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1905 – Ilopango – MIGUEL NA PRIMEIRA SEMANA
A senhorita Santos Mármol, prenhe na marra, nega-se a dar o nome do autor de sua desonra. A mãe, dona Tomasa, dá duro nela, a pauladas. Dona Tomasa, viúva de homem pobre mas branco, suspeita o pior.
Quando o menino nasce, a repudiada senhorita Santos o pega nos braços:
_Este é teu neto, mamãe.
Dona Tomasa dá um grito de espanto ao ver o recém nascido, aranha azul, índio bicudo, tão feioso que dá mais cólera que pena, e bate, plam, a porta em seu nariz.
Diante de tal batida de porta, a senhorita Santos se esparrama pelo chão. Debaixo de sua desmaiada mãe, o recém nascido parece morto. Mas, quando os vizinhos a tiram de cima, o esmagadinho solta um tremendo berro.
E assim acontece o segundo nascimento de Miguel Mármol, quase ao princípio da sua idade.
1918 – Ilopango – MIGUEL AOS TREZE
Chegou ao quartel de Ilopango empurrado pela fome, que tinha escondido seus olhos lá no fundo de sua cara.
No quartel, a troco de comida, Miguel começou fazendo mandados e engraxando botas de tenentes. Rapidamente aprendeu a partir cocos com um só golpe de facão, como se fossem pescoços, e a disparar a carabina sem desperdiçar cartuchos. Assim virou soldado.
Ao cabo de um ano de vida no quartel, o pobre rapazinho não agüenta mais. Depois de tanto suportar oficiais bêbados que batiam nele à toa, Miguel escapa. E esta noite, a noite da sua fuga, estala o terremoto em Ilopango. Miguel o escuta de longe.
Um dia sim e outro também treme a terra em El Salvador, país de gente quente, e entre tremor e tremor, algum terremoto de verdade, um senhor terremoto como este, invade e arrebenta. Esta noite o terremoto desmorona o quartel, já sem Miguel, até a última pedra; e todos os oficiais e todos os soldados morrem esmagados pelo desmoronamento.
E assim ocorre o terceiro nascimento de Miguel Mármol, aos treze anos de idade.
1930 – Ilopango – MIGUEL AOS VINTE E CINCO
A crise joga no chão o preço do café. Os grãos apodrecem nos galhos; um cheiro adocicado, de café podre, pesa no ar. Em toda a América Central, os fazendeiros põem os peões na rua. Os poucos que têm trabalho recebem a mesma ração que os porcos.
Em plena crise nasce o Partido Comunista de El Salvador. Miguel é um dos fundadores. Mestre artesão no ofício da sapataria, Miguel trabalha dia sim, dia não. A polícia anda pisando seus calcanhares. Ele agita o ambiente, recruta gente, se esconde e foge.
Certa manhã Miguel se aproxima, disfarçado, de sua casa. Vê que não está vigiada. Escuta seu filho chorar e entra. O menino está sozinho, chorando forte. Miguel começa a trocar suas fraldas quando ergue o olhar e pela janela janela descobre que os guardas estão rodeando a casa.
_Perdão – diz ao cagadinho, e o deixa no meio da troca. Dá um salto de gato e consegue deslizar por um buraco entre as telhas velhas, enquanto soam os primeiros tiros.
E assim acontece o quarto nascimento de Miguel Mármol, aos vinte e cinco anos de idade.
1932 – Izalco – O USO DO DIREITO DE VOTO E SUAS PENOSAS CONSEQÜÊNCIAS
O general Maximiliano Hernández Martínez, presidente por golpe de Estado, convoca o povo de El Salvador a eleger deputados e prefeitos. Apesar de mil armadilhas, o minúsculo Partido Comunista ganha as eleições. O general se indigna e diz que assim não vale. Fica suspenso para sempre o escrutínio dos votos.
Os comunistas, roubados, se rebelam. O povo explode no mesmo dia em que explode o vulcão Izalco. Enquanto a lava fervente corre pelas ladeiras e as nuvens de cinza cobrem o céu, os camponeses vermelhos, facão na mão, assaltam os quarteis em Izalco, Nahuizalco, Tacuba, Juayúa e outros povoados. Durante três dias os primeiros sovietes da América ocupam o poder.
Durante três dias. E três meses dura a matança. Farabundo Martí e outros dirigentes comunistas caem na frente dos pelotões de fuzilamento. Os soldados matam a golpes o chefe índio José Feliciano Ama, cabeça da rebelião em Izalco; depois enforcam o cadáver de Ama na praça principal e obrigam as crianças das escolas a presenciar o espetáculo. Trinta mil camponeses, condenados por denúncia de patrão, simples suspeita ou cochicho de velha, cavam suas próprias tumbas com as mãos. Morrem crianças também, porque os comunistas, como as cobras, é preciso matá-los desde pequenos. Onde quer que raspem as unhas de um cão ou os cascos de um porco, aparecem restos de gente. Um dos fuzilados é o sapateiro Miguel Mármol.
1932 – Soyapango – MIGUEL AOS VINTE E SEIS
São levados em caminhão, amarrados. Miguel reconhece os lugares de sua infância:
_Que sorte – pensa – Vou morrer perto de onde enterraram meu umbigo.
São levados a porradas. Vão fuzilando de dois em dois. Os faróis do caminhão e a lua dão luz de sobra.
Depois de umas quantas descargas, chega a vez de Miguel e de um vendedor de santinhos, condenado por ser russo. O russo e Miguel apertam as mãos, amarradas nas costas, e enfrentam o pelotão. Miguel sente coceira no corpo inteiro, necessita coçar-se desesperadamente, e está pensando nisso enquanto escuta gritar: Preparar! Apontar! Fogo!
Quando Miguel acorda, há um montão de corpos gotejando sangue em cima dele. Sente sua cabeça latejando e manando sangue, e os tiros dóem no corpo, na alma e na roupa. Escuta o ferrolho de um fuzil. Um tiro de misericórdia. Outro. Outro. Com os olhos nublados de sangue, Miguel espera a bala final, mas em vez de bala chegam golpes de facão.
Aos pontapés os soldados arrojam os corpos na vala e jogam terra em cima. Quando o caminhão vai embora, Miguel, todo baleado e cortado, começa a se mover. Leva séculos para se soltar de tanto morto e tanta terra. Finalmente consegue caminhar, num passo ferozmente lento, mais caindo que andando, e pouco a pouco vai-se afastando. Leva o chapéu de um camarada que se chama Serafim.
E assim ocorre o quinto nascimento de Miguel Mármol, aos vinte e seis anos de idade.
1932 – San Salvador – MIGUEL AOS VINTE E SETE
Dos que salvaram Miguel, não sobrou nenhum vivo. Os soldados crivaram de balas os camaradas que o recolheram numa vala, os que o passaram pelo rio numa cadeira, os que o esconderam numa gruta e os que conseguiram trazê-lo até esta casa, a casa de sua irmã, em San Salvador. Tiveram de abanar a irmã, quando viu o espectro de Miguel costurado a tiros e golpes de facão. Ela estava rezando novenas por seu descanso eterno.
O ofício fúnebre continua. Miguel se recompõe como pode, escondido atrás do altar erguido em sua memória, sem outro remédio além da água de broto de chichipince que a irmã lhe aplica, com santa paciência, sobre as feridas pustulentas. Miguel se estende do outro lado da cortina, ardente de febre; e assim passa o dia de seu aniversário escutando os louvores que lhe dedicam os desconsolados parentes e vizinhos, que choram por ele e fazem reza sem parar.
Uma noite, uma patrulha militar se detém na porta:
_Por quem rezam?
_Pela alma do meu falecido irmão.
Os soldados entram, chegam perto do altar, franzem o nariz.
A irmã de Miguel amassa o rosário. As velas tremem na frente da imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo. Miguel sente súbita vontade de tossir. Mas o soldados se persignam:
_Que em paz descanse – dizem, e continuam seu caminho.
E assim ocorre o sexto nascimento de Miguel Mármol, aos vinte e sete anos de idade.
1934 – San Salvador – MIGUEL AOS VINTE E NOVE
Sempre perseguido pela polícia salvadorenha, Miguel encontra refúgio na casa da amante do cônsul da Espanha.
Certa noite, desaba uma tempestade. Da janela, Miguel vê que o rio cresce e que lá longe, na curva, a correnteza está a ponto de atacar o rancho de barro e taquara onde vivem sua mulher e seus filhos. Desafiando a ventania e as patrulhas noturnas, Miguel abandona seu sólido esconderijo e sai disparado em busca dos seus.
Passam a noite abraçados, apoiados em frágeis paredes, escutando o rugir do vento e do rio. Na madrugada, quando finalmente o ar e a água se calam, o ranchinho está um pouco torto e molhado, mas em pé. Miguel se despede da família e regressa ao seu refúgio.
Mas não o encontra. Daquela casa de bem-plantados pilares, não sobrou nem um tijolo de lembrança. A fúria do rio socavou o barranco, arrancou os alicerces e mandou a casa aos diabos, junto com a amante do cônsul e sua mucama, que morreram afogadas.
E assim ocorre o sétimo nascimento de Miguel Mármol, aos vinte e nove anos de idade.
1936 – San Salvador – MIGUEL AOS TRINTA E UM
Depois do desmoronamento de seu esconderijo no barranco, Miguel tinha sido preso. Passou quase dois anos algemado numa cela solitária. Recém-saído do cárcere, perambula pelos caminhos, pária esfarrapado, sem nada. Não tem partido, porque seus camaradas do Partido Comunista suspeitam que o ditador Martínez deixou-o livre a troco de traição. Não tem trabalho, porque o ditador Martínez impede que o empreguem. Não tem mulher, que abandonou-o levando os filhos, nem tem casa, nem comida, nem sapatos, nem ao menos nome tem: está provado que Miguel Mármol não existe desde que foi executado em 1932.
Decide acabar de uma vez. Já basta de tristear a sorte negra. Com um facão abrirá as veias. E está erguendo o facão, quando pelo caminho aparece um menino no lombo de um burro. O menino o cumprimenta, agitando um enorme chapéu de palha, e pede o facão para abrir um coco. Depois oferece a metade do coco aberto, água de beber, polpa de comer, e Miguel bebe e come como se este menino desconhecido o tivesse convidado para uma esplêndida festa, e se levanta e caminhando abandona a morte.
E assim ocorre o oitavo nascimento de Miguel Mármol, aos trinta e um anos de idade.
1945 – Fronteira entre a Guatemala e El Salvador – MIGUEL AOS QUARENTA
Dorme em cavernas e cemitérios. Condenado ao soluço contínuo pela fome, anda disputando migalhas com os corvos e os pombos. A irmã, que o encontra de vez em quando, diz a ele:
_Deus te deu muitas habilidades, mas te impôs o castigo de ser comunista.
Desde que Miguel recuperou a confiança de seu partido, não deixou de correr e padecer. E agora o partido resolveu que o mais sacrificado de seus militantes vá de El Salvador para o exílio na Guatemala.
Miguel consegue passar a fronteira, depois de mil peripécias e perigos. Já é noite fechada. Estende-se para dormir, exausto, debaixo de uma árvore. Ao amanhecer, é acordado por uma enorme vaca amarela, que lambe seus pés. Miguel diz à vaca:
_Bom dia.
E a vaca se assusta, foge à toda e, mugindo, se mete no mato. Do mato emergem, em seguida, cinco touros vingadores. Miguel não pode escapar nem para trás nem para cima. Às suas costas há um abismo e a árvore é das de tronco liso. Em turbilhão avançam os touros, mas antes do ataque final param e, olhando fixo para ele, bufam, jorram fumaça e fogo, dão chifradas no ar e raspam o chão arrancando erva e pó.
Miguel sua frio e treme. Gago de pânico, balbucia explicações. Os touros olham para ele, homenzinho metade fome metade medo, e se olham entre si. Ele encomenda sua alma a Marx e a São Francisco de Assis. E finalmente os touros viram as costas e se afastam, cabisbaixos, a passo lento.
E assim acontece o nono nascimento de Miguel Mármol, aos quarenta anos de idade.
1954 – Mazatenango – MIGUEL AOS QUARENTA E NOVE
Ao canto das aves, antes da primeira luz, afiam os facões. E a galope chegam a Mazatenango, á procura de Miguel. Os verdugos vão fazendo cruzes na longo lista dos marcados para morrer, enquanto o exército de Castillo Armas se apodera da Guatemala. Miguel figura em quinto lugar entre os mais perigosos, condenado por ser comunista e estrangeiro arruaceiro. Desde que chegou fugido de El Salvador, não parou um só instante sua tarefa de agitar operários.
Põem os cachorros em cima dele. Querem levá-lo pendurado num cavalo e exibi-lo pelos caminhos com a garganta aberta por um golpe de facão. Mas Miguel é bicho muito vivido e sabido e se perde no matagal.
E assim ocorre o décimo nascimento de Miguel Mármol, aos quarenta e nove anos de idade.
1963 – San Salvador - MIGUEL AOS CINQÜENTA E OITO
Anda Miguel como de costume, pulando de galho em galho, cometendo sindicatos camponeses e outras diabruras, quando a polícia o agarra em algum povoado e o traz, amarrado pelos pés e pelas mãos, à cidade de San Salvador.
Aqui recebe longa sova. Oito dias apanha, dependurado; oito noites apanha, no chão. Muito rangem seus ossos e grita sua carne, mas ele não solta nem um pio enquanto exigem que revele segredos. Em compensação, quando o torturador xinga sua gente querida, o velho respondão se levanta de seus restos sangrantes, o velho galinho de briga ergue a crista e cacareja, Miguel ordena ao capitão que feche sua boca porca. E então o capitão afunda no seu pescoço a pistola e Miguel o desafia: é só apertar o gatilho. E ficam cara a cara os dois, ferozes, arfantes, como soprando brasas: o soldado com o dedo no gatilho, a pistola cravada no pescoço de Miguel e os olhos cravados em seus olhos, Miguel sem pestanejar, comprovando a passagem dos segundos e dos séculos e escutando o ressoar do coração que subiu-lhe à cabeça. E já se dá Miguel por morto de morte total, quando de repente uma sombra aparece no fulgor da fúria dos olhos do capitão, um cansaço ou sabe-se lá o quê o invade e toma seus olhos por assalto, e de repente o capitão pisca, surpreendido por estar onde está, e lentamente deixa cair a arma e o olhar.
E assim acontece o décimo primeiro nascimento de Miguel Mármol, aos cinqüenta e oito anos de idade.
1975 – San Salvador – MIGUEL AOS SETENTA
Cada dia da vida é o irrepetível acorde de uma música que debocha da morte. O perigoso Miguel passou dos limites e os donos de El Salvador decidem comprar um assassino para que a vida vá cantar noutro lugar.
O assassino tem um punhal escondido debaixo da camisa. Miguel está sentado, falando aos estudantes na universidade. Está dizendo a eles que os jovens têm que ocupar o lugar dos vovôs, e que é preciso que atuem, que se arrisquem, que façam coisas sem cacarejar como as galinhas cada vez que põem um ovo. O assassino abre caminho lentamente entre o público e vai indo até ficar nas costas de Miguel. Mas no instante em que ergue a lâmina, uma mulher dá um tremendo grito e Miguel se atira no chão e evita a punhalada.
E assim acontece o décimo segundo nascimento de Miguel Mármol, aos setenta anos de idade.
1984 – Havana - MIGUEL AOS SETENTA E NOVE
Ao longo do século, este homem passou pelo pior e muitas vezes morreu por bala ou feitiço. Agora, no exílio, continua acompanhando com brio a guerra de sua gente.
A luz do amanhecer o encontra sempre levantado, barbeado e conspirando. Ele bem poderia ficar dando voltas e mais voltas nas portas giratórias da memória; mas não sabe bancar o surdo quando o chamam as vozes dos tempos e caminhos que ainda não caminhou.
E assim, aos setenta e nove anos de idade, ocorre a cada dia um novo nascimento de Miguel Mármol, velho mestre no ofício do nascer incessante.
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Retirado de Memória do Fogo – vol. 3 – O Século do Vento, de Eduardo Galeano.
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