sábado, 27 de fevereiro de 2010

[Sobre o ponto de vista do marginal] – Texto de István Mészáros

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(…) O outono de 1843 trouxe certas modificações na orientação de Marx. Naquela época ele já estava morando em Paris, cercado por um ambiente intelectual mais estimulante que o ajudou a tirar as conclusões mais radicais de sua análise da sociedade contemporânea. Ele pôde avaliar o anacronismo social e político da Alemanha a partir de uma base real de crítica (isto é, pôde perceber as contradições de seu próprio país da perspectiva da situação real de um Estado europeu historicamente mais avançado) e não apenas do ponto de vista de uma idealidade abstrata como aquela que caracterizava a crítica filosófica alemã, inclusive, até certo ponto, a do próprio Marx anterior.

As generalizações filosóficas exigem sempre uma certa distância (ou “posição marginal”) do filósofo em relação à situação concreta sobre a qual baseia suas generalizações. Isso se deu, evidentemente, na história da filosofia de Sócrates a Giordano Bruno, que foram liquidados por serem marginais radicais. Porém mesmo mais tarde, os “marginais” desempenharam um papel extraordinário no desenvolvimento da filosofia: os escoceses em relação à Inglaterra economicamente muito mais adiantada; os filósofos da atrasada Nápoles (de Vico a Benedetto Croce) em relação à Itália do Norte, mais adiantada do ponto de vista do capitalismo; e exemplos semelhantes podem ser encontrados também em outros países. Um grande número de filósofos pertence a essa categoria de marginais, de Rousseau e Kiekegaard até Wittgenstein e Lukács, em nossos dias.

Aos filósofos judeus cabe um papel particular nesse contexto. Devido à posição a que foram forçados por sua condição de párias sociais, eles puderam adotar uma perspectiva intelectual par excellence, o que lhes permitiu, de Spinoza a Marx, realizar algumas das sínteses filosóficas mais fundamentais na história. (Essa característica torna-se ainda mais notável se compararmos a significação dessas conquistas teóricas com as produções artísticas dos pintores e músicos, escultores e escritores judeus. O ponto de vista do marginal, que constituiu uma vantagem nos esforços teóricos, tornou-se um obstáculo nas artes, devido ao caráter inerentemente nacional destas. Um obstáculo que resultou – à parte algumas poucas exceções, como os poemas bastante peculiares, intelectualizados e irônicos de Heine – em obras um tanto sem raízes, carentes de sugestividade e vigor representativo e, portanto, confinadas geralmente ao segundo plano das realizações artísticas. No século XX, é claro, a situação se modifica muito. Em parte devido a uma integração nacional muito maior – embora nunca completa – das comunicações judaicas particulares, decorrente da generalização da tendência social descrita por Marx como “reabsorção” do crescimento pelo judaísmo.[1] Mais importante é, no entanto, o fato de que paralelamente ao avanço desse processo de “reabsorção” - isto é, paralelamente ao triunfo da alienação capitalista em todas as esferas da vida – a arte assume um caráter mais abstrato e “cosmopolita” do que nunca e a experiência da falta de raízes se torna um tema generalizado da arte moderna. Assim, paradoxalmente, o que era antes um obstáculo se transforma numa vantagem, e testemunhamos o aparecimento de alguns grandes escritores judeus – de Proust a Kafka – no primeiro plano da literatura mundial.)

A posição marginal dos grandes filósofos judeus foi duplamente acentuada. Em primeiro lugar, eles estavam numa oposição necessária às suas comunidades nacionais particularistas e discriminatórias, que rejeitavam a idéia da emancipação judaica (por exemplo, “o judeu alemão, em particular, sofre pela falta de liberdade política geral e pelo acentuado cristianismo do Estado”[2]). Mas, em segundo lugar, eles tinham de emancipar-se também do judaísmo a fim de não se paralisarem envolvendo-se nas mesmas contradições em nível diferente, isto é, a fim de fugir das posições particularistas e paroquiais dos judeus, que diferiam apenas em certos aspectos mas não em substância do objeto de sua primeira oposição. Somente puderam atingir a amplitude e o grau de universalidade que caracterizam os sistemas de Spinoza e de Marx os filósofos judeus que foram capazes de apreender o tema da emancipação judaica em sua dualidade paradoxal, de maneira inextricavelmente interligada ao desenvolvimento histórico da humanidade. Muitos outros, de Moses Hess a Martin Buber, devido ao caráter particularista de suas perspectivas – ou, em outras palavras, devido à sua incapacidade de se emanciparem da “estreiteza judaica” -, formularam suas opiniões em termos de utopias de segunda classe, provincianas.

É muito significativo que, no desenvolvimento intelectual de Marx, um ponto de inflexão de grande importância, no outono de 1843, tenha coincidido com uma prise de conscience [tomada de consciência] filosófica com relação ao judaísmo. Seus artigos sobre a questão judaica [3], escritos nos últimos meses de 1843 e em janeiro de 1844, criticavam violentamente não só o atraso e o anacronismo político alemão, que rejeitava a emancipação judaica, mas ao mesmo tempo a estrutura da sociedade capitalista em geral, bem como o papel do judaísmo no desenvolvimento do capitalismo.

A estrutura da moderna sociedade burguesa em sua relação com o judaísmo foi analisada por Marx no plano social e no político em termos que teriam sido impensáveis com base no conhecimento exclusivo da situação – de maneira alguma típica – alemã. Durante os últimos meses de 1842 Marx já havia estudado os escritos de socialistas utópicos franceses, como por exemplo Fourier, Étienne Cabet, Pierre Leroux e Pierre Considérant. Em Paris, contudo, ele teve a oportunidade de observar de perto a situação social e política da França, e em certa medida até de envolver-se pessoalmente nela. Ele foi apresentado aos líderes da oposição democrática e socialista, e com freqüência comparecia às reuniões das associações secretas de operários. Mais ainda, ele estudou sistematicamente a história da Revolução Francesa de 1789, porque queria escrever uma história da Convenção. Tudo isso contribuiu para que se tornasse extremamente familiarizado com os aspectos mais importantes da situação francesa, que estava procurando integrar, juntamente com o seu conhecimento e a experiência da Alemanha, em uma concepção histórica geral. O contraste que estabeleceu, do ponto de vista dos “marginais”, entre a situação alemã e a sociedade francesa – contra o pano de fundo do desenvolvimento histórico moderno como um todo – mostrou-se proveitoso não só para atacar de maneira realista a questão judaica, mas em geral para a elaboração de seu conhecido método histórico.

Somente no interior desse quadro poderia o conceito de alienação – um conceito eminentemente histórico, como vimos – assumir um lugar central no pensamento de Marx, como o ponto de convergência de múltiplos problemas socioeconômicos e também políticos, e só a noção de alienação poderia assumir esse papel dentro de seu quadro conceitual. (…)

Notas:

[1] Ver Karl Marx, On the Jewish question, cit. [Early writings (trad. e org. T. B. Bottomore, Londres, C.A. Watts & Co., 1963)], p. 39.

[2] Ibidem, p. 5.

[3] Marx escreveu dois artigos sobre o assunto, comentando as obras de Bruno Bauer: “Die Judenfrage” (“A questão judaica”), e “Die Fähigkeit der heutigen Juden und Christen, frei zu werden” (“A capacidade dos judeus e cristãos da atualidade de se tornarem livres”); ambos foram publicados pela primeira vez em Deutsch-Französischen Jahrbücher (dirigido por Marx e Arnold Ruge), em fevereiro de 1884.

Texto retirado de:

MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006. p. 71-3.

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