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1
Levantarei às sete horas da manhã e beberei um café adoçado com remela e sono. Olharei para o relógio na estante, soltarei um suspirozinho silencioso e quase sentirei vergonha de mim mesma por contar as (longas) horas que me faltarão para retornar à cama - mas logo expulsarei os pensamentos preguiçosos! Tomarei um bom banho, colocarei rapidamente a roupa que me apetecer, escovarei os dentes, olharei de relance um par de olhos cor-de-relva no espelho e então seguirei meu rumo.
Transporei a porta da frente do prédio da residência estudantil onde moro. Cumprimentarei com um sorriso o dia que se abre e os conhecidos no caminho, uns indo para a aula, outros para uma sina de trabalho igual a minha.
E assim, cercada de sono e sorrisos, cuidada por anjos e fadas, envolta em aromas de flor, sairei a trabalhar.
Nada possuirei de meu, nada terei a perder entre o passado e o amanhã. Tudo terei a ganhar. A coragem será o meu talismã. Cumprirei a primeira parte da jornada conversando muitas vezes com pessoas desconhecidas. Em meio às funções que me caberão, beberei suas histórias como se um bom e velho vinho fossem. Farei amizades, rirei, comoverei-me, e ao fim do dia os desconhecidos não serão desconhecidos.
Almoçarei no RU, o velho restaurante universitário, passarei a demorada tarde envolvida com tarefas comezinhas. Sonharei, agirei, pensarei, criarei. À tardinha, cansada e mais uma vez com sono, seguirei para a aula, ansiosa por um saber que raramente ali encontrarei.
À noite, de volta ao meu quartinho, recolherei-me ao leito e, no aconchego do travesseiro, procurarei reencontrar as forças perdidas do dia. Pensarei comigo: Tudo de novo amanhã?... E entre sonhos e fantasias mais uma vez dormirei...
Nas horas de folga, serei de alguns dos que me quiserem. Meu corpo será para estes um jardim de delícias, e também eu encontrarei aí o néctar, o descanso e o encanto que procuro. Com asas de devaneios, transformarei o mundo em meu redor, e encherei-o de cores. Brindarei, brincarei, celebrarei, e até chorarei algumas vezes. Costurarei em mim o tempo, o amor, as decepções e os mais sublimes projetos de vida. E com a experiência que ganhar, aprenderei a escolher bem a quem entregar meus lábios de mel e maçã.
2
Levantarei às cinco horas da manhã, para sair às seis e à meia-noite poder estar em meu destino. Esse destino que será apenas uma pequeníssima parte do destino maior e mais distante que eu deverei alcançar.
O Brasil será menor do que a palma da minha mão. E nenhum acadêmico de merda saberá melhor do que eu os detalhes sórdidos e sublimes dessa magnífica e terrível geografia.
De paisagem em paisagem, de perigo em perigo, de derrota em derrota, de marcha em marcha, eu me farei. E realizarei assim a longa travessia. Não estarei, contudo, sozinho. Andará comigo o furioso dragão flamejante sobre o lombo do qual eu montarei, e cujas rédeas enfeitiçadas somente a mim será dado dominar.
Antes de sair de casa, tomarei devagar um chimarrão, meditativo e silencioso como um monge. Ou como um guerreiro que se vai para uma batalha que poderá ser a última, que poderá ser a da morte. Sentirei, no mate, minuciosamente, detalhe a detalhe, um gosto já bem amargo de saudade, e de tudo aquilo que poderei deixar, quiçá para sempre, para trás.
Mas sentirei também que, em todos os dias de uma vida, é preciso aprender a morrer. E com esse sentimento me consolarei.
Dois pequenos projetos de gente, fedendo a mijo, estarão dormindo. Uma criaturinha miúda e delicada, morena, olhos morenos, se despedirá de mim, com um sonolento beijo, à porta. Sairei com um nó apertado na garganta – praguejando por dentro e morrendo de raiva da vida madrasta que levo -, mas logo procurarei não pensar mais nisso.
Montarei o dragão monumental, acariciarei sua gigantesca cabeça metálica. Darei uns tapinhas de leve e assim o acordarei. Ele se espreguiçará, bocejará, bufará, roncará, me reconhecerá e soltará fogo pelas narinas.
Com as pernas bem firmes em suas costelas, sentirei o inconfundível estremecimento de desejo, e saberei que está impaciente por partir. Pisarei fundo na embreagem, virarei a chave, engatarei a primeira marcha. O dragão abrirá e começará a bater as imensas asas.
O sol não terá despontado ainda quando ambos estivermos já longe no horizonte.
3
Levantarei sempre antes da patroa. Seis horas da manhã; às vezes, cinco. Prepararei o café que ela, o esposo, os filhos, tomarão rápidos antes de sair. Nem sempre se lembrarão de se despedir de mim. Mas tudo estará bem, não me importarei. Sentirei-me da família, embora não seja, e um quê de sentimento maternal, que guardo comigo no peito, me impedirá de sentir mágoa de picuinhas tão mínimas.
Lavarei então a louça, arrumarei as camas, porei as roupas para lavar. E antes que eu perceba já será a hora de preparar o almoço.
Antes, um pequeno perdido e temporão acordará aos prantos. A mim caberá limpar-lhe a bunda e dar-lhe a primeira refeição do dia. Recolherei-o em meus braços, minúsculo e indefeso. Me olhará nos olhos com toda a curiosidade de sua tenra filosofia, e com a boca saturada por uma mamadeira maior que o seu tamanho. Do alto dos meus catorze anos de idade, emocionada e sorrindo, desejarei secretamente ser a mãe dessa pequena maquininha de carimbar fraldas.
Não poderei me distrair muito nesses doces pensamentos. Logo chegará a patroa, inflexível e pontual. Correrei servir o almoço, cuidar do bebê, limpar tudo, ajeitar tudo, ver se tudo está nos conformes.
Rápido comerão, comentarão, verão o noticiário da TV, sofrerão e rirão sincronizados todas as padronizadas novidades que dali surgirão. E voltarão correndo para o trabalho, em seus carros. E sem se despedir, no mais das vezes.
Passarei o resto do dia entretida com o resto dos afazeres. À tardinha, prepararei o jantar, farei um refeição frugal e depois olharei descansada a minha amada novelinha, que me fará desejar ser como aquelas mulheres tão lindas, tão esbeltas, tão finas e sofisticadas, e amadas por todos os galãs.
Sonharei todas as noites com o moço bonito do caminhão que duas vezes por semana entrega as encomendas no bazar em frente.
4
Não levantarei nem às sete, nem às oito, nem às nove horas da manhã. Levantarei na hora amarga do rebuliço no estômago. Isto é o mesmo que dizer, para mim, toda hora. Não me importarei, portanto, com relógios.
(Hein? O que estou dizendo? Relógios? O único valor que os relógios terão para mim será referente ao preço que eu puder conseguir pela venda de algum deles, se por acaso em meio ao lixo encontrar algum.)
Alheio ao tempo, então, seguirei. Meu dia de trabalho será enquanto estiver acordado. Transitarei nas sombras, como um bicho. Revirarei dejetos, como um bicho. Viverei da podridão, como um bicho. Quererei e não quererei ser um bicho. Quererei, pois a outra opção, o crime, não me atrairá. Não quererei, porque, apesar das dúvidas de alguns, saberei que sou humano. E no meio dessa terrível contradição terei o ser.
Um filho meu de oito anos seguirá comigo pelas ruas, à noite. E também o de sete. E também o de seis. E também o de cinco. E também a Amada... Juntos trabalharemos. Seremos os operários das ruínas. Papel, alumínio, madeira, metal: nosso aguçado faro estará atento para tudo isso. Não teremos voz, mas cantaremos. Não teremos rosto, mas sorriremos. Não teremos, no mais das vezes, a própria identidade – e quem se importará? -, mas nos abraçaremos e nos amaremos. Sim, certamente. Nos amaremos muitíssimo. Como gente que somos. Como gente que somos...
Nunca sairemos nos jornais, mas de certa forma viveremos deles. Nosso reino será o Império da sucata, do supérfluo e do descartável.
Um curioso Sancho Pança latidor, rabugento e sempre faminto, seguirá ao lado de nossa carrocinha. E às cinco da madrugada, depois de grande parte da cidade percorrida, voltaremos para casa mais sujos do que pau de galinheiro. Suados, cansados, alegres, cantarolando e desdenhando da vida fodida que levamos.
Todo mundo estará dormindo. E ninguém, ninguém mesmo - a não ser os vaga-lumes, as fadas e uns vadios gatos noturnos -, verá o rastro de luz que deixaremos pelo caminho.
5
Não terei hora para acordar nem para dormir. Sim, serei desajustado. Mas é somente no meio desse desajuste permanente em que vivo que poderei enxergar as coisas loucas que eu enxergarei.
Algumas das muitas namoradas que terei implicarão com esse fato. Mas eu, é claro, não me importarei. Elas passarão... Eu? Ah, eu seguirei adiante...
Serei boêmio, mas na verdade serei mais que um boêmio. Na verdade, mas bem na verdade mesmo, os boêmios quererão ser como eu. (Estarei “um grau acima” deles, se é que se pode dizer que a boemia tem escala hierárquica...). A cada copo entornado, ficarei mais jovem, e mais jovem, e muitíssimo mais jovem.
Será possível me ver, em incontáveis noites, transitando pelos botecos, pelas espeluncas mais esdrúxulas, cumprimentando e respeitando – mas sem maiores deferências – os sujeitos mais variados e os mais variados drinks, e puxando, vez que outra, uma caneta, uma folha de papel, um caderninho, até mesmo um guardanapo, e dedilhando meu magnífico ocus pocus estarrecedor, aquele que faz as pedras terem filhos e as frias paredes dos prédios cantarolarem árias de Giuseppe Verdi.
Desenharei um colibri, com os dedos, no ar, e o colibri sairá voando rumo às flores. Apontarei para uma mocinha bonita que me olha do outro lado do balcão, e da ponta dos meu dedo sairão borboletas em cores vivas-cintilantes. Piscarei para uma criança noturna que me pedirá dinheiro na esquina, e dos cantos dos meus olhos pobres sairá um vento azul que lhe afagará a alminha boa.
Não andarei exatamente pelas ruas; deslizarei por elas, e a muitos parecerá que eu flutuo. Terei todos os defeitos do mundo, e não repudiarei nenhum. Terei vícios, e desconfiarei de quem não os tiver. Beberei, fumarei, comerei até a barriga ficar estufada. Fornicarei sem camisinha e não me sentirei culpado, e o excesso será a minha casa.
Ganharei alguns concursos por aí, e me acharei então um gênio. Sonharei escrever um livro, ganhar até o Jabuti, mas terei as minhas grandes satisfações – verdadeiras e impagáveis satisfações – nas palavras bem trabalhadas, finas frases como esculturas, endereçadas para o amigo, para o amor, para o flerte, para o dono do bar da esquina e para a rapariga que vende pão às sete da manhã, aquela que eu vou encontrar nos minutos mágicos e fora do tempo que antecedem a ressaca. E me sentirei completamente feliz assim.
Quando os primeiros raios de sol se alvoroçarem e eu observar os obsessivos e fiéis cumpridores de normas e horários da manhã, desdenharei de todos e comporei, enfim, com o restinho das minhas energias, uma sátira memorável em sua homenagem.
Ah, sim, sem dúvida, eu serei poeta. E saberei disso.
6
Ninguém me verá dormindo, de dia, sob a sombra de uma árvore, na praça.
No meio da multidão - de prédios e de gentes - que segue para o comércio afoita, serei como um grande camaleão cheio de pelos velhos desgrenhados. Serei, de fato, a bela adormecida da granítica paisagem urbana. À noite, no entanto, os meus mais chegados me terão por perto.
Entrarei, sorrateiramente, nos ambientes mais soturnos. A boate do DCE, os banheiros dos botecos das esquinas, as quebradas duvidosas de dar medo aos mais valentes. Nada disso será tabu para mim. Não terei família, não terei vizinhas fofoqueiras, e meus filhos todos estarão pelo mundo. Cuidarei apenas de atravessar as ruas, e olhe lá.
Serei descuidada comigo. Tomarei banho quando chover e gostarei muito de ser errante. Gostarei, aliás, de errar em todos os sentidos possíveis da palavra. Me preocuparei mais com meus amigos. Não os da infância que nunca tive, e sim aqueles que eu fizer na noite, noite após noite, boêmios, poetas, patetas, palhaços e fanfarrões de todo tipo.
Serei um elfo vagabundo? Talvez. Ficarei famosa, e até na internet falarão de mim. Andarei junto com os bêbados, acompanharei-os até suas casas. Uns, metidos a místicos, acharão que sou uma espécie de anjo da guarda, ou quem sabe uma boa alminha penada que, transitando em quatro patas pelo mundo da matéria, os protege pelas ruas. O certo é que, quando vir se aproximar algum bandido ou meliante, latirei, latirei muito, latirei alto, com todas as forças do mundo, e me pegarei com eles em dentadas, para alívio e bem-estar dos meus notívagos camaradas.
E depois desse heroísmo peleador, estes, que devolvi sãos e salvos para o lar, me afagarão na cabeça ou nas paletas, e dizendo uma palavra carinhosa, ou nenhuma, se despedirão de mim.
Morrerei, num dia qualquer, num cruzamento, atropelada por um motorista semi-bêbado.
7
Não terei exatamente uma hora para acordar, mas muito provavelmente será depois do meio-dia. E dia após dia isso se repetirá, sem dúvida. Serei mais um ser noturno, amigo do luar e das estrelas, dos morcegos e das borboletinhas que giram em torno das luzes dos postes. Amigo do tilintar dos copos, dos banquetes e das celebrações.
Serei até famoso no meu ambiente próprio da cidade. Muito famoso. Andar pela rua, à noite, será quase uma solenidade. Cumprimentarei e acenarei sorrindo para todos os que me cumprimentarem, acenando, sorrindo. Bar do Garça, Bar do Velho Manco, Bar do Orlando, Boate do DCE, todos os botecos, pseudo-botecos, proto-botecos, anti-botecos e pós-botecos de Santa Maria serão como que minha sala-de-estar. Ficarei amigo de todos os bodegueiros, bêbados, viciados, tipos esquisitos e cantores de esquina que toparem pelo caminho.
Não farei distinção, não terei preconceito quanto a nada. Cadeira de palha, mesa de madeira, copo de plástico, balcão com potes de ovos de codorna, cachaça com bergamota, tudo aquilo que a pequena-burguesia – e seus imitadores - da minha cidade repele e sente ojeriza, tudo isso será a minha matéria.
Inventarei novos verbos, novos modos de ser, novas gírias e novos conceitos. Chinelagem, por exemplo, será um deles. Chinelagem: s. f. Ato ou efeito de comer, beber e foder sem ter dinheiro; Chinelo: adj. Aquele que pratica a chinelagem. Viverei, então, na chinelagem.
Falarei com todas as pessoas, lerei coisinhas interessantes na internet, tudo para me manter atualizado. E serei democrático, ainda que de um tipo especial de democracia: a democracia macha. Aquela que manda compartilhar com os meus semelhantes todas as aquisições feitas a partir das venturosas incursões no mundo do belo sexo. (Dito de outra forma: comerei todas as mulheres que me aparecerem pela frente e contarei para os amigos.) Este, aliás, será meu objetivo precípuo, meu projeto de vida, meu sentido da existência, meu dogma, minha religião e meu partido político.
Qualquer bueiro, canto escuro, garagem ou terreno baldio, parecerá a mim convidativo para o abate. Terei apelidos engraçados por causa disso e rirei de todos, desbragadamente. Minha fama será a de um sujeito de mil picas e eu adorarei.
Farei contas e terei bem presente o número exato das que comi. E se me perguntarem, direi que a coisa mais inteligente que já saiu da boca de uma mulher foi o pau do Einstein.
Mas serei, no fundo, de bom coração. Bonachão, bem humorado, engraçado e exímio narrador de todas as minhas historietas amorosas.
......
(Continua...)
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