sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Para além do fetichismo do capital - Pequena meditação sobre o sentido atual de ser comunista

Há uma passagem marcante, nos Manuscritos econômico-filosóficos, onde Marx descreve, com entusiasmo e admiração, suas observações acerca das reuniões de trabalhadores franceses, que ele conheceu pessoalmente em Paris, em 1844:

“Quando os operários comunistas se reúnem, a doutrina, a propaganda, etc. constituem as finalidades imediatas. Mas, ao mesmo tempo, criam uma nova necessidade, a necessidade da sociedade, e o que aparece como meio tornou-se fim. É possível apreciar este movimento prático nos seus mais brilhantes efeitos, ao notar as aglomerações de trabalhadores socialistas franceses. Fumar, beber, comer, etc. já não são simples meios para reunir as pessoas. A sociedade, a associação, o entretenimento, que novamente tem a sociedade como seu objetivo, é o que basta para eles; a fraternidade humana não é uma frase vazia entre eles, mas uma verdade, e a nobreza da humanidade brilha nestas figuras endurecidas pelo trabalho.”

Como se sabe, a vida vivida sob o domínio das práticas sociais capitalistas nos põe todos os dias, individual e coletivamente, na condição de antagonistas em relação ao outro. Temos que produzir, que vender nossa força de trabalho, temos que ter dinheiro, que consumir, competir, concorrer, lucrar, tomar freqüentemente o outro como meio para a realização dos nossos fins individuais, e nos colocar também como instrumentos, como coisas, para que o outro, através de nós, satisfaça as suas necessidades egoístas. Conhecemos a dura realidade da alienação, da dominação, da exploração, da coisificação, da fragmentação e, não raro, da solidão. Como disse Carlos Drummond de Andrade: “Este é tempo de partido/ tempo de homens partidos/... / tempo de gente cortada/ De mãos viajando sem braços/ obscenos gestos avulsos”. As relações sociais estabelecidas dessa forma nos tornam amargos, angustiados, egoístas, mesquinhos, cruéis, bárbaros e brutos.

Com a fraternidade, a solidariedade, a camaradagem, isso se inverte. As outras pessoas, a sociedade, não são mais um meio para a realização dos nossos fins. São os nossos fins mesmos. Quando isso se estabelece, saímos momentaneamente do âmbito das relações alienantes do capitalismo. Superamos, ainda que de forma efêmera, essa estrutura de relações sociais que nos aprisiona, nos escraviza e faz com que nos tornemos como lobos para os nossos semelhantes.

Este é o sentido de ser comunista. Criar - se não for de forma permanente, que seja ao menos por breves instantes - luz dentro da ininterrupta tempestade barbarizante produzida pelo capital. Negar a ordem que nos coisifica e afirmar uma que nos humanize. Se, ao assim procederemos, em cada momento, afinarmos os canais da nossa percepção, poderemos quem sabe ouvir o eco das canções e risos daqueles trabalhadores franceses de outrora clamando em nossa direção. Assim, um sopro do ar fresco que envolveu a esses, que nos precederam, afagará de leve os nossos rostos e renovará o nosso ânimo para a luta.

Quereremos, nessa hora, prolongar esse momento, e nos daremos conta de que isso só se faz possível por meio de uma revolução. E então a revolução se tornará, pois, aquilo que de mais valioso haverá para nós. Não a reforma, não a capitulação, não a resignação, não o ego pessoal e as distrações cotidianas de que está cheio o mundo capitalista, não o conforto ou bem-estar material, mas a revolução. Isto será para nós uma questão de insuperável importância, de urgência mesmo, pois diz respeito às possibilidades de rumo que poderá tomar o nosso destino, se este será de liberdade, numa sociedade emancipada, ou de cativeiro, no redemoinho dos processos fetichistas do capital. E com base nesse ideal pautaremos nossas ações. Não de forma rígida, não de forma mecânica, nem linear, nem ditatorial conosco ou com os outros. Nem, obviamente, fetichista. A revolução não é para o comunista um fetiche. É, na verdade, a quebra e a superação de todo tipo de fetiche, é ir além do modo de organização social que vive de produzir fetiches.

A vida do comunista é dedicada então a... viver. A não se tornar um robô programado para produzir, possuir, consumir – objetos e pessoas -, gozar desse consumo e se auto-destruir com as coisas que consome. A não ser, enfim, mero espectador passivo do fluxo do devir da humanidade onde tem o ser. O comunista está convencido de que vive justamente quando supera essas imposições. E se as situações lhe determinam o isolamento e a solidão, ele estabelece um vínculo duradouro com o outro onde este se lhe aparece, não como meio, mas como fim.

Se tudo ao redor conspira para a inibição das suas melhores potencialidades, ele age, decidida e afirmativamente, para as exteriorizar, exercitando, dia após dia, as qualidades que lhe possibilitam realizar uma multiplicidade de “manifestações humanas de vida” (cf. Marx). Quando o conjunto das relações sociais, no interior das quais ele se faz, se estrutura de maneira a adquirir o sentido da afirmação de uma oposição entre ele e os seus semelhantes, entre ele e a natureza, entre ele e as suas constituições mais essenciais, e até com os frutos do seu trabalho, o comunista luta para transformar essas relações e eliminar essa oposição.

Sabe ele que vale a pena lutar por isso e que as revoluções são possíveis. Sabe que vieram outros antes que, em embates semelhantes, tiveram muitas derrotas, mas tiveram também vitórias. Sabe, sobretudo, onde está e quem é o seu inimigo, ainda que porventura, numa dada conjuntura histórica, possa não ter a clareza e a precisão exigidas a respeito dos passos necessários para derrotá-lo. Essa clareza ele buscará na práxis revolucionária, realizada em conjunto com aqueles camaradas seus imbuídos do mesmo ideal. É por intermédio dessa atividade profundamente inquiridora que ele tratará de encontrar as respostas para si e para os que estão em posição semelhante à sua.

O comunista não dispõe de bola de cristal, não tem gurus, nem cartomantes. A despeito disso, sabe exatamente o que quer e deixa as indecisões quanto aos objetivos de vida para os que, ao contrário dele, se limitam a transitar, conscientemente ou não, entre as inúmeras compensações, entorpecentes e mistificações que a sociedade burguesa é pródiga em produzir.

O comunista não é exatamente um otimista, pois é difícil o ser numa conjuntura tão sórdida, mórbida e bárbara. Está, em verdade, mais próximo de um pessimismo crítico. É alguém, sobretudo, que não renuncia a um tipo específico de : a fé profana na capacidade humana de resistir, de enfrentar aquilo que lhe oprime, de transformar para melhor a si e ao mundo em redor de si.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

A corrente inflamada da indignação não é solúvel nas águas mornas da resignação consensual

Como se reconhece nosso contemporâneo, o homo resignatus? Como se reconhecem nossos políticos bem moderados, os da direita do centro, da direita recentrada, assim como os da esquerda do centro, da esquerda recentrada? Como se reconhecem nossos intelectuais domésticos, especuladores da Bolsa ousados durante o dia e pregadores moralizantes durante a noite?

Por seus joelhos esfolados de tantas ajoelhações e genuflexões diante dos novos fetiches e dos velhos ídolos! Por suas costas curvas de tantos sapos engolidos e reverências vergadas diante do altar dos mercados! Por seu sangue gelado e por sua impassibilidade anfíbia diante da ordem impiedosa das coisas! Por sua soberba indiferença, de tantos acomodamentos e tantas renúncias consentidas!

Por que nós, que jamais fomos verdadeiramente modernos, deveríamos acordar de repente pós-modernos? Por que nós, que jamais fomos indiferentes, deveríamos nos descobrir de repente cínicos? Por que nós, que jamais renunciamos a rir de tudo - mas não com qualquer pessoa -, deveríamos a partir de agora nos contentar em zombar de nada?

Além da modernidade e da pós-modernidade, resta-nos a força irredutível da indignação, que é exatamente o contrário do hábito e da resignação. Mesmo que ainda se ignore o que poderia ser a justiça do justo, resta a dignidade e a incondicional recusa da injustiça.

A indignação é um começo. Uma maneira de se levantar e de entrar em ação. É preciso indignar-se, insurgir-se e só depois ver no que dá. É preciso indignar-se apaixonadamente, antes mesmo de descobrir as razões dessa paixão. Estabelecer-se os princípios antes de serem calculados os interesses e as oportunidades: “Que fosses frio ou quente, mas porque és morno, não és frio nem quente, eu te vomitarei da minha boca!" (1)

Nota:

(1) Apocalipse de são João, 3, 15-16.

Fonte:

BENSAÏD, Daniel. Os irredutíveis. Teoremas da resistência para o tempo presente. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 97-8.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

[Sobre o conceito de luta de classes] - Texto de Daniel Bensaïd

Não há, em O capital, definição classificatória e normativa das classes, mas um antagonismo dinâmico que ganha forma, em primeiro lugar, no nível do processo de produção, em seguida, no do processo de circulação e, finalmente, no da reprodução geral. As classes não são definidas somente pela relação de produção na empresa. Elas são determinadas ao longo de um processo em que se combinam as relações de propriedade, a luta pelo salário, a divisão do trabalho, as relações com os aparelhos de Estado e com o mercado mundial, as representações simbólicas e os discursos ideológicos. Portanto, o proletariado não pode ser definido de modo restritivo, em função do caráter produtivo ou não do trabalho, que entra somente no livro II de O capital, sobre o processo de circulação.

No século XIX, falava-se em classes trabalhadoras, no plural. O termo alemão Arbeiterklasse ou a expressão inglesa working class continuam extremamente genéricos. ‘Classe ouvrière’, dominante no vocabulário francês, tem uma conotação propícia a equívocos. Ela designa principalmente o proletário industrial, com exceção do assalariado de serviços e de comércio, que se submete a condições de exploração análogas do ponto de vista de sua relação com a propriedade dos meios de produção, de seu lugar na divisão do trabalho ou da forma salarial de sua renda.

Marx fala de proletários. Apesar de seu aparente desuso, o termo é ao mesmo tempo mais rigoroso e mais abrangente do que classe operária. Nas sociedades desenvolvidas, o proletariado da indústria e dos serviços representa de dois terços a quatro quintos da população ativa. A questão interessante não é a de seu anunciado desaparecimento, mas a de suas metamorfoses sociais e de suas representações políticas. Embora seu componente industrial propriamente dito tenha tido uma baixa efetiva nos últimos vinte anos, ainda estamos longe de sua extinção. Como ressaltam Stéphane Beaud e Michel Pialoux em sua pesquisa sobre Montbéliard, a ‘condição operária’ não desapareceu, ‘tornou-se invisível’. As ciências sociais universitárias têm certa responsabilidade nessa ocultação.

Internacionalmente, a tendência forte é à ‘proletarização do mundo’. Em 1900, a estimativa era de mais ou menos 50 milhões de trabalhadores assalariados em uma população global de 1 bilhão de habitantes. Calcula-se, hoje, por volta de 2 bilhões em uma população de 6 bilhões.

A questão é teórica, histórica e cultural, assim como sociológica. O historiador inglês E. P. Thompson dizia graciosamente que ‘não se pode falar de amor sem amantes’, nem de classes sem atores. Sua insistência na ‘formação’ das classes salienta que se trata ‘de um processo ativo’: elas não surgem em um determinado momento, ‘como o sol’, mas são ‘partes interessadas em sua própria formação’. Não se trata de uma estrutura imóvel nem de uma categoria definitiva, mas de um fenômeno histórico que não se pode cristalizar em um momento particular de seu desenvolvimento. Assim, pode-se falar de classe ‘quando após experiências comuns, que pertencem à sua herança compartilhada, os homens percebem e articulam seu interesse comum em oposição a outros homens cujos interesses colidem com os seus’. As classes se auto-produzem, segundo um processo de cristalização de interesses coletivos, de uma consciência desses interesses e de uma linguagem para expressá-los. Elas se situam no ponto de encontro entre um conceito teórico e uma declaração que nasce da luta. O sentimento de pertencer a uma classe resulta do trabalho político e simbólico, assim como de uma determinação sociológica.

Fonte:

BENSAÏD, Daniel. Os irredutíveis. Teoremas da resistência para o tempo presente. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 35-7.

Potências do comunismo [Sobre a atualidade do Manifesto Comunista] - Texto de Daniel Bensaïd

Em um artigo de 1843 sobre “os progressos da reforma social no continente”, o jovem Engels (20 anos) via o comunismo como “uma conclusão necessária que se é claramente obrigado a tirar a partir das condições gerais da civilização moderna”. Um comunismo lógico em resumo, produto da revolução de 1830, na qual os operários “voltaram às fontes vivas e ao estudo da grande revolução e se apoderaram vivamente do comunismo de Babeuf”. Para o jovem Marx, em troca, este comunismo não era ainda mais do que “uma abstração dogmática”, uma “manifestação original do princípio do humanismo”. O proletariado nascente havia “se jogado nos braços dos doutrinários de sua emancipação”, das “seitas socialistas”, e dos espíritos confusos que “divagam como humanistas” sobre “o milênio da fraternidade universal” como “abolição imaginária das relações de classe”.

Antes de 1848, este comunismo espectral, sem programa preciso, estava presente na atmosfera do tempo sob as formas “pouco polidas” das seitas igualitárias ou dos sonhos icarianos. No entanto, já então a superação do ateísmo abstrato implicava um novo materialismo social que não era outra coisa que o comunismo. “Assim como o ateísmo, enquanto negação de Deus, é o desenvolvimento do humanismo teórico, também o comunismo, enquanto negação da propriedade privada, é a reivindicação da vida humana verdadeira”. Longe de todo anticlericalismo vulgar, este comunismo era “o desenvolvimento de um humanismo prático”, para o qual não se tratava já só de combater a alienação religiosa, mas sim a alienação e a miséria sociais reais de onde nasce a necessidade da religião.

Da experiência fundadora de 1848 - ano que marca a primeira publicação do Manifesto Comunista, de Marx - à experiência da Comuna de Paris (1871), o “movimento real” que busca abolir a ordem estabelecida tomou forma e também força, dissipando as “loucuras sectárias” de então e expondo ao ridículo “o tom de oráculo da infalibilidade científica”. Dito de outra forma, o comunismo, que foi primeiramente mais um estado de espírito ou um, por assim dizer, “comunismo filosófico”, encontrava finalmente a sua forma de expressão política. Em um quarto de século, concretizou-se a sua mudança: de seus modos iniciais de aparição, de caráter filosófico e utópico, à sua forma política, por fim encontrada: a da emancipação.

1. As palavras da emancipação não saíram incólumes das tormentas do século passado. Pode-se dizer delas, como dos animais da fábula, que não morreram todas, mas que todas foram gravemente feridas. “Socialismo”, “revolução”, “anarquia” não estão em situação muito melhor que “comunismo”. O socialismo implicou-se no assassinato de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, nas guerras coloniais e colaborações governamentais até o ponto de perder todo o conteúdo à medida que ganhava em extensão. Uma metódica campanha ideológica conseguiu identificar, aos olhos de muitos, a revolução com a violência e o terror. Mas, de todas as palavras ontem portadoras de grandes promessas e sonhos de futuro, a do comunismo foi a que sofreu maior dano, por causa de sua captura pela razão burocrática do Estado e sua submissão a um empreendimento totalitário. Resta saber se, entre todas essas palavras feridas, há algumas que vale a pena reparar e pôr de novo em movimento.

2. É necessário para isso pensar o que ocorreu com o comunismo do século XX. A palavra e a coisa não podem ficar fora do tempo das provas históricas a que foram submetidos. O uso massivo do título “comunista” para designar o Estado liberal autoritário chinês pesará muito mais durante longo tempo, aos olhos da grande maioria, do que os frágeis brotos teóricos e experimentais de uma hipótese comunista. A tentação de subtrair um inventário histórico crítico conduziria a reduzir a idéia comunista a “invariantes” atemporais, a fazer dela um sinônimo das idéias indeterminadas de justiça ou de emancipação, e não a forma específica da emancipação na época da dominação capitalista. A palavra perde então em precisão política o que ganha em extensão ética ou filosófica. Uma das questões cruciais é saber se o despotismo burocrático é a continuação legítima da Revolução de Outubro ou o fruto de uma contra-revolução burocrática, verificada não só pelos processos, as purgas, as deportações massivas, mas também pelas convulsões dos anos 30 na sociedade e no aparato de Estado soviético.

3. Não se inventa uma nova palavra por decreto. O vocabulário se forma com o tempo, por meio de usos e experiências. Ceder à identificação do comunismo com a ditadura totalitária stalinista seria capitular diante dos vencedores provisórios, confundir a revolução e a contra-revolução burocrática, e fechar assim o capítulo das bifurcações, o único aberto à esperança. E seria cometer uma irreparável injustiça para com os vencidos, todas as pessoas, anônimas ou não, que viveram apaixonadamente a idéia comunista e que a vivenciaram contra suas caricaturas e falsificações. Vergonha daqueles que deixaram de ser comunistas ao deixar de ser stalinistas e que só foram comunistas enquanto foram stalinistas! (1)

4. De todas as formas de nomear “ao outro” necessário e possível do capitalismo imundo, a palavra comunismo é que conserva maior sentido histórico e carga programática explosiva. É a que evoca melhor o comum da partilha e da igualdade, o funcionamento comum do poder, a solidariedade frente ao cálculo egoísta e à concorrência generalizada, a defesa dos bens comuns da humanidade, naturais e culturais, a extensão aos bens de primeira necessidade de um espaço de gratuidade (desmercantilização) dos serviços, contra a rapina generalizada e a privatização do mundo.

5. É também o nome de uma medida diferente da riqueza social daquela da lei do valor e da avaliação mercantil. A competição “livre e não falseada” repousa sobre “o roubo do tempo de trabalho do outro”. Pretende quantificar o inquantificável e reduzir a sua miserável medida comum, mediante o tempo de trabalho abstrato, a incomensurável relação da espécie humana com as condições naturais de sua reprodução. O comunismo é o nome de um critério diferente de riqueza, de um desenvolvimento ecológico qualitativamente diferente da corrida quantitativa pelo crescimento. A lógica da acumulação do capital exige não só a produção para o lucro e não para as necessidades sociais, mas também “a produção de novo consumo”, a ampliação constante do círculo do consumo “mediante a criação de novas necessidades e pela criação de novos valores de uso”... “Daí a exploração da natureza inteira” e “a exploração da terra em todos os sentidos”. Esta desmedida devastadora do capital funda a atualidade de um eco-comunismo radical.

6. A questão do comunismo é primeiro, no Manifesto Comunista, a da propriedade: “Os comunistas podem resumir sua teoria nesta fórmula única: supressão da propriedade privada” dos meios de produção e de troca; não confundir com a propriedade individual dos bens de uso. Em “todos os movimentos, põem na frente a questão da propriedade, seja qual for o grau de evolução que tenha atingido, como a questão fundamental do movimento”. Dos dez pontos que concluem o primeiro capítulo, sete concernem às formas de propriedade: a expropriação da propriedade latifundiária e a vinculação da renda da terra aos gastos do Estado; a instauração de uma tributação fortemente progressiva; a supressão da herança dos meios de produção e de troca; o confisco dos bens dos emigrados rebeldes; a centralização do crédito em um banco público; a socialização dos meios de transporte e a construção de uma educação pública e gratuita para todos; a criação de manufaturas nacionais e a ocupação (para plantio) das terras sem cultivar. Estas medidas tendem todas elas a estabelecer o controle da democracia política sobre a economia, a primazia do bem comum sobre o interesse egoísta, do espaço público sobre o espaço privado. Não se trata de abolir toda forma de propriedade, mas sim “a propriedade privada de hoje, a propriedade burguesa”, o “modo de apropriação” fundado na exploração de uns pelos outros.

7. Entre dois direitos, o dos proprietários apropriarem-se dos bens comuns, e o dos despossuídos à existência, “é a força que decide”, diz Marx. Toda a história moderna da luta de classes, da guerra dos camponeses na Alemanha às revoluções sociais do século passado, passando pelas revoluções inglesa e francesa, é a história deste conflito. Resolve-se pela emergência de uma legitimidade oposta à legalidade dos dominantes. Como “forma política encontrada da emancipação”, como “abolição” do poder de Estado, como realização da república social, a Comuna ilustra a emergência desta nova legitimidade. Sua experiência inspirou as formas de auto-organização e de auto-gestão populares aparecidas nas crises revolucionárias: conselhos operários, soviets, comitês de milícias, cordões industriais, associações de vizinhos, comunas agrárias, que tendem a desprofissionalizar a política, a modificar a divisão social do trabalho, a criar as condições de extinção do Estado enquanto corpo burocrático separado.

8. Sob o reino do capital, todo progresso aparente tem sua contrapartida de regressão e de destruição. Em última instância, não consiste em mais do que mudar a forma de servidão. O comunismo exige uma idéia diferente e alguns critérios diferentes do que os do rendimento e da rentabilidade monetária. A começar pela redução drástica do tempo de trabalho obrigatório e a mudança da própria noção de trabalho: não poderá haver completo desenvolvimento individual no ócio ou no “tempo livre” enquanto o trabalhador permanecer alienado e mutilado no trabalho. A perspectiva comunista exige também uma mudança radical da relação entre o homem e a mulher: a experiência da relação entre os gêneros é a primeira experiência da alteridade e enquanto subsista essa relação de opressão, todo ser diferente, por sua cultura, sua cor, ou sua orientação sexual, será vítima de formas de discriminação e de dominação. O progresso autêntico reside, enfim, no desenvolvimento e na diferenciação de necessidades cuja combinação original faz de cada um e de cada uma um ser único, cuja singularidade contribui para o enriquecimento da espécie.

9. O Manifesto concebe o comunismo como “uma associação na qual o livre desenvolvimento de um é condição do livre desenvolvimento de todos”. Aparece assim como a máxima de um livre desenvolvimento individual que não deveria ser confundido nem com as ilusões de um individualismo sem individualidade submetido ao conformismo publicitário, nem como igualitarismo grosseiro de um socialismo de quartel. O desenvolvimento das necessidades e das capacidades singulares de cada um e de cada uma contribui para o desenvolvimento universal da espécie humana. Reciprocamente, o livre desenvolvimento de cada um e de cada uma implica o livre desenvolvimento de todos, pois a emancipação não é um prazer solitário.

10. O comunismo não é uma idéia pura, nem um modelo doutrinário de sociedade. Não é o nome de um regime estatal, nem o de um novo modo de produção. É o de um movimento que, de forma permanente, supera/suprime a ordem estabelecida. Mas é também o objetivo que, surgido deste movimento, o orienta e permite, contra políticas sem princípios, ações sem continuidade, improvisações diárias, determinar o que aproxima e o que afasta deste objetivo. Neste sentido, não é um conhecimento científico do objetivo e do caminho, mas sim uma hipótese estratégica reguladora. Nomeia, indissociavelmente, o sonho irredutível de um mundo diferente, de justiça, de igualdade e de solidariedade; o movimento permanente que aponta para a derrocada da ordem existente na época do capitalismo; e a hipótese que orienta este movimento na direção de uma mudança radical das relações de propriedade e de poder, a distância dos acomodamentos com um mal menor que seria o caminho mais curto para o pior.

11. A crise, social, econômica, ecológica e moral de um capitalismo que não retrocede diante de seus próprios limites e cuja desmedida e irracionalidade crescentes ameaçam ao mesmo tempo a espécie humana e o planeta, volta a colocar na ordem do dia “a atualidade de um comunismo radical”, invocado por Benjamin diante do aumento dos perigos do período entre guerras.

Nota
(1) Ver Mascolo, D. (2000) A la recherche d´un communisme de pensée. Paris : Editions Fourbis, p. 113.


(Daniel Bensaïd)


Versão em espanhol publicada na Revista Viento Sur, traducción de Alberto Nadal (http://www.vientosur.info/). Tradução para o português: Marco Aurélio Weissheimer. Publicado no site Carta Maior.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Lennon e Victor Jara

Em tempos de crise estrutural do sistema do capital, onde a bestialidade pulula e ameaça nos absorver por completo, ainda é possível encontrar lampejos de sensibilidade e delicadeza que são como uma lufada de ar fresco dentro de nossos espíritos. Tal é o caso dos autores deste belíssimo vídeo:



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quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Da incrível arte de tocar estrelas

(Para o Tex)





Ele poderia ter sido astrônomo, se assim tivesse quisto. Poderia ter sido navegante, poderia ter sido tantas outras coisas. A despeito de tudo, preferiu ser poeta, ser amigo das palavras, embebedar-se com elas em noites cheias de luar, flanar na madrugada, deslisar rente ao chão, deixar um rastro prateado pelo espaço atrás de si... E assim foi. E assim seguiu na vida.

***

Certa ocasião, ao fim de um desses rodopios cintilantes e noturnos, de longe viu passar uma estrela de luminosidade ímpar, com a qual seu coração de poeta jamais sonhara. Um estremecimento despontou na alma. A multidão de olhares que endereçou a ela parecia um cortejo triunfante que a seguia aonde quer que fosse.

Ela foi embora, se escondeu na luz do sol. Ele, vencido pela inevitável solidão, foi se abrigar entre os cordões da lira, a fim de encontrar a força para suportar a prisão sem muros da ausência. Dali, sempre que podia, soltava aos céus os sonhos que de si transbordavam, suspiros convertidos em balões-metáforas e em pandorgas-rimas, tomando, certamente, o cuidado necessário para que os ventos do desejo os levassem até o especialíssimo destino almejado. Era um alento e uma consolação, e também um refúgio e uma fonte de ânimo. Durante noites sem conta conversou assim com os olhos da amiga, nunca perdendo a esperança de poder achar um meio de profanar a gravidade, subverter a distância e atingir a utopia.

Muito tempo passou nessa rotina, até que, num belo dia, depois de um poema mandado – ora, vejam - por sinais de fumaça, o encanto se fez.

E então ela veio. E então se amaram...

***

Os astrônomos se deleitam com sua beleza, decifram-lhes o movimento e descobrem em suas entrelinhas segredos antiqüíssimos que contam sobre as origens desconhecidas do Universo.

Os navegantes tem-nas como guias e nessa companhia atravessam os mares, vivendo aventuras que pareciam estar especialmente preparadas para sua astúcia e coragem.

Mas somente aos poetas é dado tocar as estrelas.




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sábado, 2 de janeiro de 2010

Capítulos da Revolução Cubana - narrados por Eduardo Galeano

1959 – Havana - Cuba amanhece sem Batista

no primeiro dia do ano. Enquanto o ditador aterrissa em São Domingos e pede refúgio a seu colega Trujillo, em Havana os verdugos fogem, salve-se quem puder, em disparada.

Earl Smith, embaixador norte-americano, comprova, horrorizado, que as ruas foram invadidas pela ralé e por alguns guerrilheiros sujos, cabeludos, descalços, iguaizinhos à quadrilha de Dillinger, que dançam guaguancó marcando a tiros o ritmo.

1959 – Havana - “Só ganhamos o direito de começar”

diz Fidel, que chega no alto de um tanque, vindo da serra Maestra. Frente à multidão que fervilha, explica que é apenas o princípio tudo isso que parece o final. Enquanto fala, as pombas descansam em seus ombros.

A metade da terra está sem cultivar. As estatísticas dizem que o ano passado foi o mais próspero da história de Cuba; mas os camponeses, que não sabem ler estatísticas nem sabem ler nada não perceberam.

A partir de agora, outro galo cantará: para que cante, a reforma agrária e a alfabetização, como na serra, são as tarefas mais urgentes. E antes, a liquidação deste exército de açougueiros. Os mais ferozes vão para o paredón. O torturador chamado Quebraossos desmaia cada vez que o pelotão aponta para ele. É preciso amarrá-lo num poste.

1961 – Baía dos Porcos – Contra o vento,

contra a morte, sempre de ida, nunca de volta, a Revolução Cubana continua escandalosamente viva bem ali, a oito minutos de vôo de Miami.

Para acabar com a insolência, a CIA lança uma invasão a partir dos Estados Unidos, da Guatemala e da Nicarágua. No cais, Somoza II se despede dos expedicionários. O Exército Cubano de Libertação, que a CIA fabricou e pôs em funcionamento, está formado por militares e policiais da ditadura de Batista e pelos desalojados herdeiros das plantações de açúcar, dos bancos, dos jornais, dos garitos, dos bordéis e dos partidos políticos.

_Tragam-me alguns pêlos da barba de Castro! - encomenda Somoza.

Aviões dos Estados Unidos entram no céu de Cuba. Estão camuflados. Levam pintada a estrela da Força Aérea Cubana. Os aviões metralham, voando baixo, o povo que os saúda, e descarregam bombas sobre as cidades. Atrás do bombardeio, que prepara o terreno, os invasores desembarcam nos pântanos da baía dos Porcos. Enquanto isso, o presidente Kennedy joga golfe na Virgínia.

Kennedy deu a ordem, mas tinha sido Eisenhower quem tinha posto em ação o plano de invasão. Eisenhower tinha aprovado a invasão de Cuba na mesma escrivaninha onde antes tinha aprovado a invasão da Guatemala. O chefe da CIA, Alien Dules, garantiu-lhe que acabaria com Fidel Castro como tinha acabado com Arbenz. Seria coisa de algumas semanas, dia a mais, dia a menos, e a mesma equipe da CIA cuidaria do assunto: os mesmos homens, as mesmas bases. O desembarque dos libertadores desencadearia a insurreição popular na ilha submetida à tirania vermelha. Os espiões norte-americanos sabiam que o povo de Cuba, farto de entrar em filas, não esperava outra coisa além do sinal de rebelião.

1961 – Praia Girón – A segunda derrota militar dos Estados Unidos na América Latina

Em três dias Cuba acaba com os invasores. Entre os mortos, há quatro pilotos norte-americanos. Os sete navios, escoltados pela Marinha de Guerra dos Estados Unidos, fogem ou afundam na baía dos Porcos.

O presidente Kenneddy assume a responsabilidade total por este fiasco da CIA.

A CIA acreditou, como sempre, nos relatórios dos seus espertos espiões locais, que recebem para dizer o que agrada ser ouvido; e, como sempre, confundiu a geografia com um mapa militar alheio às pessoas e à história. Os pântanos que a CIA escolheu para o desembarque tinham sido o lugar mais miserável de Cuba inteira, um reino de crocodilos e mosquitos, até que a Revolução chegou. Então, o entusiasmo humano transformou estes lodaçais, fundando neles escolas, hospitais e estradas. As pessoas daqui foram as primeiras a expor o peito às balas, contra os invasores que vinham salvá-las.

1961 – Havana – Maria de la Cruz

Pouco depois da invasão, o povo reúne-se na praça. Fidel anuncia que os prisioneiros serão trocados por remédios para crianças. Depois entrega diplomas a quarenta mil camponeses alfabetizados. Uma velha insiste em subir na tribuna, e tanto insiste que enfim sobe. Em vão move as mãos no ar, buscando o altíssimo microfone, até que Fidel o abaixa:

_Eu queria conhecê-lo, Fidel. Queria dizer-lhe...
_Cuidado, vou ficar vermelho...

Mas a velha, mil rugas, meia dúzia de ossinhos, criva-o de elogios e gratidões. Ela aprendeu a ler e a escrever aos cento e seis anos de idade. Chama-se Maria de la Cruz, por ter nascido no mesmo dia da invenção da Santa Cruz, com sobrenome Semanat, porque Semanat se chamava a plantação de cana onde ela nasceu escrava, filha de escravos, neta de escravos. Naquele tempo os amos mandavam ao cepo os negros que queriam letras, explica Maria de la Cruz, porque os negros eram máquinas que funcionavam ao toque do sino e ao ritmo dos açoites, e por isso ela tinha demorado tanto em aprender.

Maria de la Cruz apodera-se da tribuna. Depois de falar, canta. Depois de cantar, dança. Faz mais de um século que desandou a dançar Maria de la Cruz. Dançando saiu do ventre da mãe e dançando atravessou a dor e o horror até chegar aqui, que era onde devia chegar, portanto agora não há quem a detenha.

1963 – Bayamo - O ciclone Flora

surra Cuba com alma e vida durante mais de uma semana. O ciclone mais prolongado da história nacional ataca e foge e regressa como se tivesse esquecido de quebrar alguma coisa: tudo gira, torvelinho furioso, ao redor desta gigantesca serpente de vento que se torce e ataca onde menos se espera.

Não adianta nada pregar portas e janelas. O ciclone arranca tudo pela raiz e brinca com as casas e as árvores atirando-as pelos ares. Esvazia-se o céu, para o susto das aves, e o mar inunda todo o oriente da ilha. Da base de Bayamo, as brigadas saem em lanchas e em helicópteros. Os voluntários vão e vem resgatando gentes e bichos, vacinando tudo que encontram vivo e enterrando e queimando os muitos mortos.

1963 – Havana – Todo mundo é faz-tudo

Nesta ilha devastada pelo ciclone e bloqueada e acossada pelos Estados unidos, é uma façanha o dia-a-dia. As vitrinas exibem cartazes de solidariedade com o Vietnam no lugar de sapatos e camisas, e qualquer comprinha exige horas de fila; os escassos automóveis andam com buchas de chifre de boi nas rodas e nas escolas de arte se rala o grafite dos lápis para improvisar tinta. Nas fábricas há teias de aranha sobre algumas máquinas novas, porque certa peça de reposição não acabou de percorrer seus dez mil quilômetros de caminho. De distantes portos do Báltico vêm o petróleo e todo o resto, e uma carta enviada de Cuba à Venezuela dá a volta ao mundo inteiro antes de chegar ao seu vizinho destino.

E não faltam apenas coisas. Muita gente que sabia de tudo foi-se embora para Miami atrás das pegadas dos que tinham de tudo. E agora?

_Agora, é preciso inventar.

Aos dezoito anos, Ricardo Gutiérrez desfilou em Havana com o fuzil levantado, no meio da maré de fuzis e facões e chapéus de palha que celebrou o fim da ditadura de Batista. No dia seguinte, teve de assumir a responsabilidade de várias empresas abandonadas por seus donos. Coube a ele, entre outras coisas, uma fábrica de peças íntimas femininas. Em seguida começaram os problemas de matéria-prima. Não havia espuma de látex para o enchimento dos sutiãs. Os operários discutiam o assunto numa assembléia e decidiram esvaziar almofadas. Foi um desastre. O enchimento das almofadas não podia ser lavado porque não secava nunca.

Ricardo tinha vinte anos quando meteram-lhe dois pesos no bolso e o mandaram administrar um engenho de açúcar. Nunca em sua vida tinha visto um engenho, nem de longe; lá descobriu que o melado tem uma cor escura. O administrador anterior, fiel servidor com meio século de experiência, tinha se perdido no horizonte levando debaixo do braço o quadro a óleo com o retrato do patrão, Julio Lobo, senhor daqueles canaviais que a revolução tinha expropriado.

Agora o ministro de Relações Exteriores manda chamá-lo. Raúl Roa senta-se no chão, na frente de um grande mapa da Espanha aberto sobre o tapete, e começa a desenhar cruzinhas. Assim Ricardo fica sabendo, aos vinte e dois anos, que virou cônsul.

_Mas eu só escrevo a máquina com dois dedos – balbucia, defendendo-se.

_Eu escrevo com um e sou ministro – sentencia Roa.

1965 – Havana – O multiplicador de revoluções,

o espartano guerrilheiro, vai para outras terras. Fidel revela a carta de despedida do Che Guevara: Já nada legal me ata a Cuba, diz o Che, só os laços que não podem ser rompidos.

O Che também escreve a seus pais e a seus filhos. Aos filhos, pede que sejam capazes de sentir da maneira mais profunda qualquer injustiça cometida contra qualquer um em qualquer parte do mundo.

Aqui em Cuba, com asma e tudo, o Che foi sempre o primeiro a chegar e o último a ir embora, na guerra e na paz, sem afrouxar nem um pouquinho.

Por ele se apaixonaram as mulheres, os homens, as crianças, os cães e as plantas.

O CHE GUEVARA DIZ ADEUS A SEUS PAIS

"Outra vez sinto sob os calcanhares as costelas de Rocinante; volto ao caminho, com minha adaga no braço.

Muitos me dirão aventureiro, e sou; só que de um tipo diferente e dos que arriscam a pele para demonstrar suas verdades. Pode ser que esta seja definitiva. Não procuro isso, mas está dentro do cálculo lógico das probabilidades. Se for assim, vai um último abraço.

Amei-os muito, só que não soube expressar meu carinho; sou extremamente rígido em minhas ações e acho que às vezes não me entenderam. Não era fácil me entender, aliás, acreditem. Somente hoje.

Agora, uma vontade que poli com gozo de artista, sustentará umas pernas flácidas e uns pulmões cansados. Farei isto. Lembrem-se de vez em quando deste pequeno condottieri do século XX..."


1967 – Às margens do rio Ñancahuazú – Dezessete homens caminham para o aniquilamento

O cardeal Maurer chega à Bolívia, vindo de Roma. Traz as bênçãos do Papa e a notícia de que Deus apóia decididamente o general Barrientos contra as guerrilhas.

Enquanto isso, acossados pela fome, oprimidos pela geografia, os guerrilheiros dão voltas pelos matagais do rio Ñancahuazú. Poucos camponeses existem nestas imensas solidões; e nem um, nem um único, incorporou-se à pequena tropa do Che Guevara. Suas forças vão diminuindo de emboscada em emboscada. O Che não fraqueja, não se deixa fraquejar, embora sinta que seu próprio corpo é uma pedra entre as pedras, pesada pedra que ele arrasta avançando à frente de todos; e tampouco se deixa tentar pela idéia de salvar o grupo abandonando os feridos. Por ordem do Che, caminham todos ao ritmo dos que menos podem: juntos serão salvos ou perdidos.

Perdidos. Mil e oitocentos soldados, dirigidos pelos rangers norte-americanos, pisam sua sombra. O cerco se estreita mais e mais. Finalmente delatam a sua localização exata um par de camponeses dedos-duros e os radares eletrônicos da National Security Agency, dos Estados Unidos.

1967 – Quebrada do Yuro – A queda do Che

A rajada de metralhadoras estraçalha suas pernas. Sentado, continua lutando, até que seu fuzil voa pelos ares.

Os soldados disputam a porradas o relógio, o cantil, o cinturão, o cachimbo. Vários oficiais o interrogam, um após outro. O Che cala e jorra sangue. O contra-almirante Ugarteche, ousado lobo da terra, chefe da Marinha de um país sem mar, o insulta e ameaça. O Che cospe em sua cara.

De La Paz, chega a ordem de liquidar o prisioneiro. Uma rajada o atravessa. O Che morre à bala, morre à traição, pouco antes de fazer quarenta anos, a mesma idade na qual morreram, também à bala, também à traição, Zapata e Sandino.

No povoado de Higueras, o general Barrientos exibe seu troféu aos jornalistas. O Che jaz sobre um tanque de lavar roupa. Depois das balas, é atingido pelos flashes. Esta última cara tem olhos que acusam e um sorriso melancólico.

1967 – Higueras – Os sinos dobram por ele


Morreu em 1967, na Bolívia, porque se enganou de hora e de lugar, de ritmo e de maneira? Ou morreu nunca, em nenhum lugar, porque não se enganou no que de verdade vale para todas as horas e lugares e ritmos e maneiras?

Acreditava que é preciso defender-se das armadilhas da cobiça, sem jamais baixar a guarda. Quando era presidente do Banco Nacional de Cuba, assinava Che nas notas, para debochar do dinheiro. Por amor às pessoas desprezava as coisas. Doente está o mundo, acreditava ele, onde ter e ser significavam a mesma coisa. Nunca guardou nada para si, nem pediu nada nunca.

Viver é se dar, acreditava; e se deu.


Fidel

Seus inimigos dizem que foi rei sem coroa e que confundia a unidade com a unanimidade.
E nisso seus inimigos têm razão.

Seus inimigos dizem que, se Napoleão tivesse tido um jornal como o Granma, nenhum francês ficaria sabendo do desastre de Waterloo.
E nisso seus inimigos têm razão.

Seus inimigos dizem que exerceu o poder falando muito e escutando pouco, porque estava mais acostumado aos ecos que às vozes.
E nisso seus inimigos têm razão.

Mas seus inimigos não dizem que não foi para posar para a História que abriu o peito para as balas quando veio a invasão,
que enfrentou os furacões de igual pra igual, de furacão a furacão,
que sobreviveu a 637 atentados,
que sua contagiosa energia foi decisiva para transformar uma colônia em pátria
e que não foi nem por feitiço de mandinga nem por milagre de Deus que essa nova pátria conseguiu sobreviver a dez presidentes dos Estados Unidos, que já estavam com o guardanapo no pescoço para almoçá-la de faca e garfo.

E seus inimigos não dizem que Cuba é um raro país que não compete na Copa Mundial do Capacho.
E não dizem que essa revolução, crescida no castigo, é o que pôde ser e não o quis ser. Nem dizem que em grande medida o muro entre o desejo e a realidade foi se fazendo mais alto e mais largo graças ao bloqueio imperial, que afogou o desenvolvimento da democracia a la cubana, obrigou a militarização da sociedade e outorgou à burocracia, que para cada solução tem um problema, os argumentos que necessitava para se justificar e perpetuar.

E não dizem que apesar de todos os pesares, apesar das agressões de fora e das arbitrariedades de dentro, essa ilha sofrida mas obstinadamente alegre gerou a sociedade latino-americana menos injusta.

E seus inimigos não dizem que essa façanha foi obra do sacrifício de seu povo, mas também foi obra da pertinaz vontade e do antiquado sentido de honra desse cavalheiro que sempre se bateu pelos perdedores, como um certo Dom Quixote, seu famoso colega dos campos de batalha.

O nascedor

Por que será que o Che tem esse perigoso costume de continuar nascendo? Quanto mais o manipulam, quanto mais o traem, mais nasce. Ele é o mais nascedor de todos.

Não será porque o Che dizia o que pensava, e fazia o que dizia? Não será porque isso continua sendo tão extraordinário, em um mundo onde as palavras e os fatos muito raramente se encontram, e quando se encontram não se cumprimentam, porque não se reconhecem?

(Textos de Eduardo Galeano)


Fragmentos retirados de:

GALEANO, Eduardo. Espelhos, uma história quase universal. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre, RS: LP&M, 2008.

GALEANO, Eduardo. Memória do fogo 3: O século do vento. Porto Alegre: L&PM, 1998.