quinta-feira, 27 de maio de 2010

Sobre os sintomas das oportunidades perdidas, no amor e nas revoluções

A verdadeira escolha com relação ao trauma histórico não está entre lembrar-se ou esquecer-se dele: os traumas que não estamos dispostos a ou não somos capazes de relembrar assombram-nos com mais força. É necessário então aceitar o paradoxo de que, para realmente esquecer um acontecimento, precisamos primeiramente criar a força para lembrá-lo. Para responder a este paradoxo, devemos ter em mente que o contrário de existência não é inexistência, mas insistência: o que não existe continua a insistir, lutando para passar a existir (…). Quando perco uma oportunidade ética crucial e deixo de realizar a ação que “mudaria tudo”, a própria inexistência do que eu deveria ter feito há de me perseguir para sempre: apesar de não existir o que eu não fiz, seu espectro continua a insistir. Numa leitura notável das “Teses sobre Filosofia da História”, de Walter Benjamin, Eric Santner desenvolve a noção benjaminiana de que uma intervenção revolucionária presente repete e redime as tentativas fracassadas do passado. Os “sintomas” - traços passados que são retroativamente redimidos pelo “milagre” da intervenção revolucionária - “não são atos esquecidos, mas, pelo contrário, as omissões de ação que ficaram esquecidas, a incapacidade de suspender a força da ligação social que inibe os atos de solidariedade com os 'outros' da sociedade”:

“Os sintomas registram não somente as tentativas fracassadas do passado, mas, mais modestamente, as ocasiões no passado em que se deixou de reagir ao chamado à ação ou à empatia pelos outros cujo sofrimento de alguma forma pertence à forma de vida de que se é parte. Ocupam o lugar de alguma coisa que está ,que insiste na nossa vida, apesar de nunca ter chegado à completa consistência ontológica. Assim, os sintomas são, em certo sentido, os arquivos virtuais dos vazios – ou, talvez melhor, defesas contra os vazios – que persistem na experiência histórica.”

Santner especifica a maneira como esses sintomas tomam forma de disrupções da vida social “normal”, como participações nos rituais obscenos da ideologia dominante. Não teria sido a infame Kristallnacht de 1938 – a explosão de violência meio espontânea, meio organizada contra os lares, sinagogas, negócios e pessoas de judeus – um perfeito “carnaval” bakhtiniano? A Kristallnacht deve ser entendida como um “sintoma”: a fúria de tal explosão de violência a faz um sintoma – o mecanismo de defesa que cobre o vazio da incapacidade de intervir eficazmente na crise social. Noutras palavras, a própria fúria dos pogroms anti-semitas é uma prova a contrario da possibilidade da autêntica revolução proletária: sua energia excessiva só pode ser entendida como uma reação ao reconhecimento (“inconsciente”) da oportunidade revolucionária perdida. E não seria a causa última da Ostalgia (nostalgia pelo passado comunista) entre muitos intelectuais (e até mesmo entre pessoas comuns) da falecida República Democrática da Alemanha também o desejo, não tanto do passado comunista, do que realmente aconteceu sob o comunismo, mas do que poderia ter acontecido, da oportunidade perdida de uma outra Alemanha? Conseqüentemente, não seriam também as explosões pós-comunistas de violência neonazista uma prova negativa da presença dessas oportunidades de emancipação, uma explosão sintomática de fúria que substitui a consciência de oportunidades perdidas? Não devemos ter medo de traçar um paralelo com a vida psíquica individual; assim como a consciência da perda de uma oportunidade “privada” (por exemplo, a oportunidade de se envolver numa relação amorosa enriquecedora) geralmente deixa traços sob a forma de angústias, dores de cabeça e acessos de raiva “irracionais”, o vazio da oportunidade revolucionária perdida pode acabar explodindo em acessos “irracionais” de fúria destrutiva...

(Slavoj Zizek)

ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do Real! - São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, p. 37-9.

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