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(…) O outono de 1843 trouxe certas modificações na orientação de Marx. Naquela época ele já estava morando em Paris, cercado por um ambiente intelectual mais estimulante que o ajudou a tirar as conclusões mais radicais de sua análise da sociedade contemporânea. Ele pôde avaliar o anacronismo social e político da Alemanha a partir de uma base real de crítica (isto é, pôde perceber as contradições de seu próprio país da perspectiva da situação real de um Estado europeu historicamente mais avançado) e não apenas do ponto de vista de uma idealidade abstrata como aquela que caracterizava a crítica filosófica alemã, inclusive, até certo ponto, a do próprio Marx anterior.
As generalizações filosóficas exigem sempre uma certa distância (ou “posição marginal”) do filósofo em relação à situação concreta sobre a qual baseia suas generalizações. Isso se deu, evidentemente, na história da filosofia de Sócrates a Giordano Bruno, que foram liquidados por serem marginais radicais. Porém mesmo mais tarde, os “marginais” desempenharam um papel extraordinário no desenvolvimento da filosofia: os escoceses em relação à Inglaterra economicamente muito mais adiantada; os filósofos da atrasada Nápoles (de Vico a Benedetto Croce) em relação à Itália do Norte, mais adiantada do ponto de vista do capitalismo; e exemplos semelhantes podem ser encontrados também em outros países. Um grande número de filósofos pertence a essa categoria de marginais, de Rousseau e Kiekegaard até Wittgenstein e Lukács, em nossos dias.
Aos filósofos judeus cabe um papel particular nesse contexto. Devido à posição a que foram forçados por sua condição de párias sociais, eles puderam adotar uma perspectiva intelectual par excellence, o que lhes permitiu, de Spinoza a Marx, realizar algumas das sínteses filosóficas mais fundamentais na história. (Essa característica torna-se ainda mais notável se compararmos a significação dessas conquistas teóricas com as produções artísticas dos pintores e músicos, escultores e escritores judeus. O ponto de vista do marginal, que constituiu uma vantagem nos esforços teóricos, tornou-se um obstáculo nas artes, devido ao caráter inerentemente nacional destas. Um obstáculo que resultou – à parte algumas poucas exceções, como os poemas bastante peculiares, intelectualizados e irônicos de Heine – em obras um tanto sem raízes, carentes de sugestividade e vigor representativo e, portanto, confinadas geralmente ao segundo plano das realizações artísticas. No século XX, é claro, a situação se modifica muito. Em parte devido a uma integração nacional muito maior – embora nunca completa – das comunicações judaicas particulares, decorrente da generalização da tendência social descrita por Marx como “reabsorção” do crescimento pelo judaísmo.[1] Mais importante é, no entanto, o fato de que paralelamente ao avanço desse processo de “reabsorção” - isto é, paralelamente ao triunfo da alienação capitalista em todas as esferas da vida – a arte assume um caráter mais abstrato e “cosmopolita” do que nunca e a experiência da falta de raízes se torna um tema generalizado da arte moderna. Assim, paradoxalmente, o que era antes um obstáculo se transforma numa vantagem, e testemunhamos o aparecimento de alguns grandes escritores judeus – de Proust a Kafka – no primeiro plano da literatura mundial.)
A posição marginal dos grandes filósofos judeus foi duplamente acentuada. Em primeiro lugar, eles estavam numa oposição necessária às suas comunidades nacionais particularistas e discriminatórias, que rejeitavam a idéia da emancipação judaica (por exemplo, “o judeu alemão, em particular, sofre pela falta de liberdade política geral e pelo acentuado cristianismo do Estado”[2]). Mas, em segundo lugar, eles tinham de emancipar-se também do judaísmo a fim de não se paralisarem envolvendo-se nas mesmas contradições em nível diferente, isto é, a fim de fugir das posições particularistas e paroquiais dos judeus, que diferiam apenas em certos aspectos mas não em substância do objeto de sua primeira oposição. Somente puderam atingir a amplitude e o grau de universalidade que caracterizam os sistemas de Spinoza e de Marx os filósofos judeus que foram capazes de apreender o tema da emancipação judaica em sua dualidade paradoxal, de maneira inextricavelmente interligada ao desenvolvimento histórico da humanidade. Muitos outros, de Moses Hess a Martin Buber, devido ao caráter particularista de suas perspectivas – ou, em outras palavras, devido à sua incapacidade de se emanciparem da “estreiteza judaica” -, formularam suas opiniões em termos de utopias de segunda classe, provincianas.
É muito significativo que, no desenvolvimento intelectual de Marx, um ponto de inflexão de grande importância, no outono de 1843, tenha coincidido com uma prise de conscience [tomada de consciência] filosófica com relação ao judaísmo. Seus artigos sobre a questão judaica [3], escritos nos últimos meses de 1843 e em janeiro de 1844, criticavam violentamente não só o atraso e o anacronismo político alemão, que rejeitava a emancipação judaica, mas ao mesmo tempo a estrutura da sociedade capitalista em geral, bem como o papel do judaísmo no desenvolvimento do capitalismo.
A estrutura da moderna sociedade burguesa em sua relação com o judaísmo foi analisada por Marx no plano social e no político em termos que teriam sido impensáveis com base no conhecimento exclusivo da situação – de maneira alguma típica – alemã. Durante os últimos meses de 1842 Marx já havia estudado os escritos de socialistas utópicos franceses, como por exemplo Fourier, Étienne Cabet, Pierre Leroux e Pierre Considérant. Em Paris, contudo, ele teve a oportunidade de observar de perto a situação social e política da França, e em certa medida até de envolver-se pessoalmente nela. Ele foi apresentado aos líderes da oposição democrática e socialista, e com freqüência comparecia às reuniões das associações secretas de operários. Mais ainda, ele estudou sistematicamente a história da Revolução Francesa de 1789, porque queria escrever uma história da Convenção. Tudo isso contribuiu para que se tornasse extremamente familiarizado com os aspectos mais importantes da situação francesa, que estava procurando integrar, juntamente com o seu conhecimento e a experiência da Alemanha, em uma concepção histórica geral. O contraste que estabeleceu, do ponto de vista dos “marginais”, entre a situação alemã e a sociedade francesa – contra o pano de fundo do desenvolvimento histórico moderno como um todo – mostrou-se proveitoso não só para atacar de maneira realista a questão judaica, mas em geral para a elaboração de seu conhecido método histórico.
Somente no interior desse quadro poderia o conceito de alienação – um conceito eminentemente histórico, como vimos – assumir um lugar central no pensamento de Marx, como o ponto de convergência de múltiplos problemas socioeconômicos e também políticos, e só a noção de alienação poderia assumir esse papel dentro de seu quadro conceitual. (…)
Notas:
[1] Ver Karl Marx, On the Jewish question, cit. [Early writings (trad. e org. T. B. Bottomore, Londres, C.A. Watts & Co., 1963)], p. 39.
[2] Ibidem, p. 5.
[3] Marx escreveu dois artigos sobre o assunto, comentando as obras de Bruno Bauer: “Die Judenfrage” (“A questão judaica”), e “Die Fähigkeit der heutigen Juden und Christen, frei zu werden” (“A capacidade dos judeus e cristãos da atualidade de se tornarem livres”); ambos foram publicados pela primeira vez em Deutsch-Französischen Jahrbücher (dirigido por Marx e Arnold Ruge), em fevereiro de 1884.
Texto retirado de:
MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006. p. 71-3.
sábado, 27 de fevereiro de 2010
sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010
27 de fevereiro, 4 horas da manhã... De terciopelo negro
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De terciopelo negro
guambrita y... traigo cortinas
para enlutar mi pecho
guambrita y... si tú me olvidas.
Si tú me olvidas,
blanca azucena,
si la azucena es blanca
guambrita y... tú eres morena.
A la samaritana
guambrita y... te pareciste.
Te pedí un vaso de agua,
guambrita y... no me lo diste.
Me lo negaste,
prenda querida.
Si me niegas el agua
guambrita y... pierdo la vida.
(Letra: Jorge Araújo Chiriboga; Voz: Carmela; Violão: Paco Ibáñez)
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De terciopelo negro
guambrita y... traigo cortinas
para enlutar mi pecho
guambrita y... si tú me olvidas.
Si tú me olvidas,
blanca azucena,
si la azucena es blanca
guambrita y... tú eres morena.
A la samaritana
guambrita y... te pareciste.
Te pedí un vaso de agua,
guambrita y... no me lo diste.
Me lo negaste,
prenda querida.
Si me niegas el agua
guambrita y... pierdo la vida.
(Letra: Jorge Araújo Chiriboga; Voz: Carmela; Violão: Paco Ibáñez)
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A imperiosa necessidade de um mundo radicalmente novo e a urgência da hora - Texto de István Mészáros
O século XX foi marcado pela sucessão de graves crises e até mesmo duas guerras mundiais. Ao mesmo tempo, as intermináveis promessas de reforma da ordem estabelecida, visando a eliminar a miséria que a maioria da humanidade é forçada a suportar, tudo isso acabou em nada. Quem pode dizer hoje que as perspectivas para o século XXI são melhores?
A brutal realidade das guerras continua a preencher os nossos jornais diários, e a doutrina oficial dos EUA declarou recentemente a estratégia das “guerras infinitas”, incluindo a cínica reivindicação de “legitimidade moral” para o uso de armas nucleares de forma preventiva contra qualquer adversário escolhido arbitrariamente. Além disso, no que concerne às horríveis desigualdades do nosso mundo social, não há propaganda do sistema que seja suficiente para ornamentar a dolorosa e óbvia realidade atual: “Segundo um relatório de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, os 1% mais ricos do mundo têm uma renda igual aos 57% mais pobres. A separação de renda entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres subiu, de 30 para 1 em 1960, para 60 para 1 em 1990 e 74 para 1 em 1999, e está projetada para alcançar 100 para 1 em 2015. Em 1999-2000, 2,8 bilhões de pessoas viveram com menos de 2 dólares por dia, 840 milhões estavam subnutridos, 2,4 bilhões não tinham acesso a qualquer forma de benfeitorias no serviço de saneamento básico e uma em cada seis crianças do mundo em idade escolar primária não estava na escola. Estima-se que cerca de 50% da força de trabalho global não-agrícola estejam ou desempregados ou subempregados”.(1)
Assim as contínuas tendências de desenvolvimento, que deveriam demonstrar uma melhora significativa e constante, apontam inexoravelmente na direção oposta. Isso não é acidental, mas devido às profundas determinações causais de um sistema social incuravelmente injusto. Por isso não é mais possível evitar-se questionar a própria natureza de nossa sociedade, se estamos seriamente interessados em reverter as tendências negativas predominantes.
Os dilemas da humanidade hoje são inseparáveis dos perigos terminais que temos de encarar, em vista das forças destrutivas, historicamente sem precedentes, que se encontram à disposição dos que estão administrando o poder. Ninguém deve ter a ilusão de que eles poderiam hesitar em usar as forças de destruição quando a sua regra de exploração for ameaçada. As novas “doutrinas estratégicas” do imperialismo hegemônico global falam claro e suficientemente alto sobre essa realidade.
Tudo isso faz com que a criação de uma ordem social alternativa e sustentável seja não somente desejada, mas também vitalmente necessária e urgente no nosso tempo.
A ideologia do poder mantém o seu controle sobre a consciência popular, pregando com sucesso a eterna validade do sistema de capital estabelecido. Segundo esta visão, somente mudanças marginais e pequenas são necessárias, para que sejam bem acomodadas dentro de seus sistemas estruturais de reprodução social, tidos como anistóricos e eternamente adequados.
Tudo está completamente invertido nesse discurso. Ele não apenas distorce a verdade, mas também oferece para o consumo geral exatamente o seu oposto. Entretanto, apesar de toda mistificação autojustificável que tenta representar o capital como um sistema natural e eterno, nós estamos na verdade falando de um modo de reprodução social metabólica e historicamente limitado, e unicamente restrito no tempo – que, afinal, não pode ser atingido. Isso acontece por três razões principais:
A primeira razão é o imperativo do crescimento como auto-expansão do capital. Em outras palavras, trata-se da busca irrestrita de acumulação de capital, independentemente de quão danosos ou mesmo completamente destrutivos possam ser os seus efeitos.
Em segundo lugar, a tendência do capital para a integração global no plano econômico nitidamente se contradiz por suas necessárias implicações no plano político, uma vez que o modus operandi do sistema se dá permanentemente na forma de dominação e subordinação em todos os sentidos, incluindo a subjugação dos Estados Nacionais mais fracos pelos mais fortes sob o poder do imperialismo moderno, tendo como lógica final – e totalmente louca – uma “superpotência” submeter a si todas as outras, na vã esperança de assegurar que sua própria dominação se mantenha incontestável, como se fosse o estado geral do sistema do capital.
O terceiro motivo diz respeito ao círculo vicioso de competição e monopólio, que acaba prevalecendo no sentido insustentável de uma competição incontrolável gerando monopólio, que traz consigo uma competição cada vez mais feroz e mais destrutiva, em um processo sem fim de determinações recíprocas.
Nesses três aspectos, estamos preocupados com as insuperáveis determinações internas autocontraditórias do sistema de capital, que se tornam totalmente ativadas e intensificadas em nosso tempo. Eis o que confere uma extrema urgência a esses assuntos, exigindo o imperativo de uma intervenção radical para que se possam superar as tendências destrutivas.
Inevitavelmente, porém, a estratégia de intervenções práticas e radicais não pode ser bem-sucedida sem se desmistificar o próprio sistema, quer em suas determinações fundamentais, quer em suas alegações de validade atemporal. Do contrário, ficaremos presos à armadilha da lógica perversa do capital e às suas autojustificativas ideológicas. É suficiente recordar, neste caso, a mitologia da “objetividade” da ordem estabelecida, da “neutralidade” ideológica, a sua presumida dedicação em promover a “livre concorrência” (com um profundo silêncio sobre a tendência monopolista concomitante), bem como a “liberdade e democracia”, ou o que quer que sirva aos propósitos de deturpar – conscientemente ou não, mas com certeza cada vez mais cinicamente nos dias de hoje – o real estado das coisas.
Os discursos do presidente norte-americano – guarnecidos com tachões, como a jaqueta de pearly king com infindáveis botões brilhantes, tal qual os bombásticos slogans de “liberdade e democracia”,(2) ainda que em meio a uma das mais agressivas guerras empreendidas pelo seu país – ilustram muito bem o abismo que separa a realidade sensata da ordem estabelecida, assim como a prática poderosamente institucionalizada e ritualizada da mistificação ideológica. Uma confiança totalmente consciente e desafiadora no poder da ideologia emancipatória é o componente necessário para confrontar essas questões de maneira adequada, em vez de capitular diante das racionalizações que nos autodesarmam sobre a “objetividade antiideológica” e a neutralidade fictícia.
É importante enfatizar aqui que a viabilidade histórica do capital está seriamente afetada, no sentido negativo do termo, não somente pelos limites absolutos do sistema, mas também pela sua total incapacidade em admitir a existência de qualquer limite. Para compreender a evidência desses limites absolutos, há que se considerar que:
a) O horizonte de tempo do sistema é necessariamente de curto prazo, e não pode ser nada mais do que isso, tendo em vista as sucessivas pressões da concorrência e do monopólio e as resultantes formas de imposição da dominação e subordinação, com o intuito do ganho imediato.
b) Esse horizonte de tempo possui também um caráter post festum, ou seja, só é capaz de adotar métodos corretivos após o dano ter sido cometido, e mesmo assim tais medidas corretivas só podem ser introduzidas de uma maneira muito limitada.
c) Como resultado dessas duas determinações supramencionadas, o sistema se torna incompatível com qualquer tipo de planejamento que não seja no sentido o mais míope possível do termo. Isso acontece com as gigantes e quase monopolísticas empresas transnacionais, pois mesmo as maiores corporações só podem instituir um limitado planejamento post festum em determinadas empresas (se chegam a tanto), mas são incapazes de controlar sozinhas os seus próprios mercados globais, exceto de maneira estritamente limitada e conflituosa. A importância dessa limitação sistêmica não pode ser exagerada, especialmente sob as circunstâncias históricas hoje observáveis, tendendo em direção a uma integração econômica global, aliada às suas contradições fatais, quando a necessidade de uma forma viável de planejamento completo seria inteiramente vital.
d) A relação entre causa e efeito está estruturalmente viciada pelo sistema de capital. Isso se deve às determinações causais internas do capital, que não podem nunca ser postas sob um exame crítico sério e minucioso. Em outras palavras, esse sistema se impulsiona adiante implacavelmente, sem se questionar, como se fosse absolutamente causa sui. Em conseqüência, o capital é estruturalmente incapaz de apontar as causas que historicamente surgem como causas. Deve operar, mesmo nas suas mais sérias tentativas para introduzir algumas medidas corretivas post festum, de maneira a responder aos efeitos (bons ou maus), empilhando efeitos sobre outros efeitos, como uma regra de forma a gerar repetidamente efeitos contrários geradores de problemas, em sintonia com as limitações da ordem estabelecida no horizonte de tempo a curto prazo. Do mesmo modo, o que é freqüentemente descrito de maneira infeliz como uma “manipulação” consiste, na verdade, em nada mais nem menos do que uma característica contingente do sistema do capital, facilmente corrigível. Trata-se de uma de suas determinações fundamentais – poder-se-ia dizer ontológica -, que poderia ser remediada adotando-se uma forma radicalmente diferente de se relacionar com as causas, tratando-as como causas estruturalmente significantes, em vez de lidar com elas como efeitos mais ou menos e arbitrariamente tratáveis. Para essa solução alternativa, entretanto, seria necessário superar os constrangimentos estruturais do próprio capital, transcendendo-os em direção a uma nova ordem metabólica de produção e reprodução social mais elevada. Afinal, o significado dos imperativos estruturais é precisamente o fato de que é impossível alterá-los significativamente sem considerar uma construção que seja livre das necessárias limitações destrutivas da ordem estabelecida. Comparativamente, conceituar o mundo do ponto de vista do capital continua sendo uma desvantagem insuperável, mesmo para os grandes pensadores que se identificam com o ponto de vista do capital, inclusive Kant, Adam Smith e Hegel.
e) O último ponto a ser mencionado, neste breve levantamento dos limites absolutos do sistema de capital, é a caprichosa eternalização de uma ordem historicamente específica e única, o controle social metabólico tratado atemporalmente, não como assunto de determinações temporais bem identificadas, mas em si mesmas, como se estivessem acima da história e fossem capazes de assumir o papel de juiz final sobre esta. No decorrer dos desenvolvimentos capitalistas, mesmo o reconhecimento parcial da dimensão histórica por grandes pensadores que conceituaram o mundo do ponto de vista da capital, como Kant, Adam Smith e Hegel, já aludidos, teve que ser deixado para trás em favor de uma liquidação sem reservas da consciência do tempo histórico.
A singularidade do sistema de capital se manifesta no imperativo estrutural de “crescer inexoravelmente ou perecer”. Em toda a história humana, nenhum outro sistema de reprodução social metabólica se pareceu, nem mesmo remotamente, com essa determinação interna e totalmente problemática do capital. Essa determinação estrutural também revela o completo engano, do ponto de vista social, de apenas servir a si mesmo [self-serving]; o engano de representar, tão mal, por sinal, a ordem reprodutiva do capital como uma lei universal insuperável, arbitariamente projetada de frente pra trás nos mais remotos cantos da história. Trata-se de uma regra “universal” decretada arbitrariamente e para a qual, segundo os apologetas do sistema, “não há alternativa” com certeza.
O que torna todo esse desenvolvimento extremamente problemático é o fato de que as determinações primárias do sistema de capital orientam-se, perversamente, de cabeça para baixo,(3) isto é, para a auto-expansão do capital como tal e não, ou apenas coincidentemente, para o crescimento dos valores de uso que correspondem a genuínas necessidades humanas. É por este motivo que uma característica dinâmica – que numa fase inicial do desenvolvimento histórico do capital representou um avanço positivo, caminhando de mãos dadas naquele momento com a satisfação legítima da necessidade humana – no nosso tempo se tornou potencialmente a mais destrutiva determinação. O interesse contraditório da motivação auto-expansiva do capital deve prevalecer, a todo custo e sob qualquer circunstância, mesmo quando os lucrativos valores de uso produzidos para essa motivação são os infernais materiais de guerra do complexo industrial militar (cujo valor de uso é a destruição), capazes de exterminar toda a humanidade com as armas reais de destruição em massa do imperialismo hegemônico global.
A mesma reviravolta de uma característica positiva digna se evidencia também, no decorrer do desenvolvimento capitalista, no que concerne à concorrência, marcada pelo eterno papel dominante assumido pelo monopólio, como resultado das crescentes indeterminações negativas de um sistema historicamente único. Desde que o círculo vicioso da concorrência tendente ao monopólio, e do monopólio acarretando concorrência mais acirrada, não pode ser rompido, o resultado é necessariamente o aumento da concentração e centralização do capital, a constituição de empresas mais e mais poderosas, as gigantes corporações transnacionais que dominam a cena, sem o menor decréscimo em seu apetite por devorar os seus concorrentes. Assim o crescimento, como auto-expansão do capital, se torna um esmagador fim em si mesmo, excluindo toda consideração a respeito de um valor inerente das metas adotadas em relação a objetivos humanos genuínos. Muito pelo contrário. A total ausência de uma medida humana adequada para se avaliar a viabilidade do processo de produção e reprodução a longo prazo e o fato de sua reposição basear-se apenas na consideração da acumulação de capital como o fim único em si mesmo, perigosamente, abrem as portas para o avanço inexorável de um crescimento canceroso, perseguido com o intuito da expansão do lucro e a promessa de vantagens futuras na disputa pela dominação quase-monopolista.
A conseqüência destrutiva dessa lógica perversa é dupla: primeiro, no plano econômico, o imperativo do crescimento, sempre mantido ainda que tome a forma de um crescimento canceroso, leva à completa negligência quanto à salvaguarda das condições elementares da existência humana. Isso se manifesta em práticas produtivas muito difundidas que põem em risco diretamente até mesmo o natural substratum da vida humana, de onde provém uma séria preocupação, geralmente expressa em relação à destruição do meio ambiente.(4) Não deve haver dúvidas, uma mudança neste ponto é condição absoluta de uma reprodução social sustentável – apesar do desdém calejado do sistema de capital, totalmente em sintonia com seu incurável horizonte de tempo a curto prazo, repudiá-la com os argumentos mais grotescos de evasão e racionalização, aliados a perigosas medidas práticas correspondentes.(5) Contudo, a cegueira induzida pelo horizonte de tempo do capital não torna a questão em si menos urgente; é preciso que se empreendam as ações corretivas necessárias enquanto ainda há tempo para fazê-lo, tendo em mente a sobrevivência humana.
Não deve haver dúvidas, uma mudança neste ponto é condição absoluta de uma reprodução social sustentável – apesar do desdém calejado do sistema de capital, totalmente em sintonia com seu incurável horizonte de tempo a curto prazo, repudiá-la com os argumentos mais grotescos de evasão e racionalização, aliados a perigosas medidas práticas correspondentes.(6) Contudo, a cegueira induzida pelo horizonte de tempo do capital não torna a questão em si menos urgente; é preciso que se empreendam as ações corretivas necessárias enquanto ainda há tempo para fazê-lo, tendo em mente a sobrevivência humana.
O segundo aspecto vital do crescimento canceroso totalmente subordinado aos imperativos destrutivos da expansão incontrolável do capital, e do concomitante círculo vicioso do monopólio e da concorrência, evidencia-se no plano político-militar, ao qual se recorre porque o impulso para a dominação monopolista não pode nunca ter as suas aspirações globais totalmente bem-sucedidas. Mesmo as mais poderosas corporações transnacionais não conseguem obter mais do que um quase-monopólio, e não uma posição de completo monopólio na ordem global. Isso, certamente, não é motivo para confiança e regozijo, pois a dimensão perigosa e destrutiva dessa tendência em si não diminui por tal limitação. Muito longe disso, essa limitação somente significa que a luta pela dominação global deve ser intensificada, alinhada ao sucesso relativo das gigantes empresas transnacionais, em seus próprios países e no cenário internacional. Conseqüentemente – em contraste com a antiga recomendação de Adam Smith para se manterem os políticos e o Estado fora dos desenvolvimentos econômicos em andamento, de modo a não se interferir no trabalho benevolente da “mão invisível” -, os Estados dos países imperialistas dominantes devem entrar diretamente em cena, sustentando, como todos os meios possíveis ao seu dispor, seus empreendimentos nacionais/transnacionais gigantescos, quando em confronto com os rivais. Assim, a questão do “complexo militar-industrial” não está confinada às imensas determinações devastadoras da produção militar, mas assume também uma forma direta militar-política, como demonstram as vicissitudes do imperialismo no século XX – e de acordo com as atuais tendências prevalentes, ainda mais perigosamente no século XXI. A nova fase do imperialismo hegemônico global, sendo os EUA a sua esmagadora força global dominante,(7) indica uma horrível intensificação dos perigos. Não se trata simplesmente de uma questão de contingente e de uma alterável “política das grandes potências”, mas, e muito mais importante, da manifestação de uma determinação sistêmica na atual fase do desenvolvimento histórico do capital, exigindo uma urgente atenção no seu próprio plano.
Naturalmente, todas essas tendências estão entrelaçadas com as mais profundas determinações de um sistema historicamente único. Assim, negar o seu próprio caráter histórico é conveniente, e se explica pelo desejo de perpetuar os interesses de exploração do poder, os quais podem ser imediatamente racionalizados mediante os postulados da “única eternalização viável” do sistema reprodutivo. A incômoda verdade é que o capital é incapaz de reconhecer os seus próprios limites, quando a questão a formular é: como poderemos remediar, de maneira humanamente sustentável, as contradições e perigos fatais do seu crescimento incontrolável?
Tal consideração é inteiramente inadmissível porque a relação com o crescimento constitui o círculo vicioso do sistema. Isto porque o capital impele o crescimento, de maneira absoluta e incontrolável, ao mesmo tempo que é impelido pelo crescimento a todo custo, como condição da sua – totalmente inatingível – sobrevivência. Os apologetas do sistema hoje ou negam insensivelmente que possa haver qualquer problema sério devido a essa modalidade predominante de crescimento, o que exigiria coações racionais, ou se engajam nas fantasias conservadoras sobre os “limites de crescimento”,(8) não levando em consideração as determinações perniciosas do capital e oferecendo quixotescamente como “solução” a imposição de uma ordem social ainda mais iníqua do que a atual. Em contraste, se retornamos ao século XIX, encontraremos pensadores liberais que conceituaram o mundo do ponto de vista do capital, como John Stuart Mill, mas que ainda estavam preparados para considerar os dilemas do crescimento a longo prazo. Na verdade, Mill também caiu na esperançosa armadilha da eternalização, tentando imaginar um futuro “estado estacionário”(8) da economia, sem nenhum crescimento. Mas a imagem projetada na sua forma eternalizante e autocontraditória se parecia muito mais com um verdadeiro pesadelo do que com uma solução viável.
É impossível encontrar soluções viáveis para todos os problemas com os quais nos deparamos no terreno do capital sem a total consciência das determinações históricas do sistema e das limitações estruturais correspondentes, em contraste com todas as teorias que visam a eternalizar até mesmo as características mais problemáticas e destrutivas. É importante também ter em mente que a determinação histórica desse modo de reprodução social metabólica é memorável, tanto no sentido de notável, por abranger vários séculos como período de tempo, quanto de característica de uma fase em particular do seu desenvolvimento. Ambos os sentidos podem ser muito diferentes, não em absoluto, mas na sua significância para o tipo de ação que deve ser levada a cabo para se ter um confronto bem-sucedido com os problemas identificados. Tomando um exemplo crucial, a busca de um crescimento incontrolável sempre foi uma característica fundamental do capital, como forma mais profunda de determinação sistêmica. Sem ela, a forma única de controle social metabólico não poderia ter conquistado o palco histórico da maneira que fez. Além disso, o caráter imensamente problemático do crescimento orientado para a acumulação de capital não foi um acréscimo mais ou menos acidental em um estágio tardio: foi também, desde o início do sistema, inseparável da natureza do capital, como a mais dinâmica forma de controlar a ordem de reprodução social metabólica conhecida pelos seres humanos na história até a manutenção desse sistema, culminando no momento em que chegou ao fim da sua fase de ascendência. Neste ponto, a segunda e mais específica dimensão da temporalidade histórica do capital se torna agudamente relevante. Pelas mesmas características sistêmicas do crescimento inexorável, profundamente cravadas na própria natureza do capital desde o momento da sua constituição, por meio da alienação e expropriação do trabalho, como um sistema de controle cada vez mais abrangente, uma certa fase do desenvolvimento histórico do capital se transforma em uma determinação potencialmente devastadora.
É a especificidade histórica dessa atual fase ameaçadora que nos impõe a tarefa de uma reavaliação radical da questão do crescimento. Não no sentido de uma pseudo-alternativa útil apenas para si mesma, de “crescimento ou não-crescimento”, mas que deixaria intactas as iniqüidades monstruosas do nosso mundo social, ou que as tornaria piores do que nunca. O crescimento deve ser reavaliado a partir de uma mobilização correta de material e recursos humanos, de um movimento de massas radical, para reorientar as nossas práticas de produção no sentido de realizar os necessários e legítimos objetivos sociais. Isso, porém, é inconcebível sem que se tragam sob um controle racional as forças destrutivas, inseparáveis das atuais modalidades de crescimento baseadas na incontrolável expansão do capital.
Esse é o sentido em que a urgência da hora é uma condição inevitável da nossa própria e tão difícil situação histórica.
Notas:
(1) Minqi Li, “After Neoliberalism: Empire, Social Democracy, or Socialism?”, Monthly Review, jan. 2004, p. 21.
(2) Há relatos de que apenas um dos discursos curtos de George W. Bush continha 37 dessas declarações.
(3) Trata-se de uma das questões vitais no que diz respeito a uma virada na relação entre as “mediações primárias e secundárias” no metabolismo social de reprodução. Recomento ao leitor interessado a discussão dessas questões no capitulo “Causalidade, tempo e formas de mediação”, em meu livro Para além do capital, publicado pela editora Boitempo, São Paulo, em 2002. Ver p. 175-215 dessa edição.
(4) Tenho discutido esses problemas desde 1971. Ver a seção “Capitalism and Environmental Destruction” na minha palestra no Isaac Deutscher Memorial, “The Necessity os Social Control”, proferida na London School of Economics, em janeiro de 1971, inicialmente publicada em um volume pela editora The Merlin Press em Londres, 1971, e reeditada na Parte IV do meu livro Para além do capital. Ver p. 983-1011 da edição brasileira. [Nota do editor: Esse texto, com o título A necessidade do controle social, foi publicado no Brasil na forma de livro pela editora Ensaio, São Paulo, em 1989.]
(5) Lembremos as violações arbitrárias, até mesmo de algumas obrigações adotadas por tratados, tais como a atitude irresponsável do governo dos EUA com relação aos acordos de Kyoto demonstraram.
(6) Para estarmos seguros, essa dominação – independentemente de quão cruel ela é até hoje – não pode ser mantida indefinidamente. É necessário sublinhar não somente o caráter perigoso da dominação dos EUA, mas também a sua instabilidade histórica e fracasso. No devido momento, os complexos problemas na raiz de tais determinações devem ser resolvidos para que se remova a instabilidade, senão a tendência a uma asserção ainda mais agressiva dos ditames dos EUA podem levar à destruição da espécie humana.
(7) Ver a famosa recomendação conservadora em Os limites do crescimento, publicada pelo conhecido Clube de Roma.
(8) Ver o capítulo correspondente no seu livro Economia política.
Texto retirado de:
Dilemas da humanidade: diálogos entre civilizações / organizadores: Marildo Menegat, Elaine Rossetti Behring, Virgínia Fontes; promotores MST, UFRJ, FSS/UERJ. - Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, p. 129-41.
Conferência internacional realizada entre 22 e 24 de julho de 2004, no Rio de Janeiro.
A brutal realidade das guerras continua a preencher os nossos jornais diários, e a doutrina oficial dos EUA declarou recentemente a estratégia das “guerras infinitas”, incluindo a cínica reivindicação de “legitimidade moral” para o uso de armas nucleares de forma preventiva contra qualquer adversário escolhido arbitrariamente. Além disso, no que concerne às horríveis desigualdades do nosso mundo social, não há propaganda do sistema que seja suficiente para ornamentar a dolorosa e óbvia realidade atual: “Segundo um relatório de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, os 1% mais ricos do mundo têm uma renda igual aos 57% mais pobres. A separação de renda entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres subiu, de 30 para 1 em 1960, para 60 para 1 em 1990 e 74 para 1 em 1999, e está projetada para alcançar 100 para 1 em 2015. Em 1999-2000, 2,8 bilhões de pessoas viveram com menos de 2 dólares por dia, 840 milhões estavam subnutridos, 2,4 bilhões não tinham acesso a qualquer forma de benfeitorias no serviço de saneamento básico e uma em cada seis crianças do mundo em idade escolar primária não estava na escola. Estima-se que cerca de 50% da força de trabalho global não-agrícola estejam ou desempregados ou subempregados”.(1)
Assim as contínuas tendências de desenvolvimento, que deveriam demonstrar uma melhora significativa e constante, apontam inexoravelmente na direção oposta. Isso não é acidental, mas devido às profundas determinações causais de um sistema social incuravelmente injusto. Por isso não é mais possível evitar-se questionar a própria natureza de nossa sociedade, se estamos seriamente interessados em reverter as tendências negativas predominantes.
Os dilemas da humanidade hoje são inseparáveis dos perigos terminais que temos de encarar, em vista das forças destrutivas, historicamente sem precedentes, que se encontram à disposição dos que estão administrando o poder. Ninguém deve ter a ilusão de que eles poderiam hesitar em usar as forças de destruição quando a sua regra de exploração for ameaçada. As novas “doutrinas estratégicas” do imperialismo hegemônico global falam claro e suficientemente alto sobre essa realidade.
Tudo isso faz com que a criação de uma ordem social alternativa e sustentável seja não somente desejada, mas também vitalmente necessária e urgente no nosso tempo.
A ideologia do poder mantém o seu controle sobre a consciência popular, pregando com sucesso a eterna validade do sistema de capital estabelecido. Segundo esta visão, somente mudanças marginais e pequenas são necessárias, para que sejam bem acomodadas dentro de seus sistemas estruturais de reprodução social, tidos como anistóricos e eternamente adequados.
Tudo está completamente invertido nesse discurso. Ele não apenas distorce a verdade, mas também oferece para o consumo geral exatamente o seu oposto. Entretanto, apesar de toda mistificação autojustificável que tenta representar o capital como um sistema natural e eterno, nós estamos na verdade falando de um modo de reprodução social metabólica e historicamente limitado, e unicamente restrito no tempo – que, afinal, não pode ser atingido. Isso acontece por três razões principais:
A primeira razão é o imperativo do crescimento como auto-expansão do capital. Em outras palavras, trata-se da busca irrestrita de acumulação de capital, independentemente de quão danosos ou mesmo completamente destrutivos possam ser os seus efeitos.
Em segundo lugar, a tendência do capital para a integração global no plano econômico nitidamente se contradiz por suas necessárias implicações no plano político, uma vez que o modus operandi do sistema se dá permanentemente na forma de dominação e subordinação em todos os sentidos, incluindo a subjugação dos Estados Nacionais mais fracos pelos mais fortes sob o poder do imperialismo moderno, tendo como lógica final – e totalmente louca – uma “superpotência” submeter a si todas as outras, na vã esperança de assegurar que sua própria dominação se mantenha incontestável, como se fosse o estado geral do sistema do capital.
O terceiro motivo diz respeito ao círculo vicioso de competição e monopólio, que acaba prevalecendo no sentido insustentável de uma competição incontrolável gerando monopólio, que traz consigo uma competição cada vez mais feroz e mais destrutiva, em um processo sem fim de determinações recíprocas.
Nesses três aspectos, estamos preocupados com as insuperáveis determinações internas autocontraditórias do sistema de capital, que se tornam totalmente ativadas e intensificadas em nosso tempo. Eis o que confere uma extrema urgência a esses assuntos, exigindo o imperativo de uma intervenção radical para que se possam superar as tendências destrutivas.
Inevitavelmente, porém, a estratégia de intervenções práticas e radicais não pode ser bem-sucedida sem se desmistificar o próprio sistema, quer em suas determinações fundamentais, quer em suas alegações de validade atemporal. Do contrário, ficaremos presos à armadilha da lógica perversa do capital e às suas autojustificativas ideológicas. É suficiente recordar, neste caso, a mitologia da “objetividade” da ordem estabelecida, da “neutralidade” ideológica, a sua presumida dedicação em promover a “livre concorrência” (com um profundo silêncio sobre a tendência monopolista concomitante), bem como a “liberdade e democracia”, ou o que quer que sirva aos propósitos de deturpar – conscientemente ou não, mas com certeza cada vez mais cinicamente nos dias de hoje – o real estado das coisas.
Os discursos do presidente norte-americano – guarnecidos com tachões, como a jaqueta de pearly king com infindáveis botões brilhantes, tal qual os bombásticos slogans de “liberdade e democracia”,(2) ainda que em meio a uma das mais agressivas guerras empreendidas pelo seu país – ilustram muito bem o abismo que separa a realidade sensata da ordem estabelecida, assim como a prática poderosamente institucionalizada e ritualizada da mistificação ideológica. Uma confiança totalmente consciente e desafiadora no poder da ideologia emancipatória é o componente necessário para confrontar essas questões de maneira adequada, em vez de capitular diante das racionalizações que nos autodesarmam sobre a “objetividade antiideológica” e a neutralidade fictícia.
É importante enfatizar aqui que a viabilidade histórica do capital está seriamente afetada, no sentido negativo do termo, não somente pelos limites absolutos do sistema, mas também pela sua total incapacidade em admitir a existência de qualquer limite. Para compreender a evidência desses limites absolutos, há que se considerar que:
a) O horizonte de tempo do sistema é necessariamente de curto prazo, e não pode ser nada mais do que isso, tendo em vista as sucessivas pressões da concorrência e do monopólio e as resultantes formas de imposição da dominação e subordinação, com o intuito do ganho imediato.
b) Esse horizonte de tempo possui também um caráter post festum, ou seja, só é capaz de adotar métodos corretivos após o dano ter sido cometido, e mesmo assim tais medidas corretivas só podem ser introduzidas de uma maneira muito limitada.
c) Como resultado dessas duas determinações supramencionadas, o sistema se torna incompatível com qualquer tipo de planejamento que não seja no sentido o mais míope possível do termo. Isso acontece com as gigantes e quase monopolísticas empresas transnacionais, pois mesmo as maiores corporações só podem instituir um limitado planejamento post festum em determinadas empresas (se chegam a tanto), mas são incapazes de controlar sozinhas os seus próprios mercados globais, exceto de maneira estritamente limitada e conflituosa. A importância dessa limitação sistêmica não pode ser exagerada, especialmente sob as circunstâncias históricas hoje observáveis, tendendo em direção a uma integração econômica global, aliada às suas contradições fatais, quando a necessidade de uma forma viável de planejamento completo seria inteiramente vital.
d) A relação entre causa e efeito está estruturalmente viciada pelo sistema de capital. Isso se deve às determinações causais internas do capital, que não podem nunca ser postas sob um exame crítico sério e minucioso. Em outras palavras, esse sistema se impulsiona adiante implacavelmente, sem se questionar, como se fosse absolutamente causa sui. Em conseqüência, o capital é estruturalmente incapaz de apontar as causas que historicamente surgem como causas. Deve operar, mesmo nas suas mais sérias tentativas para introduzir algumas medidas corretivas post festum, de maneira a responder aos efeitos (bons ou maus), empilhando efeitos sobre outros efeitos, como uma regra de forma a gerar repetidamente efeitos contrários geradores de problemas, em sintonia com as limitações da ordem estabelecida no horizonte de tempo a curto prazo. Do mesmo modo, o que é freqüentemente descrito de maneira infeliz como uma “manipulação” consiste, na verdade, em nada mais nem menos do que uma característica contingente do sistema do capital, facilmente corrigível. Trata-se de uma de suas determinações fundamentais – poder-se-ia dizer ontológica -, que poderia ser remediada adotando-se uma forma radicalmente diferente de se relacionar com as causas, tratando-as como causas estruturalmente significantes, em vez de lidar com elas como efeitos mais ou menos e arbitrariamente tratáveis. Para essa solução alternativa, entretanto, seria necessário superar os constrangimentos estruturais do próprio capital, transcendendo-os em direção a uma nova ordem metabólica de produção e reprodução social mais elevada. Afinal, o significado dos imperativos estruturais é precisamente o fato de que é impossível alterá-los significativamente sem considerar uma construção que seja livre das necessárias limitações destrutivas da ordem estabelecida. Comparativamente, conceituar o mundo do ponto de vista do capital continua sendo uma desvantagem insuperável, mesmo para os grandes pensadores que se identificam com o ponto de vista do capital, inclusive Kant, Adam Smith e Hegel.
e) O último ponto a ser mencionado, neste breve levantamento dos limites absolutos do sistema de capital, é a caprichosa eternalização de uma ordem historicamente específica e única, o controle social metabólico tratado atemporalmente, não como assunto de determinações temporais bem identificadas, mas em si mesmas, como se estivessem acima da história e fossem capazes de assumir o papel de juiz final sobre esta. No decorrer dos desenvolvimentos capitalistas, mesmo o reconhecimento parcial da dimensão histórica por grandes pensadores que conceituaram o mundo do ponto de vista da capital, como Kant, Adam Smith e Hegel, já aludidos, teve que ser deixado para trás em favor de uma liquidação sem reservas da consciência do tempo histórico.
A singularidade do sistema de capital se manifesta no imperativo estrutural de “crescer inexoravelmente ou perecer”. Em toda a história humana, nenhum outro sistema de reprodução social metabólica se pareceu, nem mesmo remotamente, com essa determinação interna e totalmente problemática do capital. Essa determinação estrutural também revela o completo engano, do ponto de vista social, de apenas servir a si mesmo [self-serving]; o engano de representar, tão mal, por sinal, a ordem reprodutiva do capital como uma lei universal insuperável, arbitariamente projetada de frente pra trás nos mais remotos cantos da história. Trata-se de uma regra “universal” decretada arbitrariamente e para a qual, segundo os apologetas do sistema, “não há alternativa” com certeza.
O que torna todo esse desenvolvimento extremamente problemático é o fato de que as determinações primárias do sistema de capital orientam-se, perversamente, de cabeça para baixo,(3) isto é, para a auto-expansão do capital como tal e não, ou apenas coincidentemente, para o crescimento dos valores de uso que correspondem a genuínas necessidades humanas. É por este motivo que uma característica dinâmica – que numa fase inicial do desenvolvimento histórico do capital representou um avanço positivo, caminhando de mãos dadas naquele momento com a satisfação legítima da necessidade humana – no nosso tempo se tornou potencialmente a mais destrutiva determinação. O interesse contraditório da motivação auto-expansiva do capital deve prevalecer, a todo custo e sob qualquer circunstância, mesmo quando os lucrativos valores de uso produzidos para essa motivação são os infernais materiais de guerra do complexo industrial militar (cujo valor de uso é a destruição), capazes de exterminar toda a humanidade com as armas reais de destruição em massa do imperialismo hegemônico global.
A mesma reviravolta de uma característica positiva digna se evidencia também, no decorrer do desenvolvimento capitalista, no que concerne à concorrência, marcada pelo eterno papel dominante assumido pelo monopólio, como resultado das crescentes indeterminações negativas de um sistema historicamente único. Desde que o círculo vicioso da concorrência tendente ao monopólio, e do monopólio acarretando concorrência mais acirrada, não pode ser rompido, o resultado é necessariamente o aumento da concentração e centralização do capital, a constituição de empresas mais e mais poderosas, as gigantes corporações transnacionais que dominam a cena, sem o menor decréscimo em seu apetite por devorar os seus concorrentes. Assim o crescimento, como auto-expansão do capital, se torna um esmagador fim em si mesmo, excluindo toda consideração a respeito de um valor inerente das metas adotadas em relação a objetivos humanos genuínos. Muito pelo contrário. A total ausência de uma medida humana adequada para se avaliar a viabilidade do processo de produção e reprodução a longo prazo e o fato de sua reposição basear-se apenas na consideração da acumulação de capital como o fim único em si mesmo, perigosamente, abrem as portas para o avanço inexorável de um crescimento canceroso, perseguido com o intuito da expansão do lucro e a promessa de vantagens futuras na disputa pela dominação quase-monopolista.
A conseqüência destrutiva dessa lógica perversa é dupla: primeiro, no plano econômico, o imperativo do crescimento, sempre mantido ainda que tome a forma de um crescimento canceroso, leva à completa negligência quanto à salvaguarda das condições elementares da existência humana. Isso se manifesta em práticas produtivas muito difundidas que põem em risco diretamente até mesmo o natural substratum da vida humana, de onde provém uma séria preocupação, geralmente expressa em relação à destruição do meio ambiente.(4) Não deve haver dúvidas, uma mudança neste ponto é condição absoluta de uma reprodução social sustentável – apesar do desdém calejado do sistema de capital, totalmente em sintonia com seu incurável horizonte de tempo a curto prazo, repudiá-la com os argumentos mais grotescos de evasão e racionalização, aliados a perigosas medidas práticas correspondentes.(5) Contudo, a cegueira induzida pelo horizonte de tempo do capital não torna a questão em si menos urgente; é preciso que se empreendam as ações corretivas necessárias enquanto ainda há tempo para fazê-lo, tendo em mente a sobrevivência humana.
Não deve haver dúvidas, uma mudança neste ponto é condição absoluta de uma reprodução social sustentável – apesar do desdém calejado do sistema de capital, totalmente em sintonia com seu incurável horizonte de tempo a curto prazo, repudiá-la com os argumentos mais grotescos de evasão e racionalização, aliados a perigosas medidas práticas correspondentes.(6) Contudo, a cegueira induzida pelo horizonte de tempo do capital não torna a questão em si menos urgente; é preciso que se empreendam as ações corretivas necessárias enquanto ainda há tempo para fazê-lo, tendo em mente a sobrevivência humana.
O segundo aspecto vital do crescimento canceroso totalmente subordinado aos imperativos destrutivos da expansão incontrolável do capital, e do concomitante círculo vicioso do monopólio e da concorrência, evidencia-se no plano político-militar, ao qual se recorre porque o impulso para a dominação monopolista não pode nunca ter as suas aspirações globais totalmente bem-sucedidas. Mesmo as mais poderosas corporações transnacionais não conseguem obter mais do que um quase-monopólio, e não uma posição de completo monopólio na ordem global. Isso, certamente, não é motivo para confiança e regozijo, pois a dimensão perigosa e destrutiva dessa tendência em si não diminui por tal limitação. Muito longe disso, essa limitação somente significa que a luta pela dominação global deve ser intensificada, alinhada ao sucesso relativo das gigantes empresas transnacionais, em seus próprios países e no cenário internacional. Conseqüentemente – em contraste com a antiga recomendação de Adam Smith para se manterem os políticos e o Estado fora dos desenvolvimentos econômicos em andamento, de modo a não se interferir no trabalho benevolente da “mão invisível” -, os Estados dos países imperialistas dominantes devem entrar diretamente em cena, sustentando, como todos os meios possíveis ao seu dispor, seus empreendimentos nacionais/transnacionais gigantescos, quando em confronto com os rivais. Assim, a questão do “complexo militar-industrial” não está confinada às imensas determinações devastadoras da produção militar, mas assume também uma forma direta militar-política, como demonstram as vicissitudes do imperialismo no século XX – e de acordo com as atuais tendências prevalentes, ainda mais perigosamente no século XXI. A nova fase do imperialismo hegemônico global, sendo os EUA a sua esmagadora força global dominante,(7) indica uma horrível intensificação dos perigos. Não se trata simplesmente de uma questão de contingente e de uma alterável “política das grandes potências”, mas, e muito mais importante, da manifestação de uma determinação sistêmica na atual fase do desenvolvimento histórico do capital, exigindo uma urgente atenção no seu próprio plano.
Naturalmente, todas essas tendências estão entrelaçadas com as mais profundas determinações de um sistema historicamente único. Assim, negar o seu próprio caráter histórico é conveniente, e se explica pelo desejo de perpetuar os interesses de exploração do poder, os quais podem ser imediatamente racionalizados mediante os postulados da “única eternalização viável” do sistema reprodutivo. A incômoda verdade é que o capital é incapaz de reconhecer os seus próprios limites, quando a questão a formular é: como poderemos remediar, de maneira humanamente sustentável, as contradições e perigos fatais do seu crescimento incontrolável?
Tal consideração é inteiramente inadmissível porque a relação com o crescimento constitui o círculo vicioso do sistema. Isto porque o capital impele o crescimento, de maneira absoluta e incontrolável, ao mesmo tempo que é impelido pelo crescimento a todo custo, como condição da sua – totalmente inatingível – sobrevivência. Os apologetas do sistema hoje ou negam insensivelmente que possa haver qualquer problema sério devido a essa modalidade predominante de crescimento, o que exigiria coações racionais, ou se engajam nas fantasias conservadoras sobre os “limites de crescimento”,(8) não levando em consideração as determinações perniciosas do capital e oferecendo quixotescamente como “solução” a imposição de uma ordem social ainda mais iníqua do que a atual. Em contraste, se retornamos ao século XIX, encontraremos pensadores liberais que conceituaram o mundo do ponto de vista do capital, como John Stuart Mill, mas que ainda estavam preparados para considerar os dilemas do crescimento a longo prazo. Na verdade, Mill também caiu na esperançosa armadilha da eternalização, tentando imaginar um futuro “estado estacionário”(8) da economia, sem nenhum crescimento. Mas a imagem projetada na sua forma eternalizante e autocontraditória se parecia muito mais com um verdadeiro pesadelo do que com uma solução viável.
É impossível encontrar soluções viáveis para todos os problemas com os quais nos deparamos no terreno do capital sem a total consciência das determinações históricas do sistema e das limitações estruturais correspondentes, em contraste com todas as teorias que visam a eternalizar até mesmo as características mais problemáticas e destrutivas. É importante também ter em mente que a determinação histórica desse modo de reprodução social metabólica é memorável, tanto no sentido de notável, por abranger vários séculos como período de tempo, quanto de característica de uma fase em particular do seu desenvolvimento. Ambos os sentidos podem ser muito diferentes, não em absoluto, mas na sua significância para o tipo de ação que deve ser levada a cabo para se ter um confronto bem-sucedido com os problemas identificados. Tomando um exemplo crucial, a busca de um crescimento incontrolável sempre foi uma característica fundamental do capital, como forma mais profunda de determinação sistêmica. Sem ela, a forma única de controle social metabólico não poderia ter conquistado o palco histórico da maneira que fez. Além disso, o caráter imensamente problemático do crescimento orientado para a acumulação de capital não foi um acréscimo mais ou menos acidental em um estágio tardio: foi também, desde o início do sistema, inseparável da natureza do capital, como a mais dinâmica forma de controlar a ordem de reprodução social metabólica conhecida pelos seres humanos na história até a manutenção desse sistema, culminando no momento em que chegou ao fim da sua fase de ascendência. Neste ponto, a segunda e mais específica dimensão da temporalidade histórica do capital se torna agudamente relevante. Pelas mesmas características sistêmicas do crescimento inexorável, profundamente cravadas na própria natureza do capital desde o momento da sua constituição, por meio da alienação e expropriação do trabalho, como um sistema de controle cada vez mais abrangente, uma certa fase do desenvolvimento histórico do capital se transforma em uma determinação potencialmente devastadora.
É a especificidade histórica dessa atual fase ameaçadora que nos impõe a tarefa de uma reavaliação radical da questão do crescimento. Não no sentido de uma pseudo-alternativa útil apenas para si mesma, de “crescimento ou não-crescimento”, mas que deixaria intactas as iniqüidades monstruosas do nosso mundo social, ou que as tornaria piores do que nunca. O crescimento deve ser reavaliado a partir de uma mobilização correta de material e recursos humanos, de um movimento de massas radical, para reorientar as nossas práticas de produção no sentido de realizar os necessários e legítimos objetivos sociais. Isso, porém, é inconcebível sem que se tragam sob um controle racional as forças destrutivas, inseparáveis das atuais modalidades de crescimento baseadas na incontrolável expansão do capital.
Esse é o sentido em que a urgência da hora é uma condição inevitável da nossa própria e tão difícil situação histórica.
Notas:
(1) Minqi Li, “After Neoliberalism: Empire, Social Democracy, or Socialism?”, Monthly Review, jan. 2004, p. 21.
(2) Há relatos de que apenas um dos discursos curtos de George W. Bush continha 37 dessas declarações.
(3) Trata-se de uma das questões vitais no que diz respeito a uma virada na relação entre as “mediações primárias e secundárias” no metabolismo social de reprodução. Recomento ao leitor interessado a discussão dessas questões no capitulo “Causalidade, tempo e formas de mediação”, em meu livro Para além do capital, publicado pela editora Boitempo, São Paulo, em 2002. Ver p. 175-215 dessa edição.
(4) Tenho discutido esses problemas desde 1971. Ver a seção “Capitalism and Environmental Destruction” na minha palestra no Isaac Deutscher Memorial, “The Necessity os Social Control”, proferida na London School of Economics, em janeiro de 1971, inicialmente publicada em um volume pela editora The Merlin Press em Londres, 1971, e reeditada na Parte IV do meu livro Para além do capital. Ver p. 983-1011 da edição brasileira. [Nota do editor: Esse texto, com o título A necessidade do controle social, foi publicado no Brasil na forma de livro pela editora Ensaio, São Paulo, em 1989.]
(5) Lembremos as violações arbitrárias, até mesmo de algumas obrigações adotadas por tratados, tais como a atitude irresponsável do governo dos EUA com relação aos acordos de Kyoto demonstraram.
(6) Para estarmos seguros, essa dominação – independentemente de quão cruel ela é até hoje – não pode ser mantida indefinidamente. É necessário sublinhar não somente o caráter perigoso da dominação dos EUA, mas também a sua instabilidade histórica e fracasso. No devido momento, os complexos problemas na raiz de tais determinações devem ser resolvidos para que se remova a instabilidade, senão a tendência a uma asserção ainda mais agressiva dos ditames dos EUA podem levar à destruição da espécie humana.
(7) Ver a famosa recomendação conservadora em Os limites do crescimento, publicada pelo conhecido Clube de Roma.
(8) Ver o capítulo correspondente no seu livro Economia política.
Texto retirado de:
Dilemas da humanidade: diálogos entre civilizações / organizadores: Marildo Menegat, Elaine Rossetti Behring, Virgínia Fontes; promotores MST, UFRJ, FSS/UERJ. - Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, p. 129-41.
Conferência internacional realizada entre 22 e 24 de julho de 2004, no Rio de Janeiro.
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010
Santa Maria: crônicas de costumes (lembranças de um tempo futuro) - parte I
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1
Levantarei às sete horas da manhã e beberei um café adoçado com remela e sono. Olharei para o relógio na estante, soltarei um suspirozinho silencioso e quase sentirei vergonha de mim mesma por contar as (longas) horas que me faltarão para retornar à cama - mas logo expulsarei os pensamentos preguiçosos! Tomarei um bom banho, colocarei rapidamente a roupa que me apetecer, escovarei os dentes, olharei de relance um par de olhos cor-de-relva no espelho e então seguirei meu rumo.
Transporei a porta da frente do prédio da residência estudantil onde moro. Cumprimentarei com um sorriso o dia que se abre e os conhecidos no caminho, uns indo para a aula, outros para uma sina de trabalho igual a minha.
E assim, cercada de sono e sorrisos, cuidada por anjos e fadas, envolta em aromas de flor, sairei a trabalhar.
Nada possuirei de meu, nada terei a perder entre o passado e o amanhã. Tudo terei a ganhar. A coragem será o meu talismã. Cumprirei a primeira parte da jornada conversando muitas vezes com pessoas desconhecidas. Em meio às funções que me caberão, beberei suas histórias como se um bom e velho vinho fossem. Farei amizades, rirei, comoverei-me, e ao fim do dia os desconhecidos não serão desconhecidos.
Almoçarei no RU, o velho restaurante universitário, passarei a demorada tarde envolvida com tarefas comezinhas. Sonharei, agirei, pensarei, criarei. À tardinha, cansada e mais uma vez com sono, seguirei para a aula, ansiosa por um saber que raramente ali encontrarei.
À noite, de volta ao meu quartinho, recolherei-me ao leito e, no aconchego do travesseiro, procurarei reencontrar as forças perdidas do dia. Pensarei comigo: Tudo de novo amanhã?... E entre sonhos e fantasias mais uma vez dormirei...
Nas horas de folga, serei de alguns dos que me quiserem. Meu corpo será para estes um jardim de delícias, e também eu encontrarei aí o néctar, o descanso e o encanto que procuro. Com asas de devaneios, transformarei o mundo em meu redor, e encherei-o de cores. Brindarei, brincarei, celebrarei, e até chorarei algumas vezes. Costurarei em mim o tempo, o amor, as decepções e os mais sublimes projetos de vida. E com a experiência que ganhar, aprenderei a escolher bem a quem entregar meus lábios de mel e maçã.
2
Levantarei às cinco horas da manhã, para sair às seis e à meia-noite poder estar em meu destino. Esse destino que será apenas uma pequeníssima parte do destino maior e mais distante que eu deverei alcançar.
O Brasil será menor do que a palma da minha mão. E nenhum acadêmico de merda saberá melhor do que eu os detalhes sórdidos e sublimes dessa magnífica e terrível geografia.
De paisagem em paisagem, de perigo em perigo, de derrota em derrota, de marcha em marcha, eu me farei. E realizarei assim a longa travessia. Não estarei, contudo, sozinho. Andará comigo o furioso dragão flamejante sobre o lombo do qual eu montarei, e cujas rédeas enfeitiçadas somente a mim será dado dominar.
Antes de sair de casa, tomarei devagar um chimarrão, meditativo e silencioso como um monge. Ou como um guerreiro que se vai para uma batalha que poderá ser a última, que poderá ser a da morte. Sentirei, no mate, minuciosamente, detalhe a detalhe, um gosto já bem amargo de saudade, e de tudo aquilo que poderei deixar, quiçá para sempre, para trás.
Mas sentirei também que, em todos os dias de uma vida, é preciso aprender a morrer. E com esse sentimento me consolarei.
Dois pequenos projetos de gente, fedendo a mijo, estarão dormindo. Uma criaturinha miúda e delicada, morena, olhos morenos, se despedirá de mim, com um sonolento beijo, à porta. Sairei com um nó apertado na garganta – praguejando por dentro e morrendo de raiva da vida madrasta que levo -, mas logo procurarei não pensar mais nisso.
Montarei o dragão monumental, acariciarei sua gigantesca cabeça metálica. Darei uns tapinhas de leve e assim o acordarei. Ele se espreguiçará, bocejará, bufará, roncará, me reconhecerá e soltará fogo pelas narinas.
Com as pernas bem firmes em suas costelas, sentirei o inconfundível estremecimento de desejo, e saberei que está impaciente por partir. Pisarei fundo na embreagem, virarei a chave, engatarei a primeira marcha. O dragão abrirá e começará a bater as imensas asas.
O sol não terá despontado ainda quando ambos estivermos já longe no horizonte.
3
Levantarei sempre antes da patroa. Seis horas da manhã; às vezes, cinco. Prepararei o café que ela, o esposo, os filhos, tomarão rápidos antes de sair. Nem sempre se lembrarão de se despedir de mim. Mas tudo estará bem, não me importarei. Sentirei-me da família, embora não seja, e um quê de sentimento maternal, que guardo comigo no peito, me impedirá de sentir mágoa de picuinhas tão mínimas.
Lavarei então a louça, arrumarei as camas, porei as roupas para lavar. E antes que eu perceba já será a hora de preparar o almoço.
Antes, um pequeno perdido e temporão acordará aos prantos. A mim caberá limpar-lhe a bunda e dar-lhe a primeira refeição do dia. Recolherei-o em meus braços, minúsculo e indefeso. Me olhará nos olhos com toda a curiosidade de sua tenra filosofia, e com a boca saturada por uma mamadeira maior que o seu tamanho. Do alto dos meus catorze anos de idade, emocionada e sorrindo, desejarei secretamente ser a mãe dessa pequena maquininha de carimbar fraldas.
Não poderei me distrair muito nesses doces pensamentos. Logo chegará a patroa, inflexível e pontual. Correrei servir o almoço, cuidar do bebê, limpar tudo, ajeitar tudo, ver se tudo está nos conformes.
Rápido comerão, comentarão, verão o noticiário da TV, sofrerão e rirão sincronizados todas as padronizadas novidades que dali surgirão. E voltarão correndo para o trabalho, em seus carros. E sem se despedir, no mais das vezes.
Passarei o resto do dia entretida com o resto dos afazeres. À tardinha, prepararei o jantar, farei um refeição frugal e depois olharei descansada a minha amada novelinha, que me fará desejar ser como aquelas mulheres tão lindas, tão esbeltas, tão finas e sofisticadas, e amadas por todos os galãs.
Sonharei todas as noites com o moço bonito do caminhão que duas vezes por semana entrega as encomendas no bazar em frente.
4
Não levantarei nem às sete, nem às oito, nem às nove horas da manhã. Levantarei na hora amarga do rebuliço no estômago. Isto é o mesmo que dizer, para mim, toda hora. Não me importarei, portanto, com relógios.
(Hein? O que estou dizendo? Relógios? O único valor que os relógios terão para mim será referente ao preço que eu puder conseguir pela venda de algum deles, se por acaso em meio ao lixo encontrar algum.)
Alheio ao tempo, então, seguirei. Meu dia de trabalho será enquanto estiver acordado. Transitarei nas sombras, como um bicho. Revirarei dejetos, como um bicho. Viverei da podridão, como um bicho. Quererei e não quererei ser um bicho. Quererei, pois a outra opção, o crime, não me atrairá. Não quererei, porque, apesar das dúvidas de alguns, saberei que sou humano. E no meio dessa terrível contradição terei o ser.
Um filho meu de oito anos seguirá comigo pelas ruas, à noite. E também o de sete. E também o de seis. E também o de cinco. E também a Amada... Juntos trabalharemos. Seremos os operários das ruínas. Papel, alumínio, madeira, metal: nosso aguçado faro estará atento para tudo isso. Não teremos voz, mas cantaremos. Não teremos rosto, mas sorriremos. Não teremos, no mais das vezes, a própria identidade – e quem se importará? -, mas nos abraçaremos e nos amaremos. Sim, certamente. Nos amaremos muitíssimo. Como gente que somos. Como gente que somos...
Nunca sairemos nos jornais, mas de certa forma viveremos deles. Nosso reino será o Império da sucata, do supérfluo e do descartável.
Um curioso Sancho Pança latidor, rabugento e sempre faminto, seguirá ao lado de nossa carrocinha. E às cinco da madrugada, depois de grande parte da cidade percorrida, voltaremos para casa mais sujos do que pau de galinheiro. Suados, cansados, alegres, cantarolando e desdenhando da vida fodida que levamos.
Todo mundo estará dormindo. E ninguém, ninguém mesmo - a não ser os vaga-lumes, as fadas e uns vadios gatos noturnos -, verá o rastro de luz que deixaremos pelo caminho.
5
Não terei hora para acordar nem para dormir. Sim, serei desajustado. Mas é somente no meio desse desajuste permanente em que vivo que poderei enxergar as coisas loucas que eu enxergarei.
Algumas das muitas namoradas que terei implicarão com esse fato. Mas eu, é claro, não me importarei. Elas passarão... Eu? Ah, eu seguirei adiante...
Serei boêmio, mas na verdade serei mais que um boêmio. Na verdade, mas bem na verdade mesmo, os boêmios quererão ser como eu. (Estarei “um grau acima” deles, se é que se pode dizer que a boemia tem escala hierárquica...). A cada copo entornado, ficarei mais jovem, e mais jovem, e muitíssimo mais jovem.
Será possível me ver, em incontáveis noites, transitando pelos botecos, pelas espeluncas mais esdrúxulas, cumprimentando e respeitando – mas sem maiores deferências – os sujeitos mais variados e os mais variados drinks, e puxando, vez que outra, uma caneta, uma folha de papel, um caderninho, até mesmo um guardanapo, e dedilhando meu magnífico ocus pocus estarrecedor, aquele que faz as pedras terem filhos e as frias paredes dos prédios cantarolarem árias de Giuseppe Verdi.
Desenharei um colibri, com os dedos, no ar, e o colibri sairá voando rumo às flores. Apontarei para uma mocinha bonita que me olha do outro lado do balcão, e da ponta dos meu dedo sairão borboletas em cores vivas-cintilantes. Piscarei para uma criança noturna que me pedirá dinheiro na esquina, e dos cantos dos meus olhos pobres sairá um vento azul que lhe afagará a alminha boa.
Não andarei exatamente pelas ruas; deslizarei por elas, e a muitos parecerá que eu flutuo. Terei todos os defeitos do mundo, e não repudiarei nenhum. Terei vícios, e desconfiarei de quem não os tiver. Beberei, fumarei, comerei até a barriga ficar estufada. Fornicarei sem camisinha e não me sentirei culpado, e o excesso será a minha casa.
Ganharei alguns concursos por aí, e me acharei então um gênio. Sonharei escrever um livro, ganhar até o Jabuti, mas terei as minhas grandes satisfações – verdadeiras e impagáveis satisfações – nas palavras bem trabalhadas, finas frases como esculturas, endereçadas para o amigo, para o amor, para o flerte, para o dono do bar da esquina e para a rapariga que vende pão às sete da manhã, aquela que eu vou encontrar nos minutos mágicos e fora do tempo que antecedem a ressaca. E me sentirei completamente feliz assim.
Quando os primeiros raios de sol se alvoroçarem e eu observar os obsessivos e fiéis cumpridores de normas e horários da manhã, desdenharei de todos e comporei, enfim, com o restinho das minhas energias, uma sátira memorável em sua homenagem.
Ah, sim, sem dúvida, eu serei poeta. E saberei disso.
6
Ninguém me verá dormindo, de dia, sob a sombra de uma árvore, na praça.
No meio da multidão - de prédios e de gentes - que segue para o comércio afoita, serei como um grande camaleão cheio de pelos velhos desgrenhados. Serei, de fato, a bela adormecida da granítica paisagem urbana. À noite, no entanto, os meus mais chegados me terão por perto.
Entrarei, sorrateiramente, nos ambientes mais soturnos. A boate do DCE, os banheiros dos botecos das esquinas, as quebradas duvidosas de dar medo aos mais valentes. Nada disso será tabu para mim. Não terei família, não terei vizinhas fofoqueiras, e meus filhos todos estarão pelo mundo. Cuidarei apenas de atravessar as ruas, e olhe lá.
Serei descuidada comigo. Tomarei banho quando chover e gostarei muito de ser errante. Gostarei, aliás, de errar em todos os sentidos possíveis da palavra. Me preocuparei mais com meus amigos. Não os da infância que nunca tive, e sim aqueles que eu fizer na noite, noite após noite, boêmios, poetas, patetas, palhaços e fanfarrões de todo tipo.
Serei um elfo vagabundo? Talvez. Ficarei famosa, e até na internet falarão de mim. Andarei junto com os bêbados, acompanharei-os até suas casas. Uns, metidos a místicos, acharão que sou uma espécie de anjo da guarda, ou quem sabe uma boa alminha penada que, transitando em quatro patas pelo mundo da matéria, os protege pelas ruas. O certo é que, quando vir se aproximar algum bandido ou meliante, latirei, latirei muito, latirei alto, com todas as forças do mundo, e me pegarei com eles em dentadas, para alívio e bem-estar dos meus notívagos camaradas.
E depois desse heroísmo peleador, estes, que devolvi sãos e salvos para o lar, me afagarão na cabeça ou nas paletas, e dizendo uma palavra carinhosa, ou nenhuma, se despedirão de mim.
Morrerei, num dia qualquer, num cruzamento, atropelada por um motorista semi-bêbado.
7
Não terei exatamente uma hora para acordar, mas muito provavelmente será depois do meio-dia. E dia após dia isso se repetirá, sem dúvida. Serei mais um ser noturno, amigo do luar e das estrelas, dos morcegos e das borboletinhas que giram em torno das luzes dos postes. Amigo do tilintar dos copos, dos banquetes e das celebrações.
Serei até famoso no meu ambiente próprio da cidade. Muito famoso. Andar pela rua, à noite, será quase uma solenidade. Cumprimentarei e acenarei sorrindo para todos os que me cumprimentarem, acenando, sorrindo. Bar do Garça, Bar do Velho Manco, Bar do Orlando, Boate do DCE, todos os botecos, pseudo-botecos, proto-botecos, anti-botecos e pós-botecos de Santa Maria serão como que minha sala-de-estar. Ficarei amigo de todos os bodegueiros, bêbados, viciados, tipos esquisitos e cantores de esquina que toparem pelo caminho.
Não farei distinção, não terei preconceito quanto a nada. Cadeira de palha, mesa de madeira, copo de plástico, balcão com potes de ovos de codorna, cachaça com bergamota, tudo aquilo que a pequena-burguesia – e seus imitadores - da minha cidade repele e sente ojeriza, tudo isso será a minha matéria.
Inventarei novos verbos, novos modos de ser, novas gírias e novos conceitos. Chinelagem, por exemplo, será um deles. Chinelagem: s. f. Ato ou efeito de comer, beber e foder sem ter dinheiro; Chinelo: adj. Aquele que pratica a chinelagem. Viverei, então, na chinelagem.
Falarei com todas as pessoas, lerei coisinhas interessantes na internet, tudo para me manter atualizado. E serei democrático, ainda que de um tipo especial de democracia: a democracia macha. Aquela que manda compartilhar com os meus semelhantes todas as aquisições feitas a partir das venturosas incursões no mundo do belo sexo. (Dito de outra forma: comerei todas as mulheres que me aparecerem pela frente e contarei para os amigos.) Este, aliás, será meu objetivo precípuo, meu projeto de vida, meu sentido da existência, meu dogma, minha religião e meu partido político.
Qualquer bueiro, canto escuro, garagem ou terreno baldio, parecerá a mim convidativo para o abate. Terei apelidos engraçados por causa disso e rirei de todos, desbragadamente. Minha fama será a de um sujeito de mil picas e eu adorarei.
Farei contas e terei bem presente o número exato das que comi. E se me perguntarem, direi que a coisa mais inteligente que já saiu da boca de uma mulher foi o pau do Einstein.
Mas serei, no fundo, de bom coração. Bonachão, bem humorado, engraçado e exímio narrador de todas as minhas historietas amorosas.
......
(Continua...)
.
1
Levantarei às sete horas da manhã e beberei um café adoçado com remela e sono. Olharei para o relógio na estante, soltarei um suspirozinho silencioso e quase sentirei vergonha de mim mesma por contar as (longas) horas que me faltarão para retornar à cama - mas logo expulsarei os pensamentos preguiçosos! Tomarei um bom banho, colocarei rapidamente a roupa que me apetecer, escovarei os dentes, olharei de relance um par de olhos cor-de-relva no espelho e então seguirei meu rumo.
Transporei a porta da frente do prédio da residência estudantil onde moro. Cumprimentarei com um sorriso o dia que se abre e os conhecidos no caminho, uns indo para a aula, outros para uma sina de trabalho igual a minha.
E assim, cercada de sono e sorrisos, cuidada por anjos e fadas, envolta em aromas de flor, sairei a trabalhar.
Nada possuirei de meu, nada terei a perder entre o passado e o amanhã. Tudo terei a ganhar. A coragem será o meu talismã. Cumprirei a primeira parte da jornada conversando muitas vezes com pessoas desconhecidas. Em meio às funções que me caberão, beberei suas histórias como se um bom e velho vinho fossem. Farei amizades, rirei, comoverei-me, e ao fim do dia os desconhecidos não serão desconhecidos.
Almoçarei no RU, o velho restaurante universitário, passarei a demorada tarde envolvida com tarefas comezinhas. Sonharei, agirei, pensarei, criarei. À tardinha, cansada e mais uma vez com sono, seguirei para a aula, ansiosa por um saber que raramente ali encontrarei.
À noite, de volta ao meu quartinho, recolherei-me ao leito e, no aconchego do travesseiro, procurarei reencontrar as forças perdidas do dia. Pensarei comigo: Tudo de novo amanhã?... E entre sonhos e fantasias mais uma vez dormirei...
Nas horas de folga, serei de alguns dos que me quiserem. Meu corpo será para estes um jardim de delícias, e também eu encontrarei aí o néctar, o descanso e o encanto que procuro. Com asas de devaneios, transformarei o mundo em meu redor, e encherei-o de cores. Brindarei, brincarei, celebrarei, e até chorarei algumas vezes. Costurarei em mim o tempo, o amor, as decepções e os mais sublimes projetos de vida. E com a experiência que ganhar, aprenderei a escolher bem a quem entregar meus lábios de mel e maçã.
2
Levantarei às cinco horas da manhã, para sair às seis e à meia-noite poder estar em meu destino. Esse destino que será apenas uma pequeníssima parte do destino maior e mais distante que eu deverei alcançar.
O Brasil será menor do que a palma da minha mão. E nenhum acadêmico de merda saberá melhor do que eu os detalhes sórdidos e sublimes dessa magnífica e terrível geografia.
De paisagem em paisagem, de perigo em perigo, de derrota em derrota, de marcha em marcha, eu me farei. E realizarei assim a longa travessia. Não estarei, contudo, sozinho. Andará comigo o furioso dragão flamejante sobre o lombo do qual eu montarei, e cujas rédeas enfeitiçadas somente a mim será dado dominar.
Antes de sair de casa, tomarei devagar um chimarrão, meditativo e silencioso como um monge. Ou como um guerreiro que se vai para uma batalha que poderá ser a última, que poderá ser a da morte. Sentirei, no mate, minuciosamente, detalhe a detalhe, um gosto já bem amargo de saudade, e de tudo aquilo que poderei deixar, quiçá para sempre, para trás.
Mas sentirei também que, em todos os dias de uma vida, é preciso aprender a morrer. E com esse sentimento me consolarei.
Dois pequenos projetos de gente, fedendo a mijo, estarão dormindo. Uma criaturinha miúda e delicada, morena, olhos morenos, se despedirá de mim, com um sonolento beijo, à porta. Sairei com um nó apertado na garganta – praguejando por dentro e morrendo de raiva da vida madrasta que levo -, mas logo procurarei não pensar mais nisso.
Montarei o dragão monumental, acariciarei sua gigantesca cabeça metálica. Darei uns tapinhas de leve e assim o acordarei. Ele se espreguiçará, bocejará, bufará, roncará, me reconhecerá e soltará fogo pelas narinas.
Com as pernas bem firmes em suas costelas, sentirei o inconfundível estremecimento de desejo, e saberei que está impaciente por partir. Pisarei fundo na embreagem, virarei a chave, engatarei a primeira marcha. O dragão abrirá e começará a bater as imensas asas.
O sol não terá despontado ainda quando ambos estivermos já longe no horizonte.
3
Levantarei sempre antes da patroa. Seis horas da manhã; às vezes, cinco. Prepararei o café que ela, o esposo, os filhos, tomarão rápidos antes de sair. Nem sempre se lembrarão de se despedir de mim. Mas tudo estará bem, não me importarei. Sentirei-me da família, embora não seja, e um quê de sentimento maternal, que guardo comigo no peito, me impedirá de sentir mágoa de picuinhas tão mínimas.
Lavarei então a louça, arrumarei as camas, porei as roupas para lavar. E antes que eu perceba já será a hora de preparar o almoço.
Antes, um pequeno perdido e temporão acordará aos prantos. A mim caberá limpar-lhe a bunda e dar-lhe a primeira refeição do dia. Recolherei-o em meus braços, minúsculo e indefeso. Me olhará nos olhos com toda a curiosidade de sua tenra filosofia, e com a boca saturada por uma mamadeira maior que o seu tamanho. Do alto dos meus catorze anos de idade, emocionada e sorrindo, desejarei secretamente ser a mãe dessa pequena maquininha de carimbar fraldas.
Não poderei me distrair muito nesses doces pensamentos. Logo chegará a patroa, inflexível e pontual. Correrei servir o almoço, cuidar do bebê, limpar tudo, ajeitar tudo, ver se tudo está nos conformes.
Rápido comerão, comentarão, verão o noticiário da TV, sofrerão e rirão sincronizados todas as padronizadas novidades que dali surgirão. E voltarão correndo para o trabalho, em seus carros. E sem se despedir, no mais das vezes.
Passarei o resto do dia entretida com o resto dos afazeres. À tardinha, prepararei o jantar, farei um refeição frugal e depois olharei descansada a minha amada novelinha, que me fará desejar ser como aquelas mulheres tão lindas, tão esbeltas, tão finas e sofisticadas, e amadas por todos os galãs.
Sonharei todas as noites com o moço bonito do caminhão que duas vezes por semana entrega as encomendas no bazar em frente.
4
Não levantarei nem às sete, nem às oito, nem às nove horas da manhã. Levantarei na hora amarga do rebuliço no estômago. Isto é o mesmo que dizer, para mim, toda hora. Não me importarei, portanto, com relógios.
(Hein? O que estou dizendo? Relógios? O único valor que os relógios terão para mim será referente ao preço que eu puder conseguir pela venda de algum deles, se por acaso em meio ao lixo encontrar algum.)
Alheio ao tempo, então, seguirei. Meu dia de trabalho será enquanto estiver acordado. Transitarei nas sombras, como um bicho. Revirarei dejetos, como um bicho. Viverei da podridão, como um bicho. Quererei e não quererei ser um bicho. Quererei, pois a outra opção, o crime, não me atrairá. Não quererei, porque, apesar das dúvidas de alguns, saberei que sou humano. E no meio dessa terrível contradição terei o ser.
Um filho meu de oito anos seguirá comigo pelas ruas, à noite. E também o de sete. E também o de seis. E também o de cinco. E também a Amada... Juntos trabalharemos. Seremos os operários das ruínas. Papel, alumínio, madeira, metal: nosso aguçado faro estará atento para tudo isso. Não teremos voz, mas cantaremos. Não teremos rosto, mas sorriremos. Não teremos, no mais das vezes, a própria identidade – e quem se importará? -, mas nos abraçaremos e nos amaremos. Sim, certamente. Nos amaremos muitíssimo. Como gente que somos. Como gente que somos...
Nunca sairemos nos jornais, mas de certa forma viveremos deles. Nosso reino será o Império da sucata, do supérfluo e do descartável.
Um curioso Sancho Pança latidor, rabugento e sempre faminto, seguirá ao lado de nossa carrocinha. E às cinco da madrugada, depois de grande parte da cidade percorrida, voltaremos para casa mais sujos do que pau de galinheiro. Suados, cansados, alegres, cantarolando e desdenhando da vida fodida que levamos.
Todo mundo estará dormindo. E ninguém, ninguém mesmo - a não ser os vaga-lumes, as fadas e uns vadios gatos noturnos -, verá o rastro de luz que deixaremos pelo caminho.
5
Não terei hora para acordar nem para dormir. Sim, serei desajustado. Mas é somente no meio desse desajuste permanente em que vivo que poderei enxergar as coisas loucas que eu enxergarei.
Algumas das muitas namoradas que terei implicarão com esse fato. Mas eu, é claro, não me importarei. Elas passarão... Eu? Ah, eu seguirei adiante...
Serei boêmio, mas na verdade serei mais que um boêmio. Na verdade, mas bem na verdade mesmo, os boêmios quererão ser como eu. (Estarei “um grau acima” deles, se é que se pode dizer que a boemia tem escala hierárquica...). A cada copo entornado, ficarei mais jovem, e mais jovem, e muitíssimo mais jovem.
Será possível me ver, em incontáveis noites, transitando pelos botecos, pelas espeluncas mais esdrúxulas, cumprimentando e respeitando – mas sem maiores deferências – os sujeitos mais variados e os mais variados drinks, e puxando, vez que outra, uma caneta, uma folha de papel, um caderninho, até mesmo um guardanapo, e dedilhando meu magnífico ocus pocus estarrecedor, aquele que faz as pedras terem filhos e as frias paredes dos prédios cantarolarem árias de Giuseppe Verdi.
Desenharei um colibri, com os dedos, no ar, e o colibri sairá voando rumo às flores. Apontarei para uma mocinha bonita que me olha do outro lado do balcão, e da ponta dos meu dedo sairão borboletas em cores vivas-cintilantes. Piscarei para uma criança noturna que me pedirá dinheiro na esquina, e dos cantos dos meus olhos pobres sairá um vento azul que lhe afagará a alminha boa.
Não andarei exatamente pelas ruas; deslizarei por elas, e a muitos parecerá que eu flutuo. Terei todos os defeitos do mundo, e não repudiarei nenhum. Terei vícios, e desconfiarei de quem não os tiver. Beberei, fumarei, comerei até a barriga ficar estufada. Fornicarei sem camisinha e não me sentirei culpado, e o excesso será a minha casa.
Ganharei alguns concursos por aí, e me acharei então um gênio. Sonharei escrever um livro, ganhar até o Jabuti, mas terei as minhas grandes satisfações – verdadeiras e impagáveis satisfações – nas palavras bem trabalhadas, finas frases como esculturas, endereçadas para o amigo, para o amor, para o flerte, para o dono do bar da esquina e para a rapariga que vende pão às sete da manhã, aquela que eu vou encontrar nos minutos mágicos e fora do tempo que antecedem a ressaca. E me sentirei completamente feliz assim.
Quando os primeiros raios de sol se alvoroçarem e eu observar os obsessivos e fiéis cumpridores de normas e horários da manhã, desdenharei de todos e comporei, enfim, com o restinho das minhas energias, uma sátira memorável em sua homenagem.
Ah, sim, sem dúvida, eu serei poeta. E saberei disso.
6
Ninguém me verá dormindo, de dia, sob a sombra de uma árvore, na praça.
No meio da multidão - de prédios e de gentes - que segue para o comércio afoita, serei como um grande camaleão cheio de pelos velhos desgrenhados. Serei, de fato, a bela adormecida da granítica paisagem urbana. À noite, no entanto, os meus mais chegados me terão por perto.
Entrarei, sorrateiramente, nos ambientes mais soturnos. A boate do DCE, os banheiros dos botecos das esquinas, as quebradas duvidosas de dar medo aos mais valentes. Nada disso será tabu para mim. Não terei família, não terei vizinhas fofoqueiras, e meus filhos todos estarão pelo mundo. Cuidarei apenas de atravessar as ruas, e olhe lá.
Serei descuidada comigo. Tomarei banho quando chover e gostarei muito de ser errante. Gostarei, aliás, de errar em todos os sentidos possíveis da palavra. Me preocuparei mais com meus amigos. Não os da infância que nunca tive, e sim aqueles que eu fizer na noite, noite após noite, boêmios, poetas, patetas, palhaços e fanfarrões de todo tipo.
Serei um elfo vagabundo? Talvez. Ficarei famosa, e até na internet falarão de mim. Andarei junto com os bêbados, acompanharei-os até suas casas. Uns, metidos a místicos, acharão que sou uma espécie de anjo da guarda, ou quem sabe uma boa alminha penada que, transitando em quatro patas pelo mundo da matéria, os protege pelas ruas. O certo é que, quando vir se aproximar algum bandido ou meliante, latirei, latirei muito, latirei alto, com todas as forças do mundo, e me pegarei com eles em dentadas, para alívio e bem-estar dos meus notívagos camaradas.
E depois desse heroísmo peleador, estes, que devolvi sãos e salvos para o lar, me afagarão na cabeça ou nas paletas, e dizendo uma palavra carinhosa, ou nenhuma, se despedirão de mim.
Morrerei, num dia qualquer, num cruzamento, atropelada por um motorista semi-bêbado.
7
Não terei exatamente uma hora para acordar, mas muito provavelmente será depois do meio-dia. E dia após dia isso se repetirá, sem dúvida. Serei mais um ser noturno, amigo do luar e das estrelas, dos morcegos e das borboletinhas que giram em torno das luzes dos postes. Amigo do tilintar dos copos, dos banquetes e das celebrações.
Serei até famoso no meu ambiente próprio da cidade. Muito famoso. Andar pela rua, à noite, será quase uma solenidade. Cumprimentarei e acenarei sorrindo para todos os que me cumprimentarem, acenando, sorrindo. Bar do Garça, Bar do Velho Manco, Bar do Orlando, Boate do DCE, todos os botecos, pseudo-botecos, proto-botecos, anti-botecos e pós-botecos de Santa Maria serão como que minha sala-de-estar. Ficarei amigo de todos os bodegueiros, bêbados, viciados, tipos esquisitos e cantores de esquina que toparem pelo caminho.
Não farei distinção, não terei preconceito quanto a nada. Cadeira de palha, mesa de madeira, copo de plástico, balcão com potes de ovos de codorna, cachaça com bergamota, tudo aquilo que a pequena-burguesia – e seus imitadores - da minha cidade repele e sente ojeriza, tudo isso será a minha matéria.
Inventarei novos verbos, novos modos de ser, novas gírias e novos conceitos. Chinelagem, por exemplo, será um deles. Chinelagem: s. f. Ato ou efeito de comer, beber e foder sem ter dinheiro; Chinelo: adj. Aquele que pratica a chinelagem. Viverei, então, na chinelagem.
Falarei com todas as pessoas, lerei coisinhas interessantes na internet, tudo para me manter atualizado. E serei democrático, ainda que de um tipo especial de democracia: a democracia macha. Aquela que manda compartilhar com os meus semelhantes todas as aquisições feitas a partir das venturosas incursões no mundo do belo sexo. (Dito de outra forma: comerei todas as mulheres que me aparecerem pela frente e contarei para os amigos.) Este, aliás, será meu objetivo precípuo, meu projeto de vida, meu sentido da existência, meu dogma, minha religião e meu partido político.
Qualquer bueiro, canto escuro, garagem ou terreno baldio, parecerá a mim convidativo para o abate. Terei apelidos engraçados por causa disso e rirei de todos, desbragadamente. Minha fama será a de um sujeito de mil picas e eu adorarei.
Farei contas e terei bem presente o número exato das que comi. E se me perguntarem, direi que a coisa mais inteligente que já saiu da boca de uma mulher foi o pau do Einstein.
Mas serei, no fundo, de bom coração. Bonachão, bem humorado, engraçado e exímio narrador de todas as minhas historietas amorosas.
......
(Continua...)
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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010
19 de fevereiro, 3 da manhã... Corazón maldito
.
Corazón, contesta,
por qué palpitas, sí,
por qué palpitas,
como una campana
que se encabrita, sí,
que se encabrita.
Por qué palpitas.
No ves que la noche
La paso en vela, sí,
la paso en vela,
como en mar violento
la carabela, sí,
la carabela.
Tú me desvelas.
Cuál es mi pecado
pa maltratarme, sí,
pa maltratarme,
como el prisionero
por los gendarmes,
sí, por los gendarmes.
Quieres matarme.
Pero a ti te ocultan
duras paredes, sí,
duras paredes
y mi sangre oprimes
entre tus redes, sí,
entre tus redes.
Por qué no cedes.
Corazón maldito
sin miramiento, sí,
sin miramiento,
ciego, sordo y mudo
de nacimiento, sí,
de nacimiento.
Me das tormento.
(Autora: Violeta Parra; Interpretação: Inti Illimani)
Corazón, contesta,
por qué palpitas, sí,
por qué palpitas,
como una campana
que se encabrita, sí,
que se encabrita.
Por qué palpitas.
No ves que la noche
La paso en vela, sí,
la paso en vela,
como en mar violento
la carabela, sí,
la carabela.
Tú me desvelas.
Cuál es mi pecado
pa maltratarme, sí,
pa maltratarme,
como el prisionero
por los gendarmes,
sí, por los gendarmes.
Quieres matarme.
Pero a ti te ocultan
duras paredes, sí,
duras paredes
y mi sangre oprimes
entre tus redes, sí,
entre tus redes.
Por qué no cedes.
Corazón maldito
sin miramiento, sí,
sin miramiento,
ciego, sordo y mudo
de nacimiento, sí,
de nacimiento.
Me das tormento.
(Autora: Violeta Parra; Interpretação: Inti Illimani)
terça-feira, 16 de fevereiro de 2010
17 de Fevereiro, 5 horas da manhã... Todo o sentimento
.
Preciso não dormir
Até se consumar
O tempo da gente.
Preciso conduzir
Um tempo de te amar,
Te amando devagar e urgentemente.
Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez,
Que recolhe todo sentimento
E bota no corpo uma outra vez.
Prometo te querer
Até o amor cair
Doente, doente...
Prefiro, então, partir
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente.
Depois de te perder,
Te encontro, com certeza,
Talvez num tempo da delicadeza,
Onde não diremos nada;
Nada aconteceu.
Apenas seguirei
Como encantado ao lado teu.
(Chico Buarque)
.
Preciso não dormir
Até se consumar
O tempo da gente.
Preciso conduzir
Um tempo de te amar,
Te amando devagar e urgentemente.
Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez,
Que recolhe todo sentimento
E bota no corpo uma outra vez.
Prometo te querer
Até o amor cair
Doente, doente...
Prefiro, então, partir
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente.
Depois de te perder,
Te encontro, com certeza,
Talvez num tempo da delicadeza,
Onde não diremos nada;
Nada aconteceu.
Apenas seguirei
Como encantado ao lado teu.
(Chico Buarque)
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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010
Balderrama - belíssima interpretação de Mercedes Sosa
.
"
A orillitas del canal
Cuando llega la mañana
Sale cantando la noche
Desde lo de balderrama
Adentro puro temblor
El bombo con la baguala
Y se alborota quemando
Dele chispear la guitarra
Lucero, solito
Brote del alba
Donde iremos a parar
Si se apaga balderrama
Si uno se pone a cantar
Un cochero lo acompaña
Y en cada vaso de vino
Tiembla el lucero del alba
Zamba del amanecer
Arrullo de balderrama
Canta por la medianoche
Llora por la madrugada.
"
A orillitas del canal
Cuando llega la mañana
Sale cantando la noche
Desde lo de balderrama
Adentro puro temblor
El bombo con la baguala
Y se alborota quemando
Dele chispear la guitarra
Lucero, solito
Brote del alba
Donde iremos a parar
Si se apaga balderrama
Si uno se pone a cantar
Un cochero lo acompaña
Y en cada vaso de vino
Tiembla el lucero del alba
Zamba del amanecer
Arrullo de balderrama
Canta por la medianoche
Llora por la madrugada.
domingo, 7 de fevereiro de 2010
Os Doze Nascimentos de Miguel Mármol - narrados por Eduardo Galeano
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1905 – Ilopango – MIGUEL NA PRIMEIRA SEMANA
A senhorita Santos Mármol, prenhe na marra, nega-se a dar o nome do autor de sua desonra. A mãe, dona Tomasa, dá duro nela, a pauladas. Dona Tomasa, viúva de homem pobre mas branco, suspeita o pior.
Quando o menino nasce, a repudiada senhorita Santos o pega nos braços:
_Este é teu neto, mamãe.
Dona Tomasa dá um grito de espanto ao ver o recém nascido, aranha azul, índio bicudo, tão feioso que dá mais cólera que pena, e bate, plam, a porta em seu nariz.
Diante de tal batida de porta, a senhorita Santos se esparrama pelo chão. Debaixo de sua desmaiada mãe, o recém nascido parece morto. Mas, quando os vizinhos a tiram de cima, o esmagadinho solta um tremendo berro.
E assim acontece o segundo nascimento de Miguel Mármol, quase ao princípio da sua idade.
1918 – Ilopango – MIGUEL AOS TREZE
Chegou ao quartel de Ilopango empurrado pela fome, que tinha escondido seus olhos lá no fundo de sua cara.
No quartel, a troco de comida, Miguel começou fazendo mandados e engraxando botas de tenentes. Rapidamente aprendeu a partir cocos com um só golpe de facão, como se fossem pescoços, e a disparar a carabina sem desperdiçar cartuchos. Assim virou soldado.
Ao cabo de um ano de vida no quartel, o pobre rapazinho não agüenta mais. Depois de tanto suportar oficiais bêbados que batiam nele à toa, Miguel escapa. E esta noite, a noite da sua fuga, estala o terremoto em Ilopango. Miguel o escuta de longe.
Um dia sim e outro também treme a terra em El Salvador, país de gente quente, e entre tremor e tremor, algum terremoto de verdade, um senhor terremoto como este, invade e arrebenta. Esta noite o terremoto desmorona o quartel, já sem Miguel, até a última pedra; e todos os oficiais e todos os soldados morrem esmagados pelo desmoronamento.
E assim ocorre o terceiro nascimento de Miguel Mármol, aos treze anos de idade.
1930 – Ilopango – MIGUEL AOS VINTE E CINCO
A crise joga no chão o preço do café. Os grãos apodrecem nos galhos; um cheiro adocicado, de café podre, pesa no ar. Em toda a América Central, os fazendeiros põem os peões na rua. Os poucos que têm trabalho recebem a mesma ração que os porcos.
Em plena crise nasce o Partido Comunista de El Salvador. Miguel é um dos fundadores. Mestre artesão no ofício da sapataria, Miguel trabalha dia sim, dia não. A polícia anda pisando seus calcanhares. Ele agita o ambiente, recruta gente, se esconde e foge.
Certa manhã Miguel se aproxima, disfarçado, de sua casa. Vê que não está vigiada. Escuta seu filho chorar e entra. O menino está sozinho, chorando forte. Miguel começa a trocar suas fraldas quando ergue o olhar e pela janela janela descobre que os guardas estão rodeando a casa.
_Perdão – diz ao cagadinho, e o deixa no meio da troca. Dá um salto de gato e consegue deslizar por um buraco entre as telhas velhas, enquanto soam os primeiros tiros.
E assim acontece o quarto nascimento de Miguel Mármol, aos vinte e cinco anos de idade.
1932 – Izalco – O USO DO DIREITO DE VOTO E SUAS PENOSAS CONSEQÜÊNCIAS
O general Maximiliano Hernández Martínez, presidente por golpe de Estado, convoca o povo de El Salvador a eleger deputados e prefeitos. Apesar de mil armadilhas, o minúsculo Partido Comunista ganha as eleições. O general se indigna e diz que assim não vale. Fica suspenso para sempre o escrutínio dos votos.
Os comunistas, roubados, se rebelam. O povo explode no mesmo dia em que explode o vulcão Izalco. Enquanto a lava fervente corre pelas ladeiras e as nuvens de cinza cobrem o céu, os camponeses vermelhos, facão na mão, assaltam os quarteis em Izalco, Nahuizalco, Tacuba, Juayúa e outros povoados. Durante três dias os primeiros sovietes da América ocupam o poder.
Durante três dias. E três meses dura a matança. Farabundo Martí e outros dirigentes comunistas caem na frente dos pelotões de fuzilamento. Os soldados matam a golpes o chefe índio José Feliciano Ama, cabeça da rebelião em Izalco; depois enforcam o cadáver de Ama na praça principal e obrigam as crianças das escolas a presenciar o espetáculo. Trinta mil camponeses, condenados por denúncia de patrão, simples suspeita ou cochicho de velha, cavam suas próprias tumbas com as mãos. Morrem crianças também, porque os comunistas, como as cobras, é preciso matá-los desde pequenos. Onde quer que raspem as unhas de um cão ou os cascos de um porco, aparecem restos de gente. Um dos fuzilados é o sapateiro Miguel Mármol.
1932 – Soyapango – MIGUEL AOS VINTE E SEIS
São levados em caminhão, amarrados. Miguel reconhece os lugares de sua infância:
_Que sorte – pensa – Vou morrer perto de onde enterraram meu umbigo.
São levados a porradas. Vão fuzilando de dois em dois. Os faróis do caminhão e a lua dão luz de sobra.
Depois de umas quantas descargas, chega a vez de Miguel e de um vendedor de santinhos, condenado por ser russo. O russo e Miguel apertam as mãos, amarradas nas costas, e enfrentam o pelotão. Miguel sente coceira no corpo inteiro, necessita coçar-se desesperadamente, e está pensando nisso enquanto escuta gritar: Preparar! Apontar! Fogo!
Quando Miguel acorda, há um montão de corpos gotejando sangue em cima dele. Sente sua cabeça latejando e manando sangue, e os tiros dóem no corpo, na alma e na roupa. Escuta o ferrolho de um fuzil. Um tiro de misericórdia. Outro. Outro. Com os olhos nublados de sangue, Miguel espera a bala final, mas em vez de bala chegam golpes de facão.
Aos pontapés os soldados arrojam os corpos na vala e jogam terra em cima. Quando o caminhão vai embora, Miguel, todo baleado e cortado, começa a se mover. Leva séculos para se soltar de tanto morto e tanta terra. Finalmente consegue caminhar, num passo ferozmente lento, mais caindo que andando, e pouco a pouco vai-se afastando. Leva o chapéu de um camarada que se chama Serafim.
E assim ocorre o quinto nascimento de Miguel Mármol, aos vinte e seis anos de idade.
1932 – San Salvador – MIGUEL AOS VINTE E SETE
Dos que salvaram Miguel, não sobrou nenhum vivo. Os soldados crivaram de balas os camaradas que o recolheram numa vala, os que o passaram pelo rio numa cadeira, os que o esconderam numa gruta e os que conseguiram trazê-lo até esta casa, a casa de sua irmã, em San Salvador. Tiveram de abanar a irmã, quando viu o espectro de Miguel costurado a tiros e golpes de facão. Ela estava rezando novenas por seu descanso eterno.
O ofício fúnebre continua. Miguel se recompõe como pode, escondido atrás do altar erguido em sua memória, sem outro remédio além da água de broto de chichipince que a irmã lhe aplica, com santa paciência, sobre as feridas pustulentas. Miguel se estende do outro lado da cortina, ardente de febre; e assim passa o dia de seu aniversário escutando os louvores que lhe dedicam os desconsolados parentes e vizinhos, que choram por ele e fazem reza sem parar.
Uma noite, uma patrulha militar se detém na porta:
_Por quem rezam?
_Pela alma do meu falecido irmão.
Os soldados entram, chegam perto do altar, franzem o nariz.
A irmã de Miguel amassa o rosário. As velas tremem na frente da imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo. Miguel sente súbita vontade de tossir. Mas o soldados se persignam:
_Que em paz descanse – dizem, e continuam seu caminho.
E assim ocorre o sexto nascimento de Miguel Mármol, aos vinte e sete anos de idade.
1934 – San Salvador – MIGUEL AOS VINTE E NOVE
Sempre perseguido pela polícia salvadorenha, Miguel encontra refúgio na casa da amante do cônsul da Espanha.
Certa noite, desaba uma tempestade. Da janela, Miguel vê que o rio cresce e que lá longe, na curva, a correnteza está a ponto de atacar o rancho de barro e taquara onde vivem sua mulher e seus filhos. Desafiando a ventania e as patrulhas noturnas, Miguel abandona seu sólido esconderijo e sai disparado em busca dos seus.
Passam a noite abraçados, apoiados em frágeis paredes, escutando o rugir do vento e do rio. Na madrugada, quando finalmente o ar e a água se calam, o ranchinho está um pouco torto e molhado, mas em pé. Miguel se despede da família e regressa ao seu refúgio.
Mas não o encontra. Daquela casa de bem-plantados pilares, não sobrou nem um tijolo de lembrança. A fúria do rio socavou o barranco, arrancou os alicerces e mandou a casa aos diabos, junto com a amante do cônsul e sua mucama, que morreram afogadas.
E assim ocorre o sétimo nascimento de Miguel Mármol, aos vinte e nove anos de idade.
1936 – San Salvador – MIGUEL AOS TRINTA E UM
Depois do desmoronamento de seu esconderijo no barranco, Miguel tinha sido preso. Passou quase dois anos algemado numa cela solitária. Recém-saído do cárcere, perambula pelos caminhos, pária esfarrapado, sem nada. Não tem partido, porque seus camaradas do Partido Comunista suspeitam que o ditador Martínez deixou-o livre a troco de traição. Não tem trabalho, porque o ditador Martínez impede que o empreguem. Não tem mulher, que abandonou-o levando os filhos, nem tem casa, nem comida, nem sapatos, nem ao menos nome tem: está provado que Miguel Mármol não existe desde que foi executado em 1932.
Decide acabar de uma vez. Já basta de tristear a sorte negra. Com um facão abrirá as veias. E está erguendo o facão, quando pelo caminho aparece um menino no lombo de um burro. O menino o cumprimenta, agitando um enorme chapéu de palha, e pede o facão para abrir um coco. Depois oferece a metade do coco aberto, água de beber, polpa de comer, e Miguel bebe e come como se este menino desconhecido o tivesse convidado para uma esplêndida festa, e se levanta e caminhando abandona a morte.
E assim ocorre o oitavo nascimento de Miguel Mármol, aos trinta e um anos de idade.
1945 – Fronteira entre a Guatemala e El Salvador – MIGUEL AOS QUARENTA
Dorme em cavernas e cemitérios. Condenado ao soluço contínuo pela fome, anda disputando migalhas com os corvos e os pombos. A irmã, que o encontra de vez em quando, diz a ele:
_Deus te deu muitas habilidades, mas te impôs o castigo de ser comunista.
Desde que Miguel recuperou a confiança de seu partido, não deixou de correr e padecer. E agora o partido resolveu que o mais sacrificado de seus militantes vá de El Salvador para o exílio na Guatemala.
Miguel consegue passar a fronteira, depois de mil peripécias e perigos. Já é noite fechada. Estende-se para dormir, exausto, debaixo de uma árvore. Ao amanhecer, é acordado por uma enorme vaca amarela, que lambe seus pés. Miguel diz à vaca:
_Bom dia.
E a vaca se assusta, foge à toda e, mugindo, se mete no mato. Do mato emergem, em seguida, cinco touros vingadores. Miguel não pode escapar nem para trás nem para cima. Às suas costas há um abismo e a árvore é das de tronco liso. Em turbilhão avançam os touros, mas antes do ataque final param e, olhando fixo para ele, bufam, jorram fumaça e fogo, dão chifradas no ar e raspam o chão arrancando erva e pó.
Miguel sua frio e treme. Gago de pânico, balbucia explicações. Os touros olham para ele, homenzinho metade fome metade medo, e se olham entre si. Ele encomenda sua alma a Marx e a São Francisco de Assis. E finalmente os touros viram as costas e se afastam, cabisbaixos, a passo lento.
E assim acontece o nono nascimento de Miguel Mármol, aos quarenta anos de idade.
1954 – Mazatenango – MIGUEL AOS QUARENTA E NOVE
Ao canto das aves, antes da primeira luz, afiam os facões. E a galope chegam a Mazatenango, á procura de Miguel. Os verdugos vão fazendo cruzes na longo lista dos marcados para morrer, enquanto o exército de Castillo Armas se apodera da Guatemala. Miguel figura em quinto lugar entre os mais perigosos, condenado por ser comunista e estrangeiro arruaceiro. Desde que chegou fugido de El Salvador, não parou um só instante sua tarefa de agitar operários.
Põem os cachorros em cima dele. Querem levá-lo pendurado num cavalo e exibi-lo pelos caminhos com a garganta aberta por um golpe de facão. Mas Miguel é bicho muito vivido e sabido e se perde no matagal.
E assim ocorre o décimo nascimento de Miguel Mármol, aos quarenta e nove anos de idade.
1963 – San Salvador - MIGUEL AOS CINQÜENTA E OITO
Anda Miguel como de costume, pulando de galho em galho, cometendo sindicatos camponeses e outras diabruras, quando a polícia o agarra em algum povoado e o traz, amarrado pelos pés e pelas mãos, à cidade de San Salvador.
Aqui recebe longa sova. Oito dias apanha, dependurado; oito noites apanha, no chão. Muito rangem seus ossos e grita sua carne, mas ele não solta nem um pio enquanto exigem que revele segredos. Em compensação, quando o torturador xinga sua gente querida, o velho respondão se levanta de seus restos sangrantes, o velho galinho de briga ergue a crista e cacareja, Miguel ordena ao capitão que feche sua boca porca. E então o capitão afunda no seu pescoço a pistola e Miguel o desafia: é só apertar o gatilho. E ficam cara a cara os dois, ferozes, arfantes, como soprando brasas: o soldado com o dedo no gatilho, a pistola cravada no pescoço de Miguel e os olhos cravados em seus olhos, Miguel sem pestanejar, comprovando a passagem dos segundos e dos séculos e escutando o ressoar do coração que subiu-lhe à cabeça. E já se dá Miguel por morto de morte total, quando de repente uma sombra aparece no fulgor da fúria dos olhos do capitão, um cansaço ou sabe-se lá o quê o invade e toma seus olhos por assalto, e de repente o capitão pisca, surpreendido por estar onde está, e lentamente deixa cair a arma e o olhar.
E assim acontece o décimo primeiro nascimento de Miguel Mármol, aos cinqüenta e oito anos de idade.
1975 – San Salvador – MIGUEL AOS SETENTA
Cada dia da vida é o irrepetível acorde de uma música que debocha da morte. O perigoso Miguel passou dos limites e os donos de El Salvador decidem comprar um assassino para que a vida vá cantar noutro lugar.
O assassino tem um punhal escondido debaixo da camisa. Miguel está sentado, falando aos estudantes na universidade. Está dizendo a eles que os jovens têm que ocupar o lugar dos vovôs, e que é preciso que atuem, que se arrisquem, que façam coisas sem cacarejar como as galinhas cada vez que põem um ovo. O assassino abre caminho lentamente entre o público e vai indo até ficar nas costas de Miguel. Mas no instante em que ergue a lâmina, uma mulher dá um tremendo grito e Miguel se atira no chão e evita a punhalada.
E assim acontece o décimo segundo nascimento de Miguel Mármol, aos setenta anos de idade.
1984 – Havana - MIGUEL AOS SETENTA E NOVE
Ao longo do século, este homem passou pelo pior e muitas vezes morreu por bala ou feitiço. Agora, no exílio, continua acompanhando com brio a guerra de sua gente.
A luz do amanhecer o encontra sempre levantado, barbeado e conspirando. Ele bem poderia ficar dando voltas e mais voltas nas portas giratórias da memória; mas não sabe bancar o surdo quando o chamam as vozes dos tempos e caminhos que ainda não caminhou.
E assim, aos setenta e nove anos de idade, ocorre a cada dia um novo nascimento de Miguel Mármol, velho mestre no ofício do nascer incessante.
.....
Retirado de Memória do Fogo – vol. 3 – O Século do Vento, de Eduardo Galeano.
1905 – Ilopango – MIGUEL NA PRIMEIRA SEMANA
A senhorita Santos Mármol, prenhe na marra, nega-se a dar o nome do autor de sua desonra. A mãe, dona Tomasa, dá duro nela, a pauladas. Dona Tomasa, viúva de homem pobre mas branco, suspeita o pior.
Quando o menino nasce, a repudiada senhorita Santos o pega nos braços:
_Este é teu neto, mamãe.
Dona Tomasa dá um grito de espanto ao ver o recém nascido, aranha azul, índio bicudo, tão feioso que dá mais cólera que pena, e bate, plam, a porta em seu nariz.
Diante de tal batida de porta, a senhorita Santos se esparrama pelo chão. Debaixo de sua desmaiada mãe, o recém nascido parece morto. Mas, quando os vizinhos a tiram de cima, o esmagadinho solta um tremendo berro.
E assim acontece o segundo nascimento de Miguel Mármol, quase ao princípio da sua idade.
1918 – Ilopango – MIGUEL AOS TREZE
Chegou ao quartel de Ilopango empurrado pela fome, que tinha escondido seus olhos lá no fundo de sua cara.
No quartel, a troco de comida, Miguel começou fazendo mandados e engraxando botas de tenentes. Rapidamente aprendeu a partir cocos com um só golpe de facão, como se fossem pescoços, e a disparar a carabina sem desperdiçar cartuchos. Assim virou soldado.
Ao cabo de um ano de vida no quartel, o pobre rapazinho não agüenta mais. Depois de tanto suportar oficiais bêbados que batiam nele à toa, Miguel escapa. E esta noite, a noite da sua fuga, estala o terremoto em Ilopango. Miguel o escuta de longe.
Um dia sim e outro também treme a terra em El Salvador, país de gente quente, e entre tremor e tremor, algum terremoto de verdade, um senhor terremoto como este, invade e arrebenta. Esta noite o terremoto desmorona o quartel, já sem Miguel, até a última pedra; e todos os oficiais e todos os soldados morrem esmagados pelo desmoronamento.
E assim ocorre o terceiro nascimento de Miguel Mármol, aos treze anos de idade.
1930 – Ilopango – MIGUEL AOS VINTE E CINCO
A crise joga no chão o preço do café. Os grãos apodrecem nos galhos; um cheiro adocicado, de café podre, pesa no ar. Em toda a América Central, os fazendeiros põem os peões na rua. Os poucos que têm trabalho recebem a mesma ração que os porcos.
Em plena crise nasce o Partido Comunista de El Salvador. Miguel é um dos fundadores. Mestre artesão no ofício da sapataria, Miguel trabalha dia sim, dia não. A polícia anda pisando seus calcanhares. Ele agita o ambiente, recruta gente, se esconde e foge.
Certa manhã Miguel se aproxima, disfarçado, de sua casa. Vê que não está vigiada. Escuta seu filho chorar e entra. O menino está sozinho, chorando forte. Miguel começa a trocar suas fraldas quando ergue o olhar e pela janela janela descobre que os guardas estão rodeando a casa.
_Perdão – diz ao cagadinho, e o deixa no meio da troca. Dá um salto de gato e consegue deslizar por um buraco entre as telhas velhas, enquanto soam os primeiros tiros.
E assim acontece o quarto nascimento de Miguel Mármol, aos vinte e cinco anos de idade.
1932 – Izalco – O USO DO DIREITO DE VOTO E SUAS PENOSAS CONSEQÜÊNCIAS
O general Maximiliano Hernández Martínez, presidente por golpe de Estado, convoca o povo de El Salvador a eleger deputados e prefeitos. Apesar de mil armadilhas, o minúsculo Partido Comunista ganha as eleições. O general se indigna e diz que assim não vale. Fica suspenso para sempre o escrutínio dos votos.
Os comunistas, roubados, se rebelam. O povo explode no mesmo dia em que explode o vulcão Izalco. Enquanto a lava fervente corre pelas ladeiras e as nuvens de cinza cobrem o céu, os camponeses vermelhos, facão na mão, assaltam os quarteis em Izalco, Nahuizalco, Tacuba, Juayúa e outros povoados. Durante três dias os primeiros sovietes da América ocupam o poder.
Durante três dias. E três meses dura a matança. Farabundo Martí e outros dirigentes comunistas caem na frente dos pelotões de fuzilamento. Os soldados matam a golpes o chefe índio José Feliciano Ama, cabeça da rebelião em Izalco; depois enforcam o cadáver de Ama na praça principal e obrigam as crianças das escolas a presenciar o espetáculo. Trinta mil camponeses, condenados por denúncia de patrão, simples suspeita ou cochicho de velha, cavam suas próprias tumbas com as mãos. Morrem crianças também, porque os comunistas, como as cobras, é preciso matá-los desde pequenos. Onde quer que raspem as unhas de um cão ou os cascos de um porco, aparecem restos de gente. Um dos fuzilados é o sapateiro Miguel Mármol.
1932 – Soyapango – MIGUEL AOS VINTE E SEIS
São levados em caminhão, amarrados. Miguel reconhece os lugares de sua infância:
_Que sorte – pensa – Vou morrer perto de onde enterraram meu umbigo.
São levados a porradas. Vão fuzilando de dois em dois. Os faróis do caminhão e a lua dão luz de sobra.
Depois de umas quantas descargas, chega a vez de Miguel e de um vendedor de santinhos, condenado por ser russo. O russo e Miguel apertam as mãos, amarradas nas costas, e enfrentam o pelotão. Miguel sente coceira no corpo inteiro, necessita coçar-se desesperadamente, e está pensando nisso enquanto escuta gritar: Preparar! Apontar! Fogo!
Quando Miguel acorda, há um montão de corpos gotejando sangue em cima dele. Sente sua cabeça latejando e manando sangue, e os tiros dóem no corpo, na alma e na roupa. Escuta o ferrolho de um fuzil. Um tiro de misericórdia. Outro. Outro. Com os olhos nublados de sangue, Miguel espera a bala final, mas em vez de bala chegam golpes de facão.
Aos pontapés os soldados arrojam os corpos na vala e jogam terra em cima. Quando o caminhão vai embora, Miguel, todo baleado e cortado, começa a se mover. Leva séculos para se soltar de tanto morto e tanta terra. Finalmente consegue caminhar, num passo ferozmente lento, mais caindo que andando, e pouco a pouco vai-se afastando. Leva o chapéu de um camarada que se chama Serafim.
E assim ocorre o quinto nascimento de Miguel Mármol, aos vinte e seis anos de idade.
1932 – San Salvador – MIGUEL AOS VINTE E SETE
Dos que salvaram Miguel, não sobrou nenhum vivo. Os soldados crivaram de balas os camaradas que o recolheram numa vala, os que o passaram pelo rio numa cadeira, os que o esconderam numa gruta e os que conseguiram trazê-lo até esta casa, a casa de sua irmã, em San Salvador. Tiveram de abanar a irmã, quando viu o espectro de Miguel costurado a tiros e golpes de facão. Ela estava rezando novenas por seu descanso eterno.
O ofício fúnebre continua. Miguel se recompõe como pode, escondido atrás do altar erguido em sua memória, sem outro remédio além da água de broto de chichipince que a irmã lhe aplica, com santa paciência, sobre as feridas pustulentas. Miguel se estende do outro lado da cortina, ardente de febre; e assim passa o dia de seu aniversário escutando os louvores que lhe dedicam os desconsolados parentes e vizinhos, que choram por ele e fazem reza sem parar.
Uma noite, uma patrulha militar se detém na porta:
_Por quem rezam?
_Pela alma do meu falecido irmão.
Os soldados entram, chegam perto do altar, franzem o nariz.
A irmã de Miguel amassa o rosário. As velas tremem na frente da imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo. Miguel sente súbita vontade de tossir. Mas o soldados se persignam:
_Que em paz descanse – dizem, e continuam seu caminho.
E assim ocorre o sexto nascimento de Miguel Mármol, aos vinte e sete anos de idade.
1934 – San Salvador – MIGUEL AOS VINTE E NOVE
Sempre perseguido pela polícia salvadorenha, Miguel encontra refúgio na casa da amante do cônsul da Espanha.
Certa noite, desaba uma tempestade. Da janela, Miguel vê que o rio cresce e que lá longe, na curva, a correnteza está a ponto de atacar o rancho de barro e taquara onde vivem sua mulher e seus filhos. Desafiando a ventania e as patrulhas noturnas, Miguel abandona seu sólido esconderijo e sai disparado em busca dos seus.
Passam a noite abraçados, apoiados em frágeis paredes, escutando o rugir do vento e do rio. Na madrugada, quando finalmente o ar e a água se calam, o ranchinho está um pouco torto e molhado, mas em pé. Miguel se despede da família e regressa ao seu refúgio.
Mas não o encontra. Daquela casa de bem-plantados pilares, não sobrou nem um tijolo de lembrança. A fúria do rio socavou o barranco, arrancou os alicerces e mandou a casa aos diabos, junto com a amante do cônsul e sua mucama, que morreram afogadas.
E assim ocorre o sétimo nascimento de Miguel Mármol, aos vinte e nove anos de idade.
1936 – San Salvador – MIGUEL AOS TRINTA E UM
Depois do desmoronamento de seu esconderijo no barranco, Miguel tinha sido preso. Passou quase dois anos algemado numa cela solitária. Recém-saído do cárcere, perambula pelos caminhos, pária esfarrapado, sem nada. Não tem partido, porque seus camaradas do Partido Comunista suspeitam que o ditador Martínez deixou-o livre a troco de traição. Não tem trabalho, porque o ditador Martínez impede que o empreguem. Não tem mulher, que abandonou-o levando os filhos, nem tem casa, nem comida, nem sapatos, nem ao menos nome tem: está provado que Miguel Mármol não existe desde que foi executado em 1932.
Decide acabar de uma vez. Já basta de tristear a sorte negra. Com um facão abrirá as veias. E está erguendo o facão, quando pelo caminho aparece um menino no lombo de um burro. O menino o cumprimenta, agitando um enorme chapéu de palha, e pede o facão para abrir um coco. Depois oferece a metade do coco aberto, água de beber, polpa de comer, e Miguel bebe e come como se este menino desconhecido o tivesse convidado para uma esplêndida festa, e se levanta e caminhando abandona a morte.
E assim ocorre o oitavo nascimento de Miguel Mármol, aos trinta e um anos de idade.
1945 – Fronteira entre a Guatemala e El Salvador – MIGUEL AOS QUARENTA
Dorme em cavernas e cemitérios. Condenado ao soluço contínuo pela fome, anda disputando migalhas com os corvos e os pombos. A irmã, que o encontra de vez em quando, diz a ele:
_Deus te deu muitas habilidades, mas te impôs o castigo de ser comunista.
Desde que Miguel recuperou a confiança de seu partido, não deixou de correr e padecer. E agora o partido resolveu que o mais sacrificado de seus militantes vá de El Salvador para o exílio na Guatemala.
Miguel consegue passar a fronteira, depois de mil peripécias e perigos. Já é noite fechada. Estende-se para dormir, exausto, debaixo de uma árvore. Ao amanhecer, é acordado por uma enorme vaca amarela, que lambe seus pés. Miguel diz à vaca:
_Bom dia.
E a vaca se assusta, foge à toda e, mugindo, se mete no mato. Do mato emergem, em seguida, cinco touros vingadores. Miguel não pode escapar nem para trás nem para cima. Às suas costas há um abismo e a árvore é das de tronco liso. Em turbilhão avançam os touros, mas antes do ataque final param e, olhando fixo para ele, bufam, jorram fumaça e fogo, dão chifradas no ar e raspam o chão arrancando erva e pó.
Miguel sua frio e treme. Gago de pânico, balbucia explicações. Os touros olham para ele, homenzinho metade fome metade medo, e se olham entre si. Ele encomenda sua alma a Marx e a São Francisco de Assis. E finalmente os touros viram as costas e se afastam, cabisbaixos, a passo lento.
E assim acontece o nono nascimento de Miguel Mármol, aos quarenta anos de idade.
1954 – Mazatenango – MIGUEL AOS QUARENTA E NOVE
Ao canto das aves, antes da primeira luz, afiam os facões. E a galope chegam a Mazatenango, á procura de Miguel. Os verdugos vão fazendo cruzes na longo lista dos marcados para morrer, enquanto o exército de Castillo Armas se apodera da Guatemala. Miguel figura em quinto lugar entre os mais perigosos, condenado por ser comunista e estrangeiro arruaceiro. Desde que chegou fugido de El Salvador, não parou um só instante sua tarefa de agitar operários.
Põem os cachorros em cima dele. Querem levá-lo pendurado num cavalo e exibi-lo pelos caminhos com a garganta aberta por um golpe de facão. Mas Miguel é bicho muito vivido e sabido e se perde no matagal.
E assim ocorre o décimo nascimento de Miguel Mármol, aos quarenta e nove anos de idade.
1963 – San Salvador - MIGUEL AOS CINQÜENTA E OITO
Anda Miguel como de costume, pulando de galho em galho, cometendo sindicatos camponeses e outras diabruras, quando a polícia o agarra em algum povoado e o traz, amarrado pelos pés e pelas mãos, à cidade de San Salvador.
Aqui recebe longa sova. Oito dias apanha, dependurado; oito noites apanha, no chão. Muito rangem seus ossos e grita sua carne, mas ele não solta nem um pio enquanto exigem que revele segredos. Em compensação, quando o torturador xinga sua gente querida, o velho respondão se levanta de seus restos sangrantes, o velho galinho de briga ergue a crista e cacareja, Miguel ordena ao capitão que feche sua boca porca. E então o capitão afunda no seu pescoço a pistola e Miguel o desafia: é só apertar o gatilho. E ficam cara a cara os dois, ferozes, arfantes, como soprando brasas: o soldado com o dedo no gatilho, a pistola cravada no pescoço de Miguel e os olhos cravados em seus olhos, Miguel sem pestanejar, comprovando a passagem dos segundos e dos séculos e escutando o ressoar do coração que subiu-lhe à cabeça. E já se dá Miguel por morto de morte total, quando de repente uma sombra aparece no fulgor da fúria dos olhos do capitão, um cansaço ou sabe-se lá o quê o invade e toma seus olhos por assalto, e de repente o capitão pisca, surpreendido por estar onde está, e lentamente deixa cair a arma e o olhar.
E assim acontece o décimo primeiro nascimento de Miguel Mármol, aos cinqüenta e oito anos de idade.
1975 – San Salvador – MIGUEL AOS SETENTA
Cada dia da vida é o irrepetível acorde de uma música que debocha da morte. O perigoso Miguel passou dos limites e os donos de El Salvador decidem comprar um assassino para que a vida vá cantar noutro lugar.
O assassino tem um punhal escondido debaixo da camisa. Miguel está sentado, falando aos estudantes na universidade. Está dizendo a eles que os jovens têm que ocupar o lugar dos vovôs, e que é preciso que atuem, que se arrisquem, que façam coisas sem cacarejar como as galinhas cada vez que põem um ovo. O assassino abre caminho lentamente entre o público e vai indo até ficar nas costas de Miguel. Mas no instante em que ergue a lâmina, uma mulher dá um tremendo grito e Miguel se atira no chão e evita a punhalada.
E assim acontece o décimo segundo nascimento de Miguel Mármol, aos setenta anos de idade.
1984 – Havana - MIGUEL AOS SETENTA E NOVE
Ao longo do século, este homem passou pelo pior e muitas vezes morreu por bala ou feitiço. Agora, no exílio, continua acompanhando com brio a guerra de sua gente.
A luz do amanhecer o encontra sempre levantado, barbeado e conspirando. Ele bem poderia ficar dando voltas e mais voltas nas portas giratórias da memória; mas não sabe bancar o surdo quando o chamam as vozes dos tempos e caminhos que ainda não caminhou.
E assim, aos setenta e nove anos de idade, ocorre a cada dia um novo nascimento de Miguel Mármol, velho mestre no ofício do nascer incessante.
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Retirado de Memória do Fogo – vol. 3 – O Século do Vento, de Eduardo Galeano.
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010
Paco Ibáñez - Vendrá la muerte y tendrá tus ojos
Poema de Cesare Pavese, cantado no idioma basco (euskera) por Paco Ibáñez.
Virá a morte e terá teus olhos
Virá a morte e terá teus olhos
- esta morte que nos acompanha
de manhã até à noite, insone,
surda, como um velho remorso
ou um vício absurdo -. Teus olhos
serão uma palavra vã,
um grito calado, um silêncio.
Assim o vês a cada manhã
quando solitária sobre ti mesma te voltas
para o espelho. Oh, querida esperança,
também esse dia saberemos nós
que és a vida e que és o nada.
Para todos tem a morte uma mirada.
Virá a morte e terá teus olhos.
Será como abandonar um vício,
como contemplar no espelho
o reaparecer de um rosto morto,
como escutar lábios cerrados.
Mudos, cairemos no redemoinho.
Cesare Pavese
Virá a morte e terá teus olhos
Virá a morte e terá teus olhos
- esta morte que nos acompanha
de manhã até à noite, insone,
surda, como um velho remorso
ou um vício absurdo -. Teus olhos
serão uma palavra vã,
um grito calado, um silêncio.
Assim o vês a cada manhã
quando solitária sobre ti mesma te voltas
para o espelho. Oh, querida esperança,
também esse dia saberemos nós
que és a vida e que és o nada.
Para todos tem a morte uma mirada.
Virá a morte e terá teus olhos.
Será como abandonar um vício,
como contemplar no espelho
o reaparecer de um rosto morto,
como escutar lábios cerrados.
Mudos, cairemos no redemoinho.
Cesare Pavese
terça-feira, 2 de fevereiro de 2010
Teses sobre o conceito de melancolia
.
A essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo
singular. Em sua realidade, é o conjunto das relações sociais.
Karl Marx
.
Tese nº 1
Parece claro que a melancolia não é um fenômeno meramente individual e psicológico e sim histórico e social. A tradição dos oprimidos pelo capital nos ensina que o estado de melancolia em que vivemos não é isolado e fortuito, não é algo que só nos acomete “de vez em quando”. É, na verdade, uma regra geral que nós tentamos a todo custo suprimir, a partir de várias atividades que, em sua maioria quase que absoluta, são postas pelo próprio capital a fim de uma vez mais sugar as nossas energias.
Essa melancolia não é momentânea, nem vinculada a certas experiências pessoais e traumáticas. Ela é onipresente. Podemos observar suas marcas, em várias formas, nos mais diferentes tipos de produção cultural: música, lazer, cinema, televisão, arquitetura, poesia, pintura, etc. Precisamos construir uma terapêutica que corresponda a essa verdade. Talvez nesse momento percebamos que a nossa tarefa é superar os condicionamentos histórico-sociais que estão na raiz da melancolia, e que a “terapia” é, de fato, uma postura crítica em relação aos mesmos.
Somente o engajamento numa práxis desse tipo pode criar um estado de espírito que nos liberta momentaneamente da melancolia que o sistema do capital nos atribui (adjudica). Essa libertação não é uma eliminação, mas um domínio (melancolia dominada) que nos dá condições de nos inserirmos numa práxis revolucionária. É uma reciprocidade dialética que nesse momento se verifica. A práxis revolucionária nos auxilia a dominar a melancolia. A melancolia dominada abre para nós a possibilidade de uma melhor inserção na práxis revolucionária.
O sistema do capital nunca nos liberta da melancolia; ele apenas nos entorpece.
Tese nº 2
A existência humana sob o domínio do capital é algo como uma melancolia permanente. As transformações são muito rápidas, muito intensas, e, nos dias atuais, em última instância, destrutivas. Assimilamos espontaneamente a dinâmica radical desses processos sócio-metabólicos eminentemente destrutivos e auto-destrutivos. Tornamo-nos, pois, destrutivos e auto-destrutivos. A melancolia aparece como expressão espontânea do ser que sente e muitas vezes resiste contra a violência dessa lógica fetichista. Mas geralmente nós não percebemos essa melancolia porque, como paliativo, o sistema nos oferece toda sorte de entorpecentes. Mas à libertação da melancolia só se chega por meio da práxis revolucionária.
Cada pessoa deve escolher, em seu foro íntimo, todos os dias, se quer se entorpecer, se quer se entregar, ou se quer se libertar da melancolia destrutiva que ameaça nos dominar.
Tese nº 3
A melancolia revolucionária é a melancolia dominada, que é já um estado de espírito diferente daquela melancolia primeira, que nos acomete imediatamente ao vivermos enredados na teia de relações sociais que realiza os imperativos do capital. A melancolia dominada é um verdadeiro estado de exceção que criamos pela luta, pela resistência ativa, por todo tipo de atitudes e práticas que empregamos no sentido de negar o atual estado de coisas e de afirmar uma alternativa a esta ordem. Não ser consumista, por exemplo, é um ato de resistência. Não ser utilitário, também.
Tese nº 4
O revolucionário autêntico não se ilude sobre sua melancolia. Ele não procura escondê-la de si, não a joga para debaixo do tapete, não a trancafia num quarto escuro, não a tira do seu campo de visão. Ao contrário, encara fixamente a sua face de Medusa e, com um sorriso de desdém, desarma-a e a transforma em sua aliada.
O revolucionário não se deixa petrificar, portanto, pela melancolia. Ele sabe de onde ela vem e sabe o que fazer com ela.
Tese nº 5
O revolucionário, o comunista, o materialista histórico, não teme a melancolia. Ele a aceita e a perscruta ao aceitá-la. Por meio dela, apreende o mundo. Pelo mundo assim apreendido, compreende a melancolia. Compreende, portanto, a sua melancolia e ao mundo num mesmo movimento.
Tese nº 6
A melancolia, quando nos domina, faz-nos perder a capacidade de atribuir sentido à vida, ao mundo, a nós mesmos, aos outros. Mas é preciso dar sentido à vida, ao mundo, a nós mesmos e aos outros para podermos dominar a melancolia. Dominando a melancolia, somos capazes de dar esse sentido.
Tese nº 7
O sentido que os comunistas atribuem à realidade social posta é o da necessidade de sua superação. Os capitalistas, por sua vez, também atribuem um sentido à realidade. É a sua maneira de suportar a melancolia gerada pelas práticas reificadas coordenadas pelo capital. Mas esse sentido é, bem entendido, o de se comprazer com o fetichismo do capital e, portanto, regozijar-se com a fonte da melancolia. A contradição, então, subsiste, ainda que deslocada para outro patamar. Por isso, o sentido assim atribuído é, no fundo, um entorpecimento. O consumismo, o individualismo, a competitividade capitalista, o próprio ceticismo, o diletantismo, as honrarias, o cultivo do ego, a racionalidade instrumental, o pragmatismo egoísta, o utilitarismo, o lazer alienado, são as múltiplas expressões desse ópio. Mas isso tudo não supera a melancolia. Apenas a deixa momentaneamente anestesiada. Ela retornará como um tigre faminto assim que passar o torpor.
O comunista supera a contradição pela práxis revolucionária, pela postura crítica teórico-prática radical contra a ordem estabelecida. A superação da melancolia tem, assim, dois momentos: o primeiro deles, individual, o da melancolia dominada; o segundo, o definitivo, só se dá com a superação completa das condições históricas de que a melancolia destrutiva é expressão.
O comunista sabe, então, que, embora haja um nível individual de superação da melancolia, a superação integral só se verifica no âmbito da história, com ações sociais e coletivas conscientes.
Tese nº 8
A melancolia é um sinal da história em nós. Ela pode e deve ser superada. E também a história. Isso se faz por meio da práxis revolucionária.
Tese nº 9
A vida vivida no seio das relações capitalistas nos coloca inúmeras pressões, imposições, prazos, compromissos, disciplinas, padrões aos quais devemos nos adaptar, modelos a seguir, medos e inseguranças, disciplina, ordem, etiquetas, tarefas maçantes, práticas monótonas e repetitivas, competição, concorrência, um complexo de atividades que transporta a lógica de relações sociais preponderantes no âmbito mais geral da nossa sociedade até o nível particular da existência individual. O sentido de tudo isso é o fetichismo, a alienação e, sem dúvida, a solidão. O resultado é uma melancolia completa e renitente.
O revolucionário não foge desse mundo. Ele o enfrenta. Dribla essas situações como um intrépido e destemido jogador de futebol, como um camisa 10. Mas assim como um camisa 10 não pode vencer uma batalha campal sozinho, também o revolucionário não o poderá fazer. Ele deve praticar a arte do drible, mas isto só não basta. Deve saber também a arte de jogar em equipe.
Tese nº 10
A melancolia dominada é quando fazemos da melancolia nossa companheira de viagem, e não o nosso algoz.
Tese nº 11
O sistema do capital é controle hierarquicamente estruturado sobre a nossa vida. É uma criação nossa que escapa de nossas mãos, volta-se contra nós e nos subjuga, extraindo e usurpando de nós aquilo que temos de melhor. A melancolia dominada não é, portanto, um controle que o nosso pensamento exerce sobre o nosso corpo ou sentimentos. Não é a imagem refletida no espelho daquilo que nos oprime. E também não é o oposto disso, isto é, o domínio do pensamento por parte dos sentimentos. É, na verdade, uma lucidez encantada, uma magia, ainda que melancólica, de que se reveste as ações do revolucionário. É a superação de uma relação conflitiva, atitude que se converte em condição essencial para uma ação efetiva, individual e coletiva, no sentido de romper com a ordem do capital.
A melancolia dominada é um estado de espírito especial no qual nos damos conta de que, se as coisas não vão melhorar por si próprias, nós precisamos, por isso mesmo, fazer algo. É, portanto, o pessimismo organizado.
Tese nº 12
Somente a melancolia dominada nos permite ver certas coisas que o otimismo ingênuo, o otimismo de diletantes, o otimismo de panfletários, não nos deixa enxergar. Evidentemente, ela também nos cega para algumas coisas. Por isso, os comunistas devem cultivar também o bom humor.
Tese nº 13
Os comunistas mantêm uma relação especial com o prazer e a sensibilidade – a melancolia é uma forma da nossa sensibilidade. Banquetes, festas e celebrações são, para eles, momentos libertários, subversivos e revolucionários. São momentos de exceção, onde a lógica das relações burguesas fica, por um átimo, abolida. Mas, para atingir essa condição, esse oásis existencial dentro do deserto da luta de classes, tais situações devem ser elaboradas por eles mesmos, e não pelo inimigo. As festividades elaboradas pelos senhores do capital têm sempre o propósito de reforçar e reafirmar o ego. Os outros, as coisas, os corpos, são, aí, meios para fins individuais. Os comunistas, ao contrário, em seus momentos de alegria, transcendem o ego usual e tomam os outros e a si como fins. Suas celebrações são experiências coletivas e é isso que lhes devolve o ânimo e a energia para o combate. É a ruptura com o pragmatismo, com o utilitarismo, com a racionalidade capitalista. É a experiência da gratuidade. A embriaguez, a alegria gratuita, os afetos sinceros e desinteressados, são, portanto, subversivos, revolucionários. Também fazem parte da luta de classes. São o que melhor complementa a melancolia dominada.
A essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo
singular. Em sua realidade, é o conjunto das relações sociais.
Karl Marx
.
Tese nº 1
Parece claro que a melancolia não é um fenômeno meramente individual e psicológico e sim histórico e social. A tradição dos oprimidos pelo capital nos ensina que o estado de melancolia em que vivemos não é isolado e fortuito, não é algo que só nos acomete “de vez em quando”. É, na verdade, uma regra geral que nós tentamos a todo custo suprimir, a partir de várias atividades que, em sua maioria quase que absoluta, são postas pelo próprio capital a fim de uma vez mais sugar as nossas energias.
Essa melancolia não é momentânea, nem vinculada a certas experiências pessoais e traumáticas. Ela é onipresente. Podemos observar suas marcas, em várias formas, nos mais diferentes tipos de produção cultural: música, lazer, cinema, televisão, arquitetura, poesia, pintura, etc. Precisamos construir uma terapêutica que corresponda a essa verdade. Talvez nesse momento percebamos que a nossa tarefa é superar os condicionamentos histórico-sociais que estão na raiz da melancolia, e que a “terapia” é, de fato, uma postura crítica em relação aos mesmos.
Somente o engajamento numa práxis desse tipo pode criar um estado de espírito que nos liberta momentaneamente da melancolia que o sistema do capital nos atribui (adjudica). Essa libertação não é uma eliminação, mas um domínio (melancolia dominada) que nos dá condições de nos inserirmos numa práxis revolucionária. É uma reciprocidade dialética que nesse momento se verifica. A práxis revolucionária nos auxilia a dominar a melancolia. A melancolia dominada abre para nós a possibilidade de uma melhor inserção na práxis revolucionária.
O sistema do capital nunca nos liberta da melancolia; ele apenas nos entorpece.
Tese nº 2
A existência humana sob o domínio do capital é algo como uma melancolia permanente. As transformações são muito rápidas, muito intensas, e, nos dias atuais, em última instância, destrutivas. Assimilamos espontaneamente a dinâmica radical desses processos sócio-metabólicos eminentemente destrutivos e auto-destrutivos. Tornamo-nos, pois, destrutivos e auto-destrutivos. A melancolia aparece como expressão espontânea do ser que sente e muitas vezes resiste contra a violência dessa lógica fetichista. Mas geralmente nós não percebemos essa melancolia porque, como paliativo, o sistema nos oferece toda sorte de entorpecentes. Mas à libertação da melancolia só se chega por meio da práxis revolucionária.
Cada pessoa deve escolher, em seu foro íntimo, todos os dias, se quer se entorpecer, se quer se entregar, ou se quer se libertar da melancolia destrutiva que ameaça nos dominar.
Tese nº 3
A melancolia revolucionária é a melancolia dominada, que é já um estado de espírito diferente daquela melancolia primeira, que nos acomete imediatamente ao vivermos enredados na teia de relações sociais que realiza os imperativos do capital. A melancolia dominada é um verdadeiro estado de exceção que criamos pela luta, pela resistência ativa, por todo tipo de atitudes e práticas que empregamos no sentido de negar o atual estado de coisas e de afirmar uma alternativa a esta ordem. Não ser consumista, por exemplo, é um ato de resistência. Não ser utilitário, também.
Tese nº 4
O revolucionário autêntico não se ilude sobre sua melancolia. Ele não procura escondê-la de si, não a joga para debaixo do tapete, não a trancafia num quarto escuro, não a tira do seu campo de visão. Ao contrário, encara fixamente a sua face de Medusa e, com um sorriso de desdém, desarma-a e a transforma em sua aliada.
O revolucionário não se deixa petrificar, portanto, pela melancolia. Ele sabe de onde ela vem e sabe o que fazer com ela.
Tese nº 5
O revolucionário, o comunista, o materialista histórico, não teme a melancolia. Ele a aceita e a perscruta ao aceitá-la. Por meio dela, apreende o mundo. Pelo mundo assim apreendido, compreende a melancolia. Compreende, portanto, a sua melancolia e ao mundo num mesmo movimento.
Tese nº 6
A melancolia, quando nos domina, faz-nos perder a capacidade de atribuir sentido à vida, ao mundo, a nós mesmos, aos outros. Mas é preciso dar sentido à vida, ao mundo, a nós mesmos e aos outros para podermos dominar a melancolia. Dominando a melancolia, somos capazes de dar esse sentido.
Tese nº 7
O sentido que os comunistas atribuem à realidade social posta é o da necessidade de sua superação. Os capitalistas, por sua vez, também atribuem um sentido à realidade. É a sua maneira de suportar a melancolia gerada pelas práticas reificadas coordenadas pelo capital. Mas esse sentido é, bem entendido, o de se comprazer com o fetichismo do capital e, portanto, regozijar-se com a fonte da melancolia. A contradição, então, subsiste, ainda que deslocada para outro patamar. Por isso, o sentido assim atribuído é, no fundo, um entorpecimento. O consumismo, o individualismo, a competitividade capitalista, o próprio ceticismo, o diletantismo, as honrarias, o cultivo do ego, a racionalidade instrumental, o pragmatismo egoísta, o utilitarismo, o lazer alienado, são as múltiplas expressões desse ópio. Mas isso tudo não supera a melancolia. Apenas a deixa momentaneamente anestesiada. Ela retornará como um tigre faminto assim que passar o torpor.
O comunista supera a contradição pela práxis revolucionária, pela postura crítica teórico-prática radical contra a ordem estabelecida. A superação da melancolia tem, assim, dois momentos: o primeiro deles, individual, o da melancolia dominada; o segundo, o definitivo, só se dá com a superação completa das condições históricas de que a melancolia destrutiva é expressão.
O comunista sabe, então, que, embora haja um nível individual de superação da melancolia, a superação integral só se verifica no âmbito da história, com ações sociais e coletivas conscientes.
Tese nº 8
A melancolia é um sinal da história em nós. Ela pode e deve ser superada. E também a história. Isso se faz por meio da práxis revolucionária.
Tese nº 9
A vida vivida no seio das relações capitalistas nos coloca inúmeras pressões, imposições, prazos, compromissos, disciplinas, padrões aos quais devemos nos adaptar, modelos a seguir, medos e inseguranças, disciplina, ordem, etiquetas, tarefas maçantes, práticas monótonas e repetitivas, competição, concorrência, um complexo de atividades que transporta a lógica de relações sociais preponderantes no âmbito mais geral da nossa sociedade até o nível particular da existência individual. O sentido de tudo isso é o fetichismo, a alienação e, sem dúvida, a solidão. O resultado é uma melancolia completa e renitente.
O revolucionário não foge desse mundo. Ele o enfrenta. Dribla essas situações como um intrépido e destemido jogador de futebol, como um camisa 10. Mas assim como um camisa 10 não pode vencer uma batalha campal sozinho, também o revolucionário não o poderá fazer. Ele deve praticar a arte do drible, mas isto só não basta. Deve saber também a arte de jogar em equipe.
Tese nº 10
A melancolia dominada é quando fazemos da melancolia nossa companheira de viagem, e não o nosso algoz.
Tese nº 11
O sistema do capital é controle hierarquicamente estruturado sobre a nossa vida. É uma criação nossa que escapa de nossas mãos, volta-se contra nós e nos subjuga, extraindo e usurpando de nós aquilo que temos de melhor. A melancolia dominada não é, portanto, um controle que o nosso pensamento exerce sobre o nosso corpo ou sentimentos. Não é a imagem refletida no espelho daquilo que nos oprime. E também não é o oposto disso, isto é, o domínio do pensamento por parte dos sentimentos. É, na verdade, uma lucidez encantada, uma magia, ainda que melancólica, de que se reveste as ações do revolucionário. É a superação de uma relação conflitiva, atitude que se converte em condição essencial para uma ação efetiva, individual e coletiva, no sentido de romper com a ordem do capital.
A melancolia dominada é um estado de espírito especial no qual nos damos conta de que, se as coisas não vão melhorar por si próprias, nós precisamos, por isso mesmo, fazer algo. É, portanto, o pessimismo organizado.
Tese nº 12
Somente a melancolia dominada nos permite ver certas coisas que o otimismo ingênuo, o otimismo de diletantes, o otimismo de panfletários, não nos deixa enxergar. Evidentemente, ela também nos cega para algumas coisas. Por isso, os comunistas devem cultivar também o bom humor.
Tese nº 13
Os comunistas mantêm uma relação especial com o prazer e a sensibilidade – a melancolia é uma forma da nossa sensibilidade. Banquetes, festas e celebrações são, para eles, momentos libertários, subversivos e revolucionários. São momentos de exceção, onde a lógica das relações burguesas fica, por um átimo, abolida. Mas, para atingir essa condição, esse oásis existencial dentro do deserto da luta de classes, tais situações devem ser elaboradas por eles mesmos, e não pelo inimigo. As festividades elaboradas pelos senhores do capital têm sempre o propósito de reforçar e reafirmar o ego. Os outros, as coisas, os corpos, são, aí, meios para fins individuais. Os comunistas, ao contrário, em seus momentos de alegria, transcendem o ego usual e tomam os outros e a si como fins. Suas celebrações são experiências coletivas e é isso que lhes devolve o ânimo e a energia para o combate. É a ruptura com o pragmatismo, com o utilitarismo, com a racionalidade capitalista. É a experiência da gratuidade. A embriaguez, a alegria gratuita, os afetos sinceros e desinteressados, são, portanto, subversivos, revolucionários. Também fazem parte da luta de classes. São o que melhor complementa a melancolia dominada.
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