinde a todos os que batalharam, labutaram, se organizaram, todos os que planejaram, que cultivaram a expectativa de emancipação, todos os que morreram sem ver seus sonhos realizados, todos os oprimidos por tiranos, os escravizados, todos os que foram esquecidos nas prisões, nos quartos de pensões, nos leitos de hospital, os doentes e os deformados, os paralíticos, os deficientes, os aleijados, todos os que mendigaram pelas ruas, os que sofreram de doenças incuráveis e prematuras, os mutilados, os queimados nas fogueiras, os órfãos, os torturados, os desempregados, os perseguidos, os que se suicidaram, os que sofreram na carne o ódio e a violência alheia, os viciados em drogas, os que experimentaram a angústia da solidão, a melancolia do abandono, do desprezo, o infortúnio da pobreza, da miséria, da feiúra e da fome, todos os que foram repudiados, denegridos, raptados, desterrados, exilados, todos os que deram o seu melhor e mesmo assim perderam.
Quero que pensem por um momento em todas essas pessoas cujo nome não sabemos. Quero que mentalizem sua luta, suas aspirações, seus sonhos mais íntimos de desfrutar uma existência verdadeiramente humana e digna, com amor, com afeto, com consideração. Quero que pensem nelas, em seu desespero solitário, durante um breve segundo.
Afirmo que, pela eternidade desse segundo, um sopro do ar frio que envolveu a esses que nos precederam roçará de leve o nosso rosto, e, assim, enquanto esse instante existir, tais pessoas estarão aqui, conosco, e se sentirão redimidas e salvas.
Ergamos nossas taças! Hoje, vamos celebrar a derrota. Um brinde, então, a todos os que se encontram sem pátria, sem lar, sem conforto, sem amparo, sem esperança, sem comida, sem trabalho, sem saúde, sem educação, sem liberdade, sem independência, sem carinho, sem afeto, sem amanhã. Um brinde aos derrotados da história!
Tim-tim!
quinta-feira, 31 de dezembro de 2009
sexta-feira, 25 de dezembro de 2009
Rascunho 1 - texto Agamben
Em 1921, Walter Benjamin escreveu um brevíssimo artigo filosófico que viria a conhecimento público somente após sua morte: “O capitalismo como religião”. Nesse texto, o filósofo procurava distinguir algumas das características essenciais da sociedade em que vivia. O capitalismo era, pois, essencialmente cultual. Nesse meio, o dinheiro, a riqueza, etc., seriam as divindades às quais se deveria impreterivelmente servir. Em segundo lugar, o culto preconizado pela religião capitalista não possuiria um dia ou uma ocasião própria para sua realização. Ele seria, de fato, permanente: “Não há dia que não seja de festa, no terrível sentido da ostentação sagrada, da tensão extrema que reside no adorador”, afirmou Benjamin. O terceiro traço do capitalismo como religião é que o culto que esse sistema produz é culpabilizador, mas sem a possibilidade de expiação. Como conseqüência, as pessoas que vivem sob esse jugo são tomadas de um desespero renitente e cruel.
No período em que escreveu seu ensaio, apesar de receber influência e ter a amizade do filósofo marxista alemão Ernst Bloch, Benjamin estava mais próximo politicamente das concepções românticas e libertárias de Gustav Landauer e de Georges Sorel. Mais tarde, em 1924, o autor de Passagens tomou contato com a obra de Lukács Historia e consciência de classe, aproximou-se das concepções de Marx, deixou de condenar o capitalismo como religião e passou a criticar o culto fetichista da mercadoria, analisando as galerias parisienses como “templos do capital mercadológico” (Cf. Löwy, 2007, p. 180).
Em nossos dias, Giorgio Agamben retoma e desenvolve aquelas reflexões benjaminianas, dando a elas, entretanto, uma fundamentação um pouco diferente. Sim, diz ele, o capitalismo possui cultos; sim, esses cultos são permanentes; e sim, a culpabilização que gera não oferece possibilidade de redenção, e generaliza, por isso, o desespero entre os homens e mulheres que vivem no seu interior. Mas o capitalismo deve ser identificado com uma religião, sobretudo, por estabelecer uma cisão em em sua própria substância que cria a esfera do sagrado em contraposição com o mundo humano. O filósofo italiano vai buscar nos escritos dos juristas romanos a fundamentação teórica para sua reflexão. Na Roma antiga,
“Sagradas ou religiosas eram as coisas que de algum modo pertenciam aos deuses. Como tais, elas eram subtraídas ao livre uso e ao comércio dos homens, não podiam ser vendidas nem dadas como fiança, nem cedidas ao usufruto ou gravadas de servidão. Sacrílego era todo ato que violasse ou ou transgredisse esta sua especial indisponibilidade, que as reservava exclusivamente aos deuses celestes (nesse caso eram denominadas propriamente 'sagradas') ou infernais (nesse caso eram simplesmente chamadas 'religiosas').” (Agamben, 2007, p. 65).
Religião é, então, aquilo que retira coisas, lugares, animais ou pessoas do contato com o vulgo e as transfere para uma dimensão à parte da existência. Não há religião sem separação, diz Agamben, e todo tipo de separação feita nesses moldes contem algo de religioso. Nesse contexto, o sacrifício é o dispositivo que realiza a transposição de um determinado ente do mundo dos homens para as regiões divinas.
Muitas pessoas acreditam que o termo religio deriva de religare (isto é, o que une o humano e o divino), mas essa relação não é verdadeira, afirma Agamben. Religio deriva, de fato, de relegere que significa precisamente “a atitude de escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as relações com os deuses, a inquieta hesitação (o 'reler') perante as formas – e as fórmulas – que se devem observar a fim de respeitar a separação entre o sagrado e o profano” (Agamben, 2007, p. 66). Se se compreende essa questão, perceber-se-á então que religião não é o que une o mundo humano e o mundo divino, mas exatamente aquilo que os separa e reforça a sua distinção. O que restitui verdadeiramente as coisas sagradas ao domínio humano e supera a separação entre essas duas esferas não é o escrúpulo e a deferência em relação ao divino, mas uma certa atitude de “negligência” para com as normas que a religião estabelece. É esta atividade que Agamben, na esteira dos juristas romanos, denomina de profanar: “Profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso particular.” (Agamben, 2007, p. 66). Uma das maneiras de se fazer esse “uso particular” do sagrado e burlar o conjunto de normas que realizam a separação entre mundo humano e divino é o jogo.
Por que o jogo?
“Brincar de roda era originalmente um rito matrimonial; jogar com bola reproduz a luta dos deuses pela posse do sol; os jogos de azar derivam de práticas oraculares; o pião e o jogo de xadrez eram instrumentos de adivinhação. Ao analisar a relação entre jogo e rito, Émile Benveniste mostrou que o jogo não só provém da esfera do sagrado, mas também, de algum modo, representa a sua inversão. A potência do ato sagrado – escreve ele – reside na conjunção do mito que narra a história com o rito que a reproduz e a põe em cena. O jogo quebra essa unidade: como ludus, ou jogo de ação, faz desaparecer o mito e conserva o rito; como jocus, ou jogo de palavras, ele cancela o rito e deixa sobreviver o mito (…) Isso significa que o jogo libera e desvia a humanidade da esfera do sagrado, mas sem a abolir simplesmente. O uso a que o sagrado é devolvido é um uso especial, que não coincide com o consumo utilitarista. Assim, a 'profanação' do jogo não tem a ver apenas com a esfera religiosa. As crianças, que brincam com qualquer bugiganga que lhes caia nas mãos, transformam em brinquedo o que pertence à esfera da economia, da guerra, do direito e das outras atividades que estamos acostumadas a considerar sérias. Um automóvel, uma arma de fogo, um contrato jurídico transformam-se improvisadamente em brinquedos.” (Agamben, 2007, p. 66-7).
Note-se, então, que, no jogo, que é uma das formas exemplares de profanação, as coisas são retiradas de suas relações costumeiras e inseridas em novas relações completamente distintas das primeiras. Um objeto com uma função específica, como uma vassoura, por exemplo, pode virar, numa brincadeira, um cavalo-de-pau. É como se uma estrutura que envolve determinadas práticas sociais e significados se quebrasse para que outra viesse à tona.
Contudo, diz Agamben, o “jogo como órgão da profanação está em decadência em todo lugar.” (2007, p. 67). Em nossos dias de “religião capitalista”, os homens e mulheres já não tomam mais o jogo como meio de restituir o sagrado novamente ao mundo humano. Não que não haja jogos – ou festas, ou danças, também concebidas originalmente como praticas que anulavam a distinção entre sagrado e humano – no contexto contemporâneo. Mas é que, naqueles que existem – os “jogos televisivos de massa”, por exemplo – o objetivo realizado é apenas a instauração de uma nova liturgia, que seculariza por um momento o que nas situações diárias é considerado como objeto de culto e reverência. Mas secularização é diferente de profanação.
“A secularização é uma forma de remoção que mantém intactas as forças, que se restringe a deslocar de um lugar a outro. Assim, a secularização política de conceitos teológicos (…) limita-se a transmutar a monarquia celeste em monarquia terrena, deixando, porém, intacto o seu poder. A profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso.”(Agamben, 2007, p. 68).
A secularização, portanto, muda de lugar um elemento no interior de uma certa estrutura de relações que permanece, por sua vez, intacta. A profanação, ao contrário, quebra essa estrutura mesma. É por isso que é a profanação, e não a secularização, que deve ser perseguida por todos os que não querem se deixar aprisionar pelo culto culpabilizador da religião capitalista.
O capitalismo, diz Agamben, generaliza e absolutiza o princípio definidor da religião. Em todos os âmbitos, pode-se verificar o processo multiforme de separação que o sistema implementa. Nesse contexto, é interessante observar como Agamben, leitor atento de Benjamin, aproxima esse fenômeno – a seu ver, essencialmente religioso – do fetichismo da mercadoria de que falava Marx. Nas palavras do filósofo italiano:
“Na sua forma extrema, a religião capitalista realiza a pura forma de separação, sem mais nada a separar. Uma profanação absoluta e sem resíduos coincide agora com uma consagração igualmente vazia e integral. E como, na mercadoria, a separação faz parte da própria forma do objeto, que se distingue em valor de uso e valor de troca e se transforma em fetiche inapreensível, assim agora tudo o que é feito, produzido e vivido – também o corpo humano, também a sexualidade, também a linguagem – acaba sendo dividido por si mesmo e deslocado para uma esfera separada que já não define nenhuma divisão substancial e na qual todo uso [no sentido de profanação] se torna duravelmente impossível. Esta esfera é o consumo." (Agamben, 2007, p. 71. Grifos nossos).
Portanto, tudo que é feito, produzido e vivido se divide e passa a dar forma a uma existência social estruturalmente dividida entre um plano humano e outro sagrado. Tudo se transforma em mercadoria, forma inerentemente cindida de relação social, e o consumo passa a ser a esfera onde a consagração das coisas se consuma. No consumo, realiza-se e reforça-se a consagração e o fetichismo de tudo aquilo que é cindido no capitalismo.
É preciso, então, fazer um outro uso das coisas. É preciso estabelecer uma forma de relacionamento social que elimine a separação instaurada pelo capitalismo, que faz as pessoas tratarem como sagradas certas produções humanas. É preciso, numa palavra, profanar. "A profanação do Improfanável é a tarefa política da geração que vem", diz Agamben.
Mas talvez não seja apenas tarefa da geração que vem. Talvez seja de todos os que hoje resistem em se deixar absorver pelos imperativos desse sistema monstruso que quer nos obrigar a considerar sagradas, divinas, eternas, imutáveis e intocáveis os processos que realizam a sua lógica.
Referências:
Agamben, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.
Löwy, Michael. O capitalismo como religião: Walter Benjamin e Max Weber. In Jinkings, Ivana e Peschanski, João Alexandre. As utopias de Michael Löwy: reflexões de um marxista insubordinado.
No período em que escreveu seu ensaio, apesar de receber influência e ter a amizade do filósofo marxista alemão Ernst Bloch, Benjamin estava mais próximo politicamente das concepções românticas e libertárias de Gustav Landauer e de Georges Sorel. Mais tarde, em 1924, o autor de Passagens tomou contato com a obra de Lukács Historia e consciência de classe, aproximou-se das concepções de Marx, deixou de condenar o capitalismo como religião e passou a criticar o culto fetichista da mercadoria, analisando as galerias parisienses como “templos do capital mercadológico” (Cf. Löwy, 2007, p. 180).
Em nossos dias, Giorgio Agamben retoma e desenvolve aquelas reflexões benjaminianas, dando a elas, entretanto, uma fundamentação um pouco diferente. Sim, diz ele, o capitalismo possui cultos; sim, esses cultos são permanentes; e sim, a culpabilização que gera não oferece possibilidade de redenção, e generaliza, por isso, o desespero entre os homens e mulheres que vivem no seu interior. Mas o capitalismo deve ser identificado com uma religião, sobretudo, por estabelecer uma cisão em em sua própria substância que cria a esfera do sagrado em contraposição com o mundo humano. O filósofo italiano vai buscar nos escritos dos juristas romanos a fundamentação teórica para sua reflexão. Na Roma antiga,
“Sagradas ou religiosas eram as coisas que de algum modo pertenciam aos deuses. Como tais, elas eram subtraídas ao livre uso e ao comércio dos homens, não podiam ser vendidas nem dadas como fiança, nem cedidas ao usufruto ou gravadas de servidão. Sacrílego era todo ato que violasse ou ou transgredisse esta sua especial indisponibilidade, que as reservava exclusivamente aos deuses celestes (nesse caso eram denominadas propriamente 'sagradas') ou infernais (nesse caso eram simplesmente chamadas 'religiosas').” (Agamben, 2007, p. 65).
Religião é, então, aquilo que retira coisas, lugares, animais ou pessoas do contato com o vulgo e as transfere para uma dimensão à parte da existência. Não há religião sem separação, diz Agamben, e todo tipo de separação feita nesses moldes contem algo de religioso. Nesse contexto, o sacrifício é o dispositivo que realiza a transposição de um determinado ente do mundo dos homens para as regiões divinas.
Muitas pessoas acreditam que o termo religio deriva de religare (isto é, o que une o humano e o divino), mas essa relação não é verdadeira, afirma Agamben. Religio deriva, de fato, de relegere que significa precisamente “a atitude de escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as relações com os deuses, a inquieta hesitação (o 'reler') perante as formas – e as fórmulas – que se devem observar a fim de respeitar a separação entre o sagrado e o profano” (Agamben, 2007, p. 66). Se se compreende essa questão, perceber-se-á então que religião não é o que une o mundo humano e o mundo divino, mas exatamente aquilo que os separa e reforça a sua distinção. O que restitui verdadeiramente as coisas sagradas ao domínio humano e supera a separação entre essas duas esferas não é o escrúpulo e a deferência em relação ao divino, mas uma certa atitude de “negligência” para com as normas que a religião estabelece. É esta atividade que Agamben, na esteira dos juristas romanos, denomina de profanar: “Profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso particular.” (Agamben, 2007, p. 66). Uma das maneiras de se fazer esse “uso particular” do sagrado e burlar o conjunto de normas que realizam a separação entre mundo humano e divino é o jogo.
Por que o jogo?
“Brincar de roda era originalmente um rito matrimonial; jogar com bola reproduz a luta dos deuses pela posse do sol; os jogos de azar derivam de práticas oraculares; o pião e o jogo de xadrez eram instrumentos de adivinhação. Ao analisar a relação entre jogo e rito, Émile Benveniste mostrou que o jogo não só provém da esfera do sagrado, mas também, de algum modo, representa a sua inversão. A potência do ato sagrado – escreve ele – reside na conjunção do mito que narra a história com o rito que a reproduz e a põe em cena. O jogo quebra essa unidade: como ludus, ou jogo de ação, faz desaparecer o mito e conserva o rito; como jocus, ou jogo de palavras, ele cancela o rito e deixa sobreviver o mito (…) Isso significa que o jogo libera e desvia a humanidade da esfera do sagrado, mas sem a abolir simplesmente. O uso a que o sagrado é devolvido é um uso especial, que não coincide com o consumo utilitarista. Assim, a 'profanação' do jogo não tem a ver apenas com a esfera religiosa. As crianças, que brincam com qualquer bugiganga que lhes caia nas mãos, transformam em brinquedo o que pertence à esfera da economia, da guerra, do direito e das outras atividades que estamos acostumadas a considerar sérias. Um automóvel, uma arma de fogo, um contrato jurídico transformam-se improvisadamente em brinquedos.” (Agamben, 2007, p. 66-7).
Note-se, então, que, no jogo, que é uma das formas exemplares de profanação, as coisas são retiradas de suas relações costumeiras e inseridas em novas relações completamente distintas das primeiras. Um objeto com uma função específica, como uma vassoura, por exemplo, pode virar, numa brincadeira, um cavalo-de-pau. É como se uma estrutura que envolve determinadas práticas sociais e significados se quebrasse para que outra viesse à tona.
Contudo, diz Agamben, o “jogo como órgão da profanação está em decadência em todo lugar.” (2007, p. 67). Em nossos dias de “religião capitalista”, os homens e mulheres já não tomam mais o jogo como meio de restituir o sagrado novamente ao mundo humano. Não que não haja jogos – ou festas, ou danças, também concebidas originalmente como praticas que anulavam a distinção entre sagrado e humano – no contexto contemporâneo. Mas é que, naqueles que existem – os “jogos televisivos de massa”, por exemplo – o objetivo realizado é apenas a instauração de uma nova liturgia, que seculariza por um momento o que nas situações diárias é considerado como objeto de culto e reverência. Mas secularização é diferente de profanação.
“A secularização é uma forma de remoção que mantém intactas as forças, que se restringe a deslocar de um lugar a outro. Assim, a secularização política de conceitos teológicos (…) limita-se a transmutar a monarquia celeste em monarquia terrena, deixando, porém, intacto o seu poder. A profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso.”(Agamben, 2007, p. 68).
A secularização, portanto, muda de lugar um elemento no interior de uma certa estrutura de relações que permanece, por sua vez, intacta. A profanação, ao contrário, quebra essa estrutura mesma. É por isso que é a profanação, e não a secularização, que deve ser perseguida por todos os que não querem se deixar aprisionar pelo culto culpabilizador da religião capitalista.
O capitalismo, diz Agamben, generaliza e absolutiza o princípio definidor da religião. Em todos os âmbitos, pode-se verificar o processo multiforme de separação que o sistema implementa. Nesse contexto, é interessante observar como Agamben, leitor atento de Benjamin, aproxima esse fenômeno – a seu ver, essencialmente religioso – do fetichismo da mercadoria de que falava Marx. Nas palavras do filósofo italiano:
“Na sua forma extrema, a religião capitalista realiza a pura forma de separação, sem mais nada a separar. Uma profanação absoluta e sem resíduos coincide agora com uma consagração igualmente vazia e integral. E como, na mercadoria, a separação faz parte da própria forma do objeto, que se distingue em valor de uso e valor de troca e se transforma em fetiche inapreensível, assim agora tudo o que é feito, produzido e vivido – também o corpo humano, também a sexualidade, também a linguagem – acaba sendo dividido por si mesmo e deslocado para uma esfera separada que já não define nenhuma divisão substancial e na qual todo uso [no sentido de profanação] se torna duravelmente impossível. Esta esfera é o consumo." (Agamben, 2007, p. 71. Grifos nossos).
Portanto, tudo que é feito, produzido e vivido se divide e passa a dar forma a uma existência social estruturalmente dividida entre um plano humano e outro sagrado. Tudo se transforma em mercadoria, forma inerentemente cindida de relação social, e o consumo passa a ser a esfera onde a consagração das coisas se consuma. No consumo, realiza-se e reforça-se a consagração e o fetichismo de tudo aquilo que é cindido no capitalismo.
É preciso, então, fazer um outro uso das coisas. É preciso estabelecer uma forma de relacionamento social que elimine a separação instaurada pelo capitalismo, que faz as pessoas tratarem como sagradas certas produções humanas. É preciso, numa palavra, profanar. "A profanação do Improfanável é a tarefa política da geração que vem", diz Agamben.
Mas talvez não seja apenas tarefa da geração que vem. Talvez seja de todos os que hoje resistem em se deixar absorver pelos imperativos desse sistema monstruso que quer nos obrigar a considerar sagradas, divinas, eternas, imutáveis e intocáveis os processos que realizam a sua lógica.
Referências:
Agamben, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.
Löwy, Michael. O capitalismo como religião: Walter Benjamin e Max Weber. In Jinkings, Ivana e Peschanski, João Alexandre. As utopias de Michael Löwy: reflexões de um marxista insubordinado.
sexta-feira, 18 de dezembro de 2009
O asselvajamento do patriarcado (parte II) - Mais algumas palavras sobre o pensamento de Roswitha Scholz
Roswitha Scholz quer compreender a relação entre o capitalismo e o patriarcado, entre a formação social onde predomina a produção do valor e a sujeição das mulheres realizadas pelos homens. Com esse intento, entabula uma investigação a fim de verificar as várias formas de expressão da dominação masculina nas sociedades ocidentais ao longo da história.
O patriarcado é, bem entendido, para Scholz, uma criação cultural e histórica. O patriarcado ocidental ligado à forma-valor teve sua origem, segundo a filósofa, na Grécia antiga, e persistiu durante o Império Romano. Nessas sociedades, as condições sociais vigentes fizeram surgir uma esfera pública que os homens tomaram como exclusividade sua.
“As mulheres atenienses viviam exiladas em casa, de onde deveriam sair o menos possível. A principal tarefa da mulher era conceber um filho; caso isso não ocorresse, sua vida teria sido em vão. A hipóstase da nova esfera pública, que exigia a conduta abstrata e racional, andava de mãos dadas com a degradação da sexualidade em geral. A ascensão do pensamento racional associou-se já desde o berço à exclusão das mulheres. A esfera pública, de quem também fazia parte a formação cultural, necessitava (na figura da esfera privada) de um domínio que lhe fosse contraposto, para o qual pudesse olhar do alto de sua posição. O homem precisava da mulher como 'antípoda', no qual ele projetava tudo o que não era admitido no âmbito público e nas esferas adjacentes. Assim, já na antiga Atenas, a mulher era tida e havida na conta de lasciva, eticamente inferior, irracional, intelectualmente pouco dotada etc. - atributos esses que permaneceram em vigor até à modernidade. ” (Cf. Scholz, 1992. Grifos nossos).
Na Idade Média, condições históricas diversas fizeram com que desmoronasse a antiga diferenciação entre esfera pública e privada. Scholz afirma que na sociedade medieval chegaram a subsistir resquícios “semimatriarcais” no seio do patriarcado, especialmente entre as tribos germânicas, onde as mulheres desfrutavam de uma espécie de “significação mística”. A própria figura da bruxa não era vista de antemão como negativa, pois considerava-se que, se a magia poderia resultar em algo “mau”, também poderia produzir algo “bom”. Nesse período, a mulher era juridicamente subordinada ao marido e podia até ser negociada como escrava ou cabeça de gado. Mas, podia, por outro lado, dedicar-se ao comércio e ocupar-se de um ofício fora do ambiente doméstico (Alta Idade Média). Além disso, possuía ainda certa autoridade no interior da família e tinha a chamada “última palavra” como administradora do lar.
No início da Idade Moderna, a condição das mulheres foi dificultada drasticamente. Isso se deveu ao “renascimento” do antigo mundo espiritual e às respectivas mudanças nos fundamentos da sociedade. “Embora os estágios evolutivos da Idade Média sejam bastante diversos no que respeita às mulheres, sendo muitas vezes contraditórios e avessos a uma imagem uniforme, podemos observar no início da Idade Moderna que a situação das mulheres piorou a olhos vistos, como dão prova as repressões por ela sofridas em todos os âmbitos sociais. Quanto mais se desenvolvem uma esfera pública supra-regional, uma jurisdição estatal e uma ciência institucionalizada, mais nítido se torna o papel marginal atribuído à mulher.” (Becker, apud Scholz, 1992. Grifos nossos).
As transformações desse período já deixavam entrever o capitalismo nascente e a sociedade do valor. O “feminino” sofreu aí uma campanha da aniquilação. Se na figura da bruxa, que vigorou na etapa histórica anterior, ela mantinha uma relação “simpática” com a natureza (e até fazia as vezes de natureza, em certo sentido), agora, com o predomínio da racionalidade do homem moderno, tudo isso precisava ser reconfigurado. Não que a mulher perdesse essa associação com o místico e o natural. Mas, como o próprio “natural” era concebido de forma diferente, como objeto de domínio, também a mulher precisava ser dominada. A Igreja contribuía, nesse contexto, para a sujeição do feminino. Como explica Scholz (1992),
“Não se tratava apenas do fato de os homens expropriarem brutalmente a ciência medicinal empírica das mulheres; antes, o que estava em jogo era um projeto fundamentalmente diverso de relacionamento com a natureza. A fundamentação teórica é fornecida sobretudo pelo chamado Malleus maleficarum (O martelo das bruxas), de 1487, redigido pelos padres H. Kraemer e J. Sprenger. Pais da Igreja, poetas e pensadores antigos eram citados no fito de tornar plausível a inferioridade da mulher e sua predisposição à bruxaria e ao pacto com o demônio. Imputavam-se mais uma vez às mulheres atributos como inconstância, concupiscência, raciocínio débil, extravagância, perfídia e credulidade.” (Grifos nossos)
A ética protestante nesse período também não foi nada benevolente com as mulheres. Para Scholz, a Reforma se empenhou em domesticar a mulher, fazendo com que ela levasse uma vida serena, amável, humilde, controlada pelo patriarcado e encerrada “no claustro do casamento”. (Lutero teria sido um dos principais responsáveis por esta concepção do feminino).
A era do Iluminismo, por sua vez, deu novo impulso a essa “domesticação”. Apesar do fato de que alguns dos filósofos da época defendiam o projeto de uma emancipação igualitária entre os gêneros, tais concepções não foram capazes de se impor na prática, em virtude do peso do tipo de processos sociais nos quais estavam inseridos, “a saber, a progressiva socialização pelo valor.” (Cf. Scholz, 1992. Grifos nossos). Este tipo de socialização exigia, segundo a filósofa, uma certa diferenciação dos papéis patriarcais entre os sexos, onde a mulher deveria destinar-se, “por natureza”, a ser não mais que esposa, dona-de-casa e mãe.
Note-se que, desde o principio da Idade Moderna, verifica-se a persistência e o acentuamento entre a esfera do público e do privado e a restrição da atividade da mulher a este último domínio. Scholz afirma que o período do Iluminismo em especial atribuiu a essa divisão uma nuance peculiar: a polarização de caráter dos sexos.
“Na medida em que à mulher se imputavam novas qualidades como passividade e emotividade (se bem que agora restritas ao círculo familiar burguês) e ao homem, por sua vez, a ação e a racionalidade no espaço público da incipiente sociedade industrial, ocorreu uma "polarização de caráter entre os sexos". A mulher e a família deviam converter-se em pólos de oposição ao mundo externo cada vez mais dominado pela racionalidade instrumental. Cabia à mulher não apenas ser uma dona-de-casa exemplar, mas também tornar agradável a vida do marido com sua assistência, seus cuidados e seu interesse. Essas tarefas adicionais representavam uma inovação. À diferença dos primeiros patriarcados da Antiguidade, presos à forma-valor, em que o homem ainda encontrava sua satisfação na própria esfera pública, elas são testemunha do quanto a racionalidade patriarcal e do valor fugiu ao controle do homem nesse meio tempo, do quanto ele depende agora de um 'bem-estar doméstico' propiciado pela mulher.” (Grifos nossos).
No século XIX, as cisões entre o feminino e o masculino e entre o privado e o público se aprofundam. A “vocação” materna da mulher da sociedade burguesa foi acentuado ainda mais. O sujeito feminino recebeu a tarefa precípua de manter a família em equilíbrio, realizar os afazeres domésticos e dar cabo de tudo que tivesse um cunho mais pessoal na vida conjugal, ao passo que o homem, que tinha no âmbito público seu locus “natural” de atuação realizadora, foi talhado para atividades produtivas em múltiplos campos: ciência, tecnologia, cultura, etc.
O século XIX, contudo, assistiu a proliferação de vários movimentos feministas (muitos deles burgueses) que exigiam a modificação das condições de existência das mulheres. Isso se prolongou no século XX e, especialmente em sua segunda metade, a relação entre os sexos dava a impressão de sofrer grandes mudanças, com as mulheres transcendendo o espaço doméstico/privado no qual os homens queriam lhe confinar a todo custo.
Na contemporaneidade, então, a situação das mulheres estaria melhor? Aqui, há que se ter um pouco de cuidado e atenção para ir além do aparente. Para Scholz, o que se verifica hoje é, na verdade, uma contradição muito mais aguda do que a que ocorria em épocas anteriores. Para entender como isso se dá, é preciso que nos detenhamos sobre sua teoria do valor-dissociação. De que trata tal teoria? A filósofa parte de uma compreensão crítica das concepções de Marx sobre o capital.
De acordo com o pensador alemão, o capital é um sistema que se realiza pela valorização do valor. Para tanto, mercadorias precisam ser produzidas e trocadas no mercado. É necessário, pois, que elas tenham então um valor de troca. No mercado, as trocas de mercadorias só se realizam por valores equivalentes. Ou seja, uma mercadoria só pode ser trocada por outra de mesmo valor. Mas o que é que determina o valor de uma mercadoria? Para Marx, não são é nenhuma característica física específica - capaz de satisfazer certa necessidade humana - (isto é, o seu valor de uso) que determina esse valor. O valor das mercadorias só pode ser determinado pela presença de um elemento que seja comum a todos os tipos de mercadorias. Que elemento é esse? É o trabalho. Nas palavras de Marx, “quando consideramos as mercadorias como valores, vemo-las somente sob o aspecto de trabalho social realizado, plasmado ou, se assim quiserdes, cristalizado. […] os valores relativos das mercadorias se determinam pelas correspondentes quantidades ou somas de trabalho invertidas, realizadas, plasmadas nelas. As quantidades correspondentes de mercadorias que foram produzidas no mesmo tempo de trabalho são iguais. Ou, dito de outro modo, o valor de uma mercadoria está para o valor de outra, assim como a quantidade de trabalho plasmada numa está para a quantidade de trabalho na outra” (1978, p. 74-5).
Para produzir capital, então, o capitalista vai ao mercado e compra matéria-prima, instrumentos de trabalho e força de trabalho (que só pode ser fornecida por trabalhadores dispostos a vendê-la). Essas coisas (que são todas mercadorias) possuem um certo valor determinado (valor este que é definido pela quantidade de tempo de trabalho social passado plasmado nessas mercadorias, inclusive na força de trabalho). Quando os trabalhadores colocam em movimento esses meios de produção, o produto que daí surge possui um quantum de valor maior (porque no produto foram invertidas mais horas de trabalho social) do que aquele presente nas mercadorias no início do ciclo. Este novo valor é trocado no mercado por uma soma de valor exatamente equivalente à sua. Uma parte desse valor em dinheiro obtido pela venda da mercadoria é destinada a repor as mercadorias originais (meios de produção e força de trabalho). A outra parte do valor (a mais-valia) é apropriada pelo capitalista. Como a essência do sistema do capital é produzir valores para serem trocados no mercado, subordinando para esse fim as próprias necessidades dos sujeitos históricos (diz-se que o valor de troca subsume o valor de uso), o processo de formação do valor passa a funcionar por si mesmo, fazendo das pessoas meros apêndices da produção das mercadorias. Então, é como se o próprio capital se torna-se o “sujeito” e as pessoas os “objetos” desse circuito. A este fenômeno Marx denominou de fetichismo. O processo de realização do valor é eminentemente fetichista, pois o capital adquire propriedades de sujeito (se “humaniza”) e as pessoas adquirem características de objeto (se “coisificam”).
No geral, Roswitha Scholz concorda com essa concepção de Marx, embora acredite que, na pós-modernidade, o trabalho abstrato (que é o que gera valor de troca, ao contrário do trabalho concreto, que é o que dá à luz valores de uso), esteja em “crise”. Isso não invalida, contudo, a teoria de que o capital é essencialmente um mecanismo centrado no valor. A filósofa acrescentará apenas que esse processo envolve especificação sexual. Ou seja, é um determinado patriarcado que produz as mercadorias e, nesse movimento, projeta sobre as mulheres certas características que serão dissociadas da formação dos valores. Isto já era visível no patriarcado grego (que mantinha atividades comerciais mercantis). E mais ainda do Renascimento em diante, quando os processos que envolviam a realização do capital foram novamente despontando no horizonte histórico e se consolidando a seguir. É nesse sentido, então, que “o valor é o homem, não o homem como ser biológico, mas o homem como depositário histórico da objectivação valorativa. Foram quase exclusivamente os homens que se comportaram como autores e executores da socialização pelo valor. Eles puseram em movimento, embora sem o saber, mecanismos fetichistas que começaram a levar vida própria, cada vez mais independente, por trás de suas costas (e obviamente por trás das costas das mulheres). Como nesse processo a mulher foi posta como o antípoda objectivo do 'trabalhador' abstracto - antípoda obrigado a lhe dar sustentação feminina, em posição oculta ou inferior -, a constituição valorativa do fetiche já é sexualmente assimétrica em sua própria base e assim permanecerá até cair por terra.”(Cf. Scholz, 1992. Grifos nossos).
Essa dissociação na formação do valor foi responsável por uma divisão das esferas sociais entre público e privado, onde a primeira foi tomada como o campo “natural” de atuação dos homens, e a última, das mulheres. Na segunda metade do século XX, as mulheres conseguiram transcender em parte a clausura do lar e do ambiente privado imposta a elas pelos homens. Contudo, em nossos dias, onde, na visão de Scholz, a família tradicional nuclear tende a se dissolver, as mulheres ainda aparecem numa condição que ela chama de “duplamente socializadas”, isto é, responsáveis tanto pela família como pela profissão. Isso significa que as mulheres ainda aparecem como as principais responsáveis pelas atividades “reprodutivas” (próprias ao ambiente familiar). Juntamente com isso, tem de desempenhar atividades profissionais nas quais ganham menos, recebem menos oportunidades de promoção e assim por diante.
Por essa razão, segundo a filósofa alemã, é errôneo dizer que em nossos dias o patriarcado se enfraqueceu. Para Roswitha Scholz, ele na verdade se asselvajou. Como superá-lo? Ora, se se entende que esse patriarcado observado em nossos dias está relacionado com um tipo de socialização que tem na realização do valor o seu cerne, a superação da dominação de gênero exige também que se supere o tipo de sociabilidade que se vincula à produção de mercadorias, à produção de valor. Nas suas palavras:
“A fim de enfrentar a crise de modo produtivo, há que se constituir uma 'esquerda feminista' que tenha consciência tanto subjetiva e pessoal quanto objetiva e social do mecanismo de cisão [entre os gêneros]. Um feminismo nesses moldes não se pode dar ao luxo de restringir-se às mulheres e ao movimento feminista. Tanto homens quanto mulheres têm de compreender que 'nossa' sociedade é determinada pelo patriarcado e pelo valor. [...] além disso, é urgente a luta feminista de ambos os sexos contra as formas de existência sociais, objetivadas e reificadas das cisões patriarcais produzidas pelo valor. A superação do patriarcado é ao mesmo tempo a superação da forma fetichista da mercadoria, pois esta é o fundamento da cisão patriarcal. O objectivo revolucionário seria portanto um grau mais elevado de civilização, no qual homens e mulheres sejam capazes de fazer pelas próprias mãos sua história, para além do fetichismo e de suas atribuições sexuais.” (Scholz, 1992. Grifos nossos).
O ensaio de Roswitha Scholz é, evidentemente, muito mais rico e cheio de nuances do que essa parca exposição que fizemos. Fica o convite para a leitura de seus textos, muitos dos quais estão à disposição, em português, na internet, no site do grupo intelectual do qual Roswitha faz parte, o Exit (http://obeco.planetaclix.pt/).
Referências:
MARX, Karl. Salário, preço e lucro. In MARX, Karl, Os pensadores (Seleção de textos de José Arthur Gianotti). São Paulo: Abril Cultural, 1978.
SCHOLZ, Roswitha. O valor é o homem – Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos. (1992) In http://obeco.planetaclix.pt/rst1.htm
O patriarcado é, bem entendido, para Scholz, uma criação cultural e histórica. O patriarcado ocidental ligado à forma-valor teve sua origem, segundo a filósofa, na Grécia antiga, e persistiu durante o Império Romano. Nessas sociedades, as condições sociais vigentes fizeram surgir uma esfera pública que os homens tomaram como exclusividade sua.
“As mulheres atenienses viviam exiladas em casa, de onde deveriam sair o menos possível. A principal tarefa da mulher era conceber um filho; caso isso não ocorresse, sua vida teria sido em vão. A hipóstase da nova esfera pública, que exigia a conduta abstrata e racional, andava de mãos dadas com a degradação da sexualidade em geral. A ascensão do pensamento racional associou-se já desde o berço à exclusão das mulheres. A esfera pública, de quem também fazia parte a formação cultural, necessitava (na figura da esfera privada) de um domínio que lhe fosse contraposto, para o qual pudesse olhar do alto de sua posição. O homem precisava da mulher como 'antípoda', no qual ele projetava tudo o que não era admitido no âmbito público e nas esferas adjacentes. Assim, já na antiga Atenas, a mulher era tida e havida na conta de lasciva, eticamente inferior, irracional, intelectualmente pouco dotada etc. - atributos esses que permaneceram em vigor até à modernidade. ” (Cf. Scholz, 1992. Grifos nossos).
Na Idade Média, condições históricas diversas fizeram com que desmoronasse a antiga diferenciação entre esfera pública e privada. Scholz afirma que na sociedade medieval chegaram a subsistir resquícios “semimatriarcais” no seio do patriarcado, especialmente entre as tribos germânicas, onde as mulheres desfrutavam de uma espécie de “significação mística”. A própria figura da bruxa não era vista de antemão como negativa, pois considerava-se que, se a magia poderia resultar em algo “mau”, também poderia produzir algo “bom”. Nesse período, a mulher era juridicamente subordinada ao marido e podia até ser negociada como escrava ou cabeça de gado. Mas, podia, por outro lado, dedicar-se ao comércio e ocupar-se de um ofício fora do ambiente doméstico (Alta Idade Média). Além disso, possuía ainda certa autoridade no interior da família e tinha a chamada “última palavra” como administradora do lar.
No início da Idade Moderna, a condição das mulheres foi dificultada drasticamente. Isso se deveu ao “renascimento” do antigo mundo espiritual e às respectivas mudanças nos fundamentos da sociedade. “Embora os estágios evolutivos da Idade Média sejam bastante diversos no que respeita às mulheres, sendo muitas vezes contraditórios e avessos a uma imagem uniforme, podemos observar no início da Idade Moderna que a situação das mulheres piorou a olhos vistos, como dão prova as repressões por ela sofridas em todos os âmbitos sociais. Quanto mais se desenvolvem uma esfera pública supra-regional, uma jurisdição estatal e uma ciência institucionalizada, mais nítido se torna o papel marginal atribuído à mulher.” (Becker, apud Scholz, 1992. Grifos nossos).
As transformações desse período já deixavam entrever o capitalismo nascente e a sociedade do valor. O “feminino” sofreu aí uma campanha da aniquilação. Se na figura da bruxa, que vigorou na etapa histórica anterior, ela mantinha uma relação “simpática” com a natureza (e até fazia as vezes de natureza, em certo sentido), agora, com o predomínio da racionalidade do homem moderno, tudo isso precisava ser reconfigurado. Não que a mulher perdesse essa associação com o místico e o natural. Mas, como o próprio “natural” era concebido de forma diferente, como objeto de domínio, também a mulher precisava ser dominada. A Igreja contribuía, nesse contexto, para a sujeição do feminino. Como explica Scholz (1992),
“Não se tratava apenas do fato de os homens expropriarem brutalmente a ciência medicinal empírica das mulheres; antes, o que estava em jogo era um projeto fundamentalmente diverso de relacionamento com a natureza. A fundamentação teórica é fornecida sobretudo pelo chamado Malleus maleficarum (O martelo das bruxas), de 1487, redigido pelos padres H. Kraemer e J. Sprenger. Pais da Igreja, poetas e pensadores antigos eram citados no fito de tornar plausível a inferioridade da mulher e sua predisposição à bruxaria e ao pacto com o demônio. Imputavam-se mais uma vez às mulheres atributos como inconstância, concupiscência, raciocínio débil, extravagância, perfídia e credulidade.” (Grifos nossos)
A ética protestante nesse período também não foi nada benevolente com as mulheres. Para Scholz, a Reforma se empenhou em domesticar a mulher, fazendo com que ela levasse uma vida serena, amável, humilde, controlada pelo patriarcado e encerrada “no claustro do casamento”. (Lutero teria sido um dos principais responsáveis por esta concepção do feminino).
A era do Iluminismo, por sua vez, deu novo impulso a essa “domesticação”. Apesar do fato de que alguns dos filósofos da época defendiam o projeto de uma emancipação igualitária entre os gêneros, tais concepções não foram capazes de se impor na prática, em virtude do peso do tipo de processos sociais nos quais estavam inseridos, “a saber, a progressiva socialização pelo valor.” (Cf. Scholz, 1992. Grifos nossos). Este tipo de socialização exigia, segundo a filósofa, uma certa diferenciação dos papéis patriarcais entre os sexos, onde a mulher deveria destinar-se, “por natureza”, a ser não mais que esposa, dona-de-casa e mãe.
Note-se que, desde o principio da Idade Moderna, verifica-se a persistência e o acentuamento entre a esfera do público e do privado e a restrição da atividade da mulher a este último domínio. Scholz afirma que o período do Iluminismo em especial atribuiu a essa divisão uma nuance peculiar: a polarização de caráter dos sexos.
“Na medida em que à mulher se imputavam novas qualidades como passividade e emotividade (se bem que agora restritas ao círculo familiar burguês) e ao homem, por sua vez, a ação e a racionalidade no espaço público da incipiente sociedade industrial, ocorreu uma "polarização de caráter entre os sexos". A mulher e a família deviam converter-se em pólos de oposição ao mundo externo cada vez mais dominado pela racionalidade instrumental. Cabia à mulher não apenas ser uma dona-de-casa exemplar, mas também tornar agradável a vida do marido com sua assistência, seus cuidados e seu interesse. Essas tarefas adicionais representavam uma inovação. À diferença dos primeiros patriarcados da Antiguidade, presos à forma-valor, em que o homem ainda encontrava sua satisfação na própria esfera pública, elas são testemunha do quanto a racionalidade patriarcal e do valor fugiu ao controle do homem nesse meio tempo, do quanto ele depende agora de um 'bem-estar doméstico' propiciado pela mulher.” (Grifos nossos).
No século XIX, as cisões entre o feminino e o masculino e entre o privado e o público se aprofundam. A “vocação” materna da mulher da sociedade burguesa foi acentuado ainda mais. O sujeito feminino recebeu a tarefa precípua de manter a família em equilíbrio, realizar os afazeres domésticos e dar cabo de tudo que tivesse um cunho mais pessoal na vida conjugal, ao passo que o homem, que tinha no âmbito público seu locus “natural” de atuação realizadora, foi talhado para atividades produtivas em múltiplos campos: ciência, tecnologia, cultura, etc.
O século XIX, contudo, assistiu a proliferação de vários movimentos feministas (muitos deles burgueses) que exigiam a modificação das condições de existência das mulheres. Isso se prolongou no século XX e, especialmente em sua segunda metade, a relação entre os sexos dava a impressão de sofrer grandes mudanças, com as mulheres transcendendo o espaço doméstico/privado no qual os homens queriam lhe confinar a todo custo.
Na contemporaneidade, então, a situação das mulheres estaria melhor? Aqui, há que se ter um pouco de cuidado e atenção para ir além do aparente. Para Scholz, o que se verifica hoje é, na verdade, uma contradição muito mais aguda do que a que ocorria em épocas anteriores. Para entender como isso se dá, é preciso que nos detenhamos sobre sua teoria do valor-dissociação. De que trata tal teoria? A filósofa parte de uma compreensão crítica das concepções de Marx sobre o capital.
De acordo com o pensador alemão, o capital é um sistema que se realiza pela valorização do valor. Para tanto, mercadorias precisam ser produzidas e trocadas no mercado. É necessário, pois, que elas tenham então um valor de troca. No mercado, as trocas de mercadorias só se realizam por valores equivalentes. Ou seja, uma mercadoria só pode ser trocada por outra de mesmo valor. Mas o que é que determina o valor de uma mercadoria? Para Marx, não são é nenhuma característica física específica - capaz de satisfazer certa necessidade humana - (isto é, o seu valor de uso) que determina esse valor. O valor das mercadorias só pode ser determinado pela presença de um elemento que seja comum a todos os tipos de mercadorias. Que elemento é esse? É o trabalho. Nas palavras de Marx, “quando consideramos as mercadorias como valores, vemo-las somente sob o aspecto de trabalho social realizado, plasmado ou, se assim quiserdes, cristalizado. […] os valores relativos das mercadorias se determinam pelas correspondentes quantidades ou somas de trabalho invertidas, realizadas, plasmadas nelas. As quantidades correspondentes de mercadorias que foram produzidas no mesmo tempo de trabalho são iguais. Ou, dito de outro modo, o valor de uma mercadoria está para o valor de outra, assim como a quantidade de trabalho plasmada numa está para a quantidade de trabalho na outra” (1978, p. 74-5).
Para produzir capital, então, o capitalista vai ao mercado e compra matéria-prima, instrumentos de trabalho e força de trabalho (que só pode ser fornecida por trabalhadores dispostos a vendê-la). Essas coisas (que são todas mercadorias) possuem um certo valor determinado (valor este que é definido pela quantidade de tempo de trabalho social passado plasmado nessas mercadorias, inclusive na força de trabalho). Quando os trabalhadores colocam em movimento esses meios de produção, o produto que daí surge possui um quantum de valor maior (porque no produto foram invertidas mais horas de trabalho social) do que aquele presente nas mercadorias no início do ciclo. Este novo valor é trocado no mercado por uma soma de valor exatamente equivalente à sua. Uma parte desse valor em dinheiro obtido pela venda da mercadoria é destinada a repor as mercadorias originais (meios de produção e força de trabalho). A outra parte do valor (a mais-valia) é apropriada pelo capitalista. Como a essência do sistema do capital é produzir valores para serem trocados no mercado, subordinando para esse fim as próprias necessidades dos sujeitos históricos (diz-se que o valor de troca subsume o valor de uso), o processo de formação do valor passa a funcionar por si mesmo, fazendo das pessoas meros apêndices da produção das mercadorias. Então, é como se o próprio capital se torna-se o “sujeito” e as pessoas os “objetos” desse circuito. A este fenômeno Marx denominou de fetichismo. O processo de realização do valor é eminentemente fetichista, pois o capital adquire propriedades de sujeito (se “humaniza”) e as pessoas adquirem características de objeto (se “coisificam”).
No geral, Roswitha Scholz concorda com essa concepção de Marx, embora acredite que, na pós-modernidade, o trabalho abstrato (que é o que gera valor de troca, ao contrário do trabalho concreto, que é o que dá à luz valores de uso), esteja em “crise”. Isso não invalida, contudo, a teoria de que o capital é essencialmente um mecanismo centrado no valor. A filósofa acrescentará apenas que esse processo envolve especificação sexual. Ou seja, é um determinado patriarcado que produz as mercadorias e, nesse movimento, projeta sobre as mulheres certas características que serão dissociadas da formação dos valores. Isto já era visível no patriarcado grego (que mantinha atividades comerciais mercantis). E mais ainda do Renascimento em diante, quando os processos que envolviam a realização do capital foram novamente despontando no horizonte histórico e se consolidando a seguir. É nesse sentido, então, que “o valor é o homem, não o homem como ser biológico, mas o homem como depositário histórico da objectivação valorativa. Foram quase exclusivamente os homens que se comportaram como autores e executores da socialização pelo valor. Eles puseram em movimento, embora sem o saber, mecanismos fetichistas que começaram a levar vida própria, cada vez mais independente, por trás de suas costas (e obviamente por trás das costas das mulheres). Como nesse processo a mulher foi posta como o antípoda objectivo do 'trabalhador' abstracto - antípoda obrigado a lhe dar sustentação feminina, em posição oculta ou inferior -, a constituição valorativa do fetiche já é sexualmente assimétrica em sua própria base e assim permanecerá até cair por terra.”(Cf. Scholz, 1992. Grifos nossos).
Essa dissociação na formação do valor foi responsável por uma divisão das esferas sociais entre público e privado, onde a primeira foi tomada como o campo “natural” de atuação dos homens, e a última, das mulheres. Na segunda metade do século XX, as mulheres conseguiram transcender em parte a clausura do lar e do ambiente privado imposta a elas pelos homens. Contudo, em nossos dias, onde, na visão de Scholz, a família tradicional nuclear tende a se dissolver, as mulheres ainda aparecem numa condição que ela chama de “duplamente socializadas”, isto é, responsáveis tanto pela família como pela profissão. Isso significa que as mulheres ainda aparecem como as principais responsáveis pelas atividades “reprodutivas” (próprias ao ambiente familiar). Juntamente com isso, tem de desempenhar atividades profissionais nas quais ganham menos, recebem menos oportunidades de promoção e assim por diante.
Por essa razão, segundo a filósofa alemã, é errôneo dizer que em nossos dias o patriarcado se enfraqueceu. Para Roswitha Scholz, ele na verdade se asselvajou. Como superá-lo? Ora, se se entende que esse patriarcado observado em nossos dias está relacionado com um tipo de socialização que tem na realização do valor o seu cerne, a superação da dominação de gênero exige também que se supere o tipo de sociabilidade que se vincula à produção de mercadorias, à produção de valor. Nas suas palavras:
“A fim de enfrentar a crise de modo produtivo, há que se constituir uma 'esquerda feminista' que tenha consciência tanto subjetiva e pessoal quanto objetiva e social do mecanismo de cisão [entre os gêneros]. Um feminismo nesses moldes não se pode dar ao luxo de restringir-se às mulheres e ao movimento feminista. Tanto homens quanto mulheres têm de compreender que 'nossa' sociedade é determinada pelo patriarcado e pelo valor. [...] além disso, é urgente a luta feminista de ambos os sexos contra as formas de existência sociais, objetivadas e reificadas das cisões patriarcais produzidas pelo valor. A superação do patriarcado é ao mesmo tempo a superação da forma fetichista da mercadoria, pois esta é o fundamento da cisão patriarcal. O objectivo revolucionário seria portanto um grau mais elevado de civilização, no qual homens e mulheres sejam capazes de fazer pelas próprias mãos sua história, para além do fetichismo e de suas atribuições sexuais.” (Scholz, 1992. Grifos nossos).
O ensaio de Roswitha Scholz é, evidentemente, muito mais rico e cheio de nuances do que essa parca exposição que fizemos. Fica o convite para a leitura de seus textos, muitos dos quais estão à disposição, em português, na internet, no site do grupo intelectual do qual Roswitha faz parte, o Exit (http://obeco.planetaclix.pt/).
Referências:
MARX, Karl. Salário, preço e lucro. In MARX, Karl, Os pensadores (Seleção de textos de José Arthur Gianotti). São Paulo: Abril Cultural, 1978.
SCHOLZ, Roswitha. O valor é o homem – Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos. (1992) In http://obeco.planetaclix.pt/rst1.htm
sábado, 12 de dezembro de 2009
O asselvajamento do patriarcado - Algumas palavras sobre o pensamento de Roswitha Scholz
A filósofa alemã Roswitha Scholz deu o nome de valor-dissociação à sua teoria sobre a discriminação e relação assimétrica de gêneros. Por que essa denominação?
De maneira bem sucinta, costuma-se definir o capital, nas pegadas de Marx, como um processo de mudança do valor, ou, como nos informa Paul Singer (1987, p. 27), o capital é “valor que se valoriza”. Para que ocorra essa “valorização do valor”, a riqueza inicial deve passar por uma metamorfose. O capital-dinheiro inicial deve passar a ser capital-mercadoria (isto é, o capitalista, possuidor do dinheiro, deve adquirir por seu intermédio as seguintes mercadorias: meios de produção e força de trabalho). Os trabalhadores, então, mediante sua força de trabalho (que é uma mercadoria que eles vendem ao capitalista), colocarão em movimento os meios de produção (também mercadorias compradas pelo capitalista) e darão origem a novos produtos (novas mercadorias). Estas, por sua vez, precisarão ser realizadas, isto é, vendidas no mercado a fim de se obter novamente capital-dinheiro. Ao longo desse processo, a mercadoria que aparecerá no fim da cadeia valerá mais que as mercadorias que estavam dadas no início. Nesse contexto, em condições “normais”, também o capital-dinheiro que resultará da venda dessas mercadorias será maior que o capital-dinheiro que o capitalista possuía naquele primeiro momento. (Via de regra, o capital do fim do ciclo será, grosso modo, igual ao capital inicial mais o lucro, que é expressão da mais-valia em dinheiro). O valor acrescido no processo de produção das mercadorias é resultante do trabalho dos trabalhadores. É o trabalho, em suma, que produz esse acréscimo de valor. No fim do ciclo, portanto, o valor se transformou. (Diz-se que o valor se valorizou). Uma parte dessa nova soma é usada para pagar os salários dos trabalhadores, os gastos com a reposição dos meios de produção, os impostos, etc. e restituir assim o valor inicial. A outra parte do valor, o “mais-valor” - ou mais-valia, isto é, o valor que foi produzido pelos trabalhadores sobre o valor tido no início e que não retornou a eles -, é apropriada pelo capitalista.
Segundo Marx, esse processo é eminentemente fetichista. Ou seja, conforme tudo isso se desenrola, as relações sociais mediadas pela troca de mercadorias/dinheiro ganham “vida própria”, parcialmente se autonomizam, se invertem e se voltam contra os trocadores do mercado (sejam eles capitalistas ou trabalhadores). É como se as mercadorias, o dinheiro, o capital, se tornassem os “sujeitos” do seu próprio processo de produção e reprodução, e as pessoas, nesse movimento, se convertessem em “objetos”, apêndices do sistema. (As pessoas adquiririam a condição de “coisas”). É como se, enfim, o valor fosse um atributo das coisas mesmas, e não o produto da atividade de seres humanos no seu processo de vir-a-ser histórico. (As coisas revestir-se-iam, assim, de “propriedades humanas”). Em síntese, o que é uma construção histórica (a formação do valor) passa a se realizar “automaticamente” e vista, nesse contexto, como “natural”.
Roswitha Scholz partirá disso. Acrescentará, contudo, a tese de que, nesse processo, as propriedades que num determinado contexto são relacionadas ao feminino, - que podem consistir, por exemplo, desde a educação dos filhos, passando pelo “trabalho” doméstico, até o “amor” - são dissociadas da produção do valor. Nas suas palavras, “de acordo com a teoria da dissociação-valor, [...] tanto as atividades reprodutivas femininas quanto os sentimentos, qualidades e atitudes a elas ligados ou associados [...] – esta a tese – são dissociados do valor” (Scholz, 2004). Desse modo, o valor-dissociação seria o princípio – ou a lógica - da forma social na qual se realiza o capital.
Roswitha Scholz afirma que, no capitalismo, a formação do valor não obedece apenas a um conjunto de processos econômico e políticos, mas diz respeito sobretudo a uma relação sócio-psíquica específica: “determinadas qualidades, atitudes e sentimentos avaliados como menores (sensualidade, emocionalidade, fraqueza de caráter e de entendimento, etc.) são projectados sobre 'a mulher' e dissociados pelo sujeito masculino, que se constrói como forte, realizador, concorrencial, eficiente e por aí fora. Por isso também tem de ser levada em consideração a correspondente dimensão sócio-psicológica, bem como a dimensão cultural-simbólica, com o que o patriarcado produtor de mercadorias (grifo nosso, DC) há-de ser apreendido como modelo civilizacional, e não apenas como um sistema econômico” (Scholz, 2004 b).
Parecem claras, assim, as conseqüências políticas de uma teoria desse tipo. O capital não é somente uma conjunto de processos econômicos e políticos de produção de mercadorias. É, sobretudo, um sistema patriarcal de formação de valor. E a sua superação em direção a uma comunidade humana emancipada exige que não se perca de vista essas duas dimensões do complexo em questão: a “sexual” (sócio-psíquica) e a econômico-política.
Scholz argumenta que o valor-dissociação é um processo histórico que acompanha o processo de “trabalho abstrato” (produção de mercadorias), por um lado, e “trabalho doméstico”, por outro. Nos tempos contemporâneos, o valor-dissociação apresenta novas características, diferentes das dos primórdios do capitalismo. Segundo a filósofa, “a tradicional família nuclear está a dissolver-se e, com ela, também a clássica relação moderna entre os sexos. Sob muitos aspectos, as mulheres – pelo menos na Alemanha – já se equipararam aos homens, por exemplo no que diz respeito às habilitações escolares e acadêmicas. Contrariamente ao velho ideal da dona de casa, as mulheres ora individualizadas são consideradas 'duplamente socializadas', ou seja, responsáveis tanto pela família como pela profissão.”
É justamente essa “dupla socialização”, que exige da mulher as tarefas de responder às exigências da sua profissão e da família, sem ter por seu trabalho o mesmo reconhecimento que os homens, que configura, não o desaparecimento do patriarcado, como querem algumas teorias, mas o seu asselvajamento. Nas palavras de Scholz (2004), “ao contrário dos homens, elas continuam a ser as primeiras responsáveis pelas atividades reprodutivas dissociadas, continuam a ganhar menos que os homens, têm menos oportunidades de ascensão etc. Portanto, com a era da globalização temos de lidar não com a abolição do patriarcado, mas apenas com o seu asselvajamento (grifo nosso, DC), uma vez que as instituições trabalho e família se diluem cada vez mais na crise do sistema de produção de mercadorias, sem que outras formas de reprodução seja colocadas em seu lugar.”
Em que pese as discordâncias que temos em relação a algumas das concepções teóricas de Roswitha Scholz (p. ex.: o conceito de classes sociais e a categoria de pós-modernidade), acreditamos que suas reflexões são absolutamente pertinentes para que compreendamos a íntima relação entre a dominação econômico-política exercida pelo capital e a discriminação de gênero predominante na sociedade burguesa. Scholz é uma autora que nos adverte de maneira precisa e contundente sobre como, em nossos dias, necessitamos compreender ambas as questões de maneira igual, e colocá-las conjuntamente na ordem do dia das nossas reivindicações históricas. Por isso, o convite que ora realizamos para a leitura e debate de suas formulações críticas.
Referências:
SCHOLZ, Roswitha. A teoria da dissociação sexual e a teoria crítica de Adorno. In: http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz9.htm (2004).
SCHOLZ, Roswitha. A nova crítica social e o problema das diferenças. In http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz3.htm (2004 b).
SINGER, Paul. O capitalismo: sua evolução, sua lógica e sua dinâmica. São Paulo: Moderna, 1987.
De maneira bem sucinta, costuma-se definir o capital, nas pegadas de Marx, como um processo de mudança do valor, ou, como nos informa Paul Singer (1987, p. 27), o capital é “valor que se valoriza”. Para que ocorra essa “valorização do valor”, a riqueza inicial deve passar por uma metamorfose. O capital-dinheiro inicial deve passar a ser capital-mercadoria (isto é, o capitalista, possuidor do dinheiro, deve adquirir por seu intermédio as seguintes mercadorias: meios de produção e força de trabalho). Os trabalhadores, então, mediante sua força de trabalho (que é uma mercadoria que eles vendem ao capitalista), colocarão em movimento os meios de produção (também mercadorias compradas pelo capitalista) e darão origem a novos produtos (novas mercadorias). Estas, por sua vez, precisarão ser realizadas, isto é, vendidas no mercado a fim de se obter novamente capital-dinheiro. Ao longo desse processo, a mercadoria que aparecerá no fim da cadeia valerá mais que as mercadorias que estavam dadas no início. Nesse contexto, em condições “normais”, também o capital-dinheiro que resultará da venda dessas mercadorias será maior que o capital-dinheiro que o capitalista possuía naquele primeiro momento. (Via de regra, o capital do fim do ciclo será, grosso modo, igual ao capital inicial mais o lucro, que é expressão da mais-valia em dinheiro). O valor acrescido no processo de produção das mercadorias é resultante do trabalho dos trabalhadores. É o trabalho, em suma, que produz esse acréscimo de valor. No fim do ciclo, portanto, o valor se transformou. (Diz-se que o valor se valorizou). Uma parte dessa nova soma é usada para pagar os salários dos trabalhadores, os gastos com a reposição dos meios de produção, os impostos, etc. e restituir assim o valor inicial. A outra parte do valor, o “mais-valor” - ou mais-valia, isto é, o valor que foi produzido pelos trabalhadores sobre o valor tido no início e que não retornou a eles -, é apropriada pelo capitalista.
Segundo Marx, esse processo é eminentemente fetichista. Ou seja, conforme tudo isso se desenrola, as relações sociais mediadas pela troca de mercadorias/dinheiro ganham “vida própria”, parcialmente se autonomizam, se invertem e se voltam contra os trocadores do mercado (sejam eles capitalistas ou trabalhadores). É como se as mercadorias, o dinheiro, o capital, se tornassem os “sujeitos” do seu próprio processo de produção e reprodução, e as pessoas, nesse movimento, se convertessem em “objetos”, apêndices do sistema. (As pessoas adquiririam a condição de “coisas”). É como se, enfim, o valor fosse um atributo das coisas mesmas, e não o produto da atividade de seres humanos no seu processo de vir-a-ser histórico. (As coisas revestir-se-iam, assim, de “propriedades humanas”). Em síntese, o que é uma construção histórica (a formação do valor) passa a se realizar “automaticamente” e vista, nesse contexto, como “natural”.
Roswitha Scholz partirá disso. Acrescentará, contudo, a tese de que, nesse processo, as propriedades que num determinado contexto são relacionadas ao feminino, - que podem consistir, por exemplo, desde a educação dos filhos, passando pelo “trabalho” doméstico, até o “amor” - são dissociadas da produção do valor. Nas suas palavras, “de acordo com a teoria da dissociação-valor, [...] tanto as atividades reprodutivas femininas quanto os sentimentos, qualidades e atitudes a elas ligados ou associados [...] – esta a tese – são dissociados do valor” (Scholz, 2004). Desse modo, o valor-dissociação seria o princípio – ou a lógica - da forma social na qual se realiza o capital.
Roswitha Scholz afirma que, no capitalismo, a formação do valor não obedece apenas a um conjunto de processos econômico e políticos, mas diz respeito sobretudo a uma relação sócio-psíquica específica: “determinadas qualidades, atitudes e sentimentos avaliados como menores (sensualidade, emocionalidade, fraqueza de caráter e de entendimento, etc.) são projectados sobre 'a mulher' e dissociados pelo sujeito masculino, que se constrói como forte, realizador, concorrencial, eficiente e por aí fora. Por isso também tem de ser levada em consideração a correspondente dimensão sócio-psicológica, bem como a dimensão cultural-simbólica, com o que o patriarcado produtor de mercadorias (grifo nosso, DC) há-de ser apreendido como modelo civilizacional, e não apenas como um sistema econômico” (Scholz, 2004 b).
Parecem claras, assim, as conseqüências políticas de uma teoria desse tipo. O capital não é somente uma conjunto de processos econômicos e políticos de produção de mercadorias. É, sobretudo, um sistema patriarcal de formação de valor. E a sua superação em direção a uma comunidade humana emancipada exige que não se perca de vista essas duas dimensões do complexo em questão: a “sexual” (sócio-psíquica) e a econômico-política.
Scholz argumenta que o valor-dissociação é um processo histórico que acompanha o processo de “trabalho abstrato” (produção de mercadorias), por um lado, e “trabalho doméstico”, por outro. Nos tempos contemporâneos, o valor-dissociação apresenta novas características, diferentes das dos primórdios do capitalismo. Segundo a filósofa, “a tradicional família nuclear está a dissolver-se e, com ela, também a clássica relação moderna entre os sexos. Sob muitos aspectos, as mulheres – pelo menos na Alemanha – já se equipararam aos homens, por exemplo no que diz respeito às habilitações escolares e acadêmicas. Contrariamente ao velho ideal da dona de casa, as mulheres ora individualizadas são consideradas 'duplamente socializadas', ou seja, responsáveis tanto pela família como pela profissão.”
É justamente essa “dupla socialização”, que exige da mulher as tarefas de responder às exigências da sua profissão e da família, sem ter por seu trabalho o mesmo reconhecimento que os homens, que configura, não o desaparecimento do patriarcado, como querem algumas teorias, mas o seu asselvajamento. Nas palavras de Scholz (2004), “ao contrário dos homens, elas continuam a ser as primeiras responsáveis pelas atividades reprodutivas dissociadas, continuam a ganhar menos que os homens, têm menos oportunidades de ascensão etc. Portanto, com a era da globalização temos de lidar não com a abolição do patriarcado, mas apenas com o seu asselvajamento (grifo nosso, DC), uma vez que as instituições trabalho e família se diluem cada vez mais na crise do sistema de produção de mercadorias, sem que outras formas de reprodução seja colocadas em seu lugar.”
Em que pese as discordâncias que temos em relação a algumas das concepções teóricas de Roswitha Scholz (p. ex.: o conceito de classes sociais e a categoria de pós-modernidade), acreditamos que suas reflexões são absolutamente pertinentes para que compreendamos a íntima relação entre a dominação econômico-política exercida pelo capital e a discriminação de gênero predominante na sociedade burguesa. Scholz é uma autora que nos adverte de maneira precisa e contundente sobre como, em nossos dias, necessitamos compreender ambas as questões de maneira igual, e colocá-las conjuntamente na ordem do dia das nossas reivindicações históricas. Por isso, o convite que ora realizamos para a leitura e debate de suas formulações críticas.
Referências:
SCHOLZ, Roswitha. A teoria da dissociação sexual e a teoria crítica de Adorno. In: http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz9.htm (2004).
SCHOLZ, Roswitha. A nova crítica social e o problema das diferenças. In http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz3.htm (2004 b).
SINGER, Paul. O capitalismo: sua evolução, sua lógica e sua dinâmica. São Paulo: Moderna, 1987.
terça-feira, 8 de dezembro de 2009
Decifrando o fetichismo destrutivo do capital: breve reflexão a partir de Marx e Mészáros
Um dos principais temas desenvolvidos por István Mészáros no livro O desafio e o fardo do tempo histórico diz respeito à forma como o sistema do capital instaura uma temporalidade “reificada” (coisificada) sobre o metabolismo social. O metabolismo social foi um tema tratado já por Marx, em seus escritos, no século XIX, e diz respeito às relações que os homens e mulheres estabelecem entre si e com a natureza no processo de produção e reprodução de suas vidas. Conforme a história humana se processa, as formas que regem esse metabolismo se modificam. Por exemplo: nas antigas comunas rurais que existiram durante quase toda a Idade Média na Inglaterra, na França e na Alemanha (neste país eram chamadas de marks, ou “associações de marca”), onde a terra era propriedade comum e considerada como pátria pelos homens livres da época, a lógica que comandava o metabolismo social era de um tipo. No capitalismo, formação social na qual nos situamos hoje, sistema baseado na propriedade privada dos meios de produção, na exploração do trabalho, na produção de mercadorias, etc., o metabolismo se realiza a partir de uma forma completamente diferente.
O metabolismo social se dá no tempo, e as temporalidades – os ritmos das várias atividades que compõem as múltiplas instâncias das vidas dos indivíduos sociais - de cada formação social são determinadas pela lógica que, em cada momento histórico particular, comanda a relação dos homens entre si e com a natureza no processo de produção e reprodução de suas existências. Conforme modifica-se essa lógica, transformam-se também os “tempos históricos” das pessoas em suas épocas específicas. Daí que o tempo para um sujeito de uma comuna alemã do século XV seria algo bem diverso do tempo para uma pessoa que vive no capitalismo do século XXI. Neste sistema social, a produção, a circulação e distribuição dos produtos, e o seu consumo, são comandados pela lógica do capital, que imprime assim certas características sui generis sobre a temporalidade dos indivíduos. Essa temporalidade passa a ser determinada, justamente, pelos processos de produção de mercadorias, que adquirem preponderância sobre os interesses conscientes das pessoas e as converte em “apêndices” do sistema. Mészáros, na esteira de Marx, dirá que temporalidade do capital absorve e incorpora as atividades dos seres humanos e os transforma em “carcaças do tempo”. Como explica o filósofo húngaro (2007, p. 43),
“no interior da estrutura do sistema socioeconômico existente, uma multiplicidade de interconexões potencialmente dialéticas é reproduzida na forma de dualismos, dicotomias e antinomias práticas perversas, que reduzem os seres humanos à condição reificada (por meio da qual eles são trazidos a um denominador comum com as 'locomotivas' e outras máquinas e tornam-se substituíveis por elas) e à posição ignominiosa de 'carcaça do tempo'."
O capital realiza-se, então, a partir de um conjunto de processos que articula e estrutura os tempos do metabolismo social. Esse fenômeno é provocado pela própria atividade produtiva humana que se organiza hierarquicamente, se divide e se volta contra os sujeitos dessas ações. Os produtos da atividade humana se tornam como “coisas”, como entidades estranhas, apartadas, alienadas dos sujeitos da produção. O capital é, nesse contexto, ele também, o próprio trabalho passado “coisificado” (reificado).
Como é sabido, esses são aspectos de um problema que foi abordado primeiramente por Marx em O capital, o problema do fetichismo. Ao analisar as chamadas “sutilezas metafísicas e argúcias teológicas” da mercadoria, o filósofo alemão explicou que:
“a mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la como relação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho. Através dessa dissimulação, os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais, com propriedades perceptíveis e imperceptíveis aos sentidos. [...] Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar um símile, temos de recorrer à região nebulosa da crença. Aí, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas que mantêm relações entre si e com os seres humanos. É o que ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo a isto de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável da produção de mercadorias.” (Marx, s/d, p. 81)
O fetichismo é assim definido como o processo pelo qual homens e mulheres, durante a produção de suas condições de existência, desenvolvem relações sociais (por exemplo, mercadorias) que, em dado momento, ganham uma vida “independente”, relativamente autônoma, e que se voltam, em seguida, contra os sujeitos dessas ações, submetendo-os. A relação das pessoas no interior desse sistema torna-se, assim, uma relação “coisificada”, pois é como se elas, as pessoas, deixassem de controlar as coisas que produzem e passassem a ser controladas por essas coisas. Em outras palavras, é como se as coisas se tornassem “sujeitos” e os sujeitos, “coisas”. Como conseqüência, a atividade consciente se eclipsa a fim de que adquiram preponderância as relações entre as coisas (mercadorias!). Não há uma escolha livre, social e democraticamente planejada sobre a produção e o consumo global realizado. Há apenas o livre movimentar-se das coisas, das mercadorias, do dinheiro, do capital. As relações sociais de produção e troca como que se “enfeitiçam”, e tudo isso se dá com uma “naturalização” dessas relações num duplo sentido: objetivo e subjetivo.
Isso ainda é observado no século XXI, visto que continuamos vivendo dentro de um sistema de produção de mercadorias. Tal como no século XIX, quando Marx teorizou de forma pioneira sobre esses fenômenos, sofremos os efeitos do fetichismo da mercadoria, do dinheiro, do capital. Mas, se podemos constatar a continuidade desse processo, não haveria também alguma diferença entre a época do autor de O capital e a nossa? O que mudou de lá pra cá? Que se pode dizer sobre o fenômeno do fetichismo em nossos dias? Quais determinações compõem hoje a sua concretude? Acreditamos que a obra de István Mészáros nos fornece algumas pistas.
*
Segundo Mészáros, ocorreram nas últimas quatro décadas transformações importantes que redefiniram os parâmetros produtivos e distributivos do capitalismo em sua inteireza. Nesse contexto, o capital se apresenta, como dissemos, como uma forma de controle do metabolismo social que se define pela submissão dos trabalhadores aos produtos do seu trabalho. Verifica-se, de fato, a presença de um comando sobre o trabalho que se afirma enquanto um poder separado, tanto do trabalhador como do próprio processo de trabalho. Esse fenômeno exige a produção de personificações do capital e do trabalho, isto é, pessoas que, enquanto individualidades e enquanto classe, assumem, como sentido de suas existências, os valores e fins que expressam as necessidades do processo de reprodução ampliada do capital.
O capital é, então, como explica Mészáros, um processo onde “o poder que domina o trabalhador é, de forma circular, o poder do próprio trabalho social transformado”, que “funda a si próprio na ‘situação fetichizada na qual o produto é o proprietário do produtor’”. (Mészáros, apud Lessa, 1998, p. 1). Faz parte desse processo uma tendência expansionista que submete toda a existência social à sua lógica.
Mészáros explica que, depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o principal antagonismo enfrentado pelo capital foi o de, mantendo-se o controle do metabolismo social vigente até então, ampliar o consumo na mesma dimensão com que se desenvolviam as forças produtivas. A fim de resolver essa contradição, o capital lançou mão de algumas estratégias. Em primeiro lugar, procurou aumentar o consumo pela estruturação de um mercado consumidor de massas que teve no Welfare State sua necessária regulamentação política. Em segundo lugar, buscou intensificar o caráter destrutivo do sistema pela adoção da estratégia de obsolescência planejada, que acelerou a tendência à aproximação funcional entre consumo e destruição dos produtos sociais. Esse fenômeno chegou, em dado momento, ao seu ápice e conseguiu mesmo produzir a identificação entre consumo e destruição em setores econômicos da maior importância, como, por exemplo, o Complexo Industrial Militar.
Para Mészáros, contudo, tanto o Welfare State quanto a intensificação da destrutividade – representada tanto pela obsolescência planejada quanto pelo Complexo Industrial Militar - não seriam outra coisa que não a forma que assumiu, no pós-guerra, a crise estrutural do sistema do capital. O Welfare State respondeu pelo primeiro momento dessa crise, de 1945 até meados da década de 1970. Desde então, a crise estrutural enfrenta a sua segunda fase, caracterizada por um continuum de depressão, que tende a abolir mesmo os mecanismos de controle que existiram nas crises passadas. Lessa (1998, p. 2) explica que, para Mészáros, esses acontecimentos comprovam a velha concepção marxiana de que
“a tendência do capital à expansão nada mais é, ao fim e ao cabo, que a tendência à expansão de riqueza humana alienada, — e, nesse sentido, é uma tendência à expansão, intensiva e extensiva, da destrutividade das relações sociais. Ao ampliarem suas forças produtivas sob a regência do capital, os homens terminam por ampliar também sua desumanidade, o que se expressa concentradamente, hoje, na ampliação de suas capacidades de autodestruição. Não apenas pela produção de armas de destruição maciça, mas também pela destruição mais danosa para a humanidade: a de individualidades reduzidas à força de trabalho excedente.”
Assim, reprodução do capital e produção destrutiva se tornaram, hoje, para Mészáros, sinônimos. O sistema do capital de alimenta, hoje, de produzir destruição. Com base, então, no autor de Para além do capital, acreditamos ser possível afirmar que o fetichismo que se verifica nos dias atuais possui um caráter eminentemente destrutivo.
Pensamos, então, que uma grande e importante questão que se coloca, hoje, para as forças sociais que pretendem superar a ordem atualmente estabelecida, é: como resistir e superar aos processos fetichistas e destrutivos que compõem a substância do capital? Isto é, diante da atual condição em que nos encontramos, submetidos a processos sócio-metabólicos dominados por uma lógica essencialmente destrutiva, como é possível organizar-se social e politicamente para enfrentar e ir além do atual estado de coisas?
Nas pegadas de Mészáros, acreditamos que, para transcender essa situação no sentido da construção de uma comunidade humana emancipada, é preciso uma proposta que não se limite a uma atitude defensiva, mas que seja eminentemente ofensiva. Isto é, que não se restrinja às lutas que se desenvolvem meramente no âmbito da política, mas que seja fundamentalmente social. Nesse contexto, as várias possibilidades de intervenção social e cultural que temos à disposição atualmente podem e devem contribuir para esse projeto na medida em que são capazes de fomentar a generalização de um pensamento e ação críticos, que sejam negativos em relação a esta ordem de coisas dada, e que sejam afirmativos a ponto de estabelecer os princípios de construção de uma ordem radicalmente alternativa, sustentável, socialista. A generalização do pensamento e da ação críticos é um dos pontos fundamentais da teoria política de István Mészaros para a superação da ordem do capital, que comentaremos em postagens posteriores.
Referências:
LESSA, Sérgio. Beyond Capital – a atualidade do projeto socialista,1998. In http://www. sergiolessa.com/
MARX, Karl. O capital - Crítica da economia política. Livro primeiro: o processo de produção do capital. Volume 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, s/d.
MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007.
O metabolismo social se dá no tempo, e as temporalidades – os ritmos das várias atividades que compõem as múltiplas instâncias das vidas dos indivíduos sociais - de cada formação social são determinadas pela lógica que, em cada momento histórico particular, comanda a relação dos homens entre si e com a natureza no processo de produção e reprodução de suas existências. Conforme modifica-se essa lógica, transformam-se também os “tempos históricos” das pessoas em suas épocas específicas. Daí que o tempo para um sujeito de uma comuna alemã do século XV seria algo bem diverso do tempo para uma pessoa que vive no capitalismo do século XXI. Neste sistema social, a produção, a circulação e distribuição dos produtos, e o seu consumo, são comandados pela lógica do capital, que imprime assim certas características sui generis sobre a temporalidade dos indivíduos. Essa temporalidade passa a ser determinada, justamente, pelos processos de produção de mercadorias, que adquirem preponderância sobre os interesses conscientes das pessoas e as converte em “apêndices” do sistema. Mészáros, na esteira de Marx, dirá que temporalidade do capital absorve e incorpora as atividades dos seres humanos e os transforma em “carcaças do tempo”. Como explica o filósofo húngaro (2007, p. 43),
“no interior da estrutura do sistema socioeconômico existente, uma multiplicidade de interconexões potencialmente dialéticas é reproduzida na forma de dualismos, dicotomias e antinomias práticas perversas, que reduzem os seres humanos à condição reificada (por meio da qual eles são trazidos a um denominador comum com as 'locomotivas' e outras máquinas e tornam-se substituíveis por elas) e à posição ignominiosa de 'carcaça do tempo'."
O capital realiza-se, então, a partir de um conjunto de processos que articula e estrutura os tempos do metabolismo social. Esse fenômeno é provocado pela própria atividade produtiva humana que se organiza hierarquicamente, se divide e se volta contra os sujeitos dessas ações. Os produtos da atividade humana se tornam como “coisas”, como entidades estranhas, apartadas, alienadas dos sujeitos da produção. O capital é, nesse contexto, ele também, o próprio trabalho passado “coisificado” (reificado).
Como é sabido, esses são aspectos de um problema que foi abordado primeiramente por Marx em O capital, o problema do fetichismo. Ao analisar as chamadas “sutilezas metafísicas e argúcias teológicas” da mercadoria, o filósofo alemão explicou que:
“a mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la como relação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho. Através dessa dissimulação, os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais, com propriedades perceptíveis e imperceptíveis aos sentidos. [...] Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar um símile, temos de recorrer à região nebulosa da crença. Aí, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas que mantêm relações entre si e com os seres humanos. É o que ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo a isto de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável da produção de mercadorias.” (Marx, s/d, p. 81)
O fetichismo é assim definido como o processo pelo qual homens e mulheres, durante a produção de suas condições de existência, desenvolvem relações sociais (por exemplo, mercadorias) que, em dado momento, ganham uma vida “independente”, relativamente autônoma, e que se voltam, em seguida, contra os sujeitos dessas ações, submetendo-os. A relação das pessoas no interior desse sistema torna-se, assim, uma relação “coisificada”, pois é como se elas, as pessoas, deixassem de controlar as coisas que produzem e passassem a ser controladas por essas coisas. Em outras palavras, é como se as coisas se tornassem “sujeitos” e os sujeitos, “coisas”. Como conseqüência, a atividade consciente se eclipsa a fim de que adquiram preponderância as relações entre as coisas (mercadorias!). Não há uma escolha livre, social e democraticamente planejada sobre a produção e o consumo global realizado. Há apenas o livre movimentar-se das coisas, das mercadorias, do dinheiro, do capital. As relações sociais de produção e troca como que se “enfeitiçam”, e tudo isso se dá com uma “naturalização” dessas relações num duplo sentido: objetivo e subjetivo.
Isso ainda é observado no século XXI, visto que continuamos vivendo dentro de um sistema de produção de mercadorias. Tal como no século XIX, quando Marx teorizou de forma pioneira sobre esses fenômenos, sofremos os efeitos do fetichismo da mercadoria, do dinheiro, do capital. Mas, se podemos constatar a continuidade desse processo, não haveria também alguma diferença entre a época do autor de O capital e a nossa? O que mudou de lá pra cá? Que se pode dizer sobre o fenômeno do fetichismo em nossos dias? Quais determinações compõem hoje a sua concretude? Acreditamos que a obra de István Mészáros nos fornece algumas pistas.
*
Segundo Mészáros, ocorreram nas últimas quatro décadas transformações importantes que redefiniram os parâmetros produtivos e distributivos do capitalismo em sua inteireza. Nesse contexto, o capital se apresenta, como dissemos, como uma forma de controle do metabolismo social que se define pela submissão dos trabalhadores aos produtos do seu trabalho. Verifica-se, de fato, a presença de um comando sobre o trabalho que se afirma enquanto um poder separado, tanto do trabalhador como do próprio processo de trabalho. Esse fenômeno exige a produção de personificações do capital e do trabalho, isto é, pessoas que, enquanto individualidades e enquanto classe, assumem, como sentido de suas existências, os valores e fins que expressam as necessidades do processo de reprodução ampliada do capital.
O capital é, então, como explica Mészáros, um processo onde “o poder que domina o trabalhador é, de forma circular, o poder do próprio trabalho social transformado”, que “funda a si próprio na ‘situação fetichizada na qual o produto é o proprietário do produtor’”. (Mészáros, apud Lessa, 1998, p. 1). Faz parte desse processo uma tendência expansionista que submete toda a existência social à sua lógica.
Mészáros explica que, depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o principal antagonismo enfrentado pelo capital foi o de, mantendo-se o controle do metabolismo social vigente até então, ampliar o consumo na mesma dimensão com que se desenvolviam as forças produtivas. A fim de resolver essa contradição, o capital lançou mão de algumas estratégias. Em primeiro lugar, procurou aumentar o consumo pela estruturação de um mercado consumidor de massas que teve no Welfare State sua necessária regulamentação política. Em segundo lugar, buscou intensificar o caráter destrutivo do sistema pela adoção da estratégia de obsolescência planejada, que acelerou a tendência à aproximação funcional entre consumo e destruição dos produtos sociais. Esse fenômeno chegou, em dado momento, ao seu ápice e conseguiu mesmo produzir a identificação entre consumo e destruição em setores econômicos da maior importância, como, por exemplo, o Complexo Industrial Militar.
Para Mészáros, contudo, tanto o Welfare State quanto a intensificação da destrutividade – representada tanto pela obsolescência planejada quanto pelo Complexo Industrial Militar - não seriam outra coisa que não a forma que assumiu, no pós-guerra, a crise estrutural do sistema do capital. O Welfare State respondeu pelo primeiro momento dessa crise, de 1945 até meados da década de 1970. Desde então, a crise estrutural enfrenta a sua segunda fase, caracterizada por um continuum de depressão, que tende a abolir mesmo os mecanismos de controle que existiram nas crises passadas. Lessa (1998, p. 2) explica que, para Mészáros, esses acontecimentos comprovam a velha concepção marxiana de que
“a tendência do capital à expansão nada mais é, ao fim e ao cabo, que a tendência à expansão de riqueza humana alienada, — e, nesse sentido, é uma tendência à expansão, intensiva e extensiva, da destrutividade das relações sociais. Ao ampliarem suas forças produtivas sob a regência do capital, os homens terminam por ampliar também sua desumanidade, o que se expressa concentradamente, hoje, na ampliação de suas capacidades de autodestruição. Não apenas pela produção de armas de destruição maciça, mas também pela destruição mais danosa para a humanidade: a de individualidades reduzidas à força de trabalho excedente.”
Assim, reprodução do capital e produção destrutiva se tornaram, hoje, para Mészáros, sinônimos. O sistema do capital de alimenta, hoje, de produzir destruição. Com base, então, no autor de Para além do capital, acreditamos ser possível afirmar que o fetichismo que se verifica nos dias atuais possui um caráter eminentemente destrutivo.
Pensamos, então, que uma grande e importante questão que se coloca, hoje, para as forças sociais que pretendem superar a ordem atualmente estabelecida, é: como resistir e superar aos processos fetichistas e destrutivos que compõem a substância do capital? Isto é, diante da atual condição em que nos encontramos, submetidos a processos sócio-metabólicos dominados por uma lógica essencialmente destrutiva, como é possível organizar-se social e politicamente para enfrentar e ir além do atual estado de coisas?
Nas pegadas de Mészáros, acreditamos que, para transcender essa situação no sentido da construção de uma comunidade humana emancipada, é preciso uma proposta que não se limite a uma atitude defensiva, mas que seja eminentemente ofensiva. Isto é, que não se restrinja às lutas que se desenvolvem meramente no âmbito da política, mas que seja fundamentalmente social. Nesse contexto, as várias possibilidades de intervenção social e cultural que temos à disposição atualmente podem e devem contribuir para esse projeto na medida em que são capazes de fomentar a generalização de um pensamento e ação críticos, que sejam negativos em relação a esta ordem de coisas dada, e que sejam afirmativos a ponto de estabelecer os princípios de construção de uma ordem radicalmente alternativa, sustentável, socialista. A generalização do pensamento e da ação críticos é um dos pontos fundamentais da teoria política de István Mészaros para a superação da ordem do capital, que comentaremos em postagens posteriores.
Referências:
LESSA, Sérgio. Beyond Capital – a atualidade do projeto socialista,1998. In http://www. sergiolessa.com/
MARX, Karl. O capital - Crítica da economia política. Livro primeiro: o processo de produção do capital. Volume 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, s/d.
MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007.
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