Muitas vezes nos perguntamos qual a tarefa a ser desempenhada pelos intelectuais num projeto social e político revolucionário. O que é que se tem em mente, afinal, quando pensamos em intelectual dentro de um contexto histórico determinado? É preciso ter bem clara a definição desse conceito, pois ele pode lançar luzes sobre a estratégia a ser adotada pelos sujeitos comprometidos com uma práxis orientada pelo objetivo da emancipação humana. A esse respeito, penso que Gramsci tem uma colaboração valiosa a dar.
Segundo o filósofo italiano, intelectual não é somente o erudito, aquele que sabe filosofia, literatura, latim, grego ou coisas do gênero. Intelectual é fundamentalmente o dirigente da sociedade. É o sujeito que expressa a vontade coletiva do grupo social ao qual está organicamente vinculado e exerce sobre este uma espécie de liderança. Nesse sentido, um cabo do exército, por exemplo, mesmo que eventualmente seja analfabeto, pode ser considerado, segundo Gramsci, um intelectual na medida em que dirige seus soldados na luta, e também os educa. De acordo com essa concepção, jornalistas, líderes sindicais, líderes religiosos, professores, líderes sem-terras, etc. podem ser intelectuais. Graças aos intelectuais, diz o autor dos Cadernos do Cárcere, mantém-se coeso o bloco histórico – o conjunto de forças sociais e políticas - que aspira à transformação revolucionária da sociedade.
Quando realiza essas teorizações, Gramsci tem sempre diante dos olhos a questão da hegemonia. Em sua teoria ampliada do Estado, o pensador marxista faz uma diferenciação importante entre sociedade política e sociedade civil. A sociedade política diz respeito aos espaços concernentes ao Estado em sentido estrito, é o “Estado-coerção” por assim dizer, com suas leis e instâncias que fazem valer as leis. A sociedade civil, por sua vez, refere-se ao conjunto de “aparelhos privados de hegemonia” (grandes sindicatos, partidos políticos, parlamento eleito por sufrágio, jornais, igreja, escolas, etc.), organismos de participação política aos quais as pessoas aderem voluntariamente e que não se caracterizam pelo uso da opressão. A sociedade civil é formada, desse modo, pelo conjunto das instituições e instrumentos que possibilitam a organização material da cultura (revistas, jornais, editoras, meios de comunicação de massa, etc.) e a elaboração e difusão das ideologias. Nesse contexto, a hegemonia pode ser entendida como o consenso, a direção intelectual e moral que se realiza a partir dessas mediações. A hegemonia possui assim uma base material própria e um espaço específico de manifestação.
Diante disso, o Estado, no sentido ampliado que lhe atribui Gramsci, é, justamente, a síntese entre a sociedade civil e a sociedade política – portanto, entre hegemonia e coerção. O Estado é, nas sociedades de capitalismo avançado, grosso modo, a articulação entre as instâncias que garantem ditadura e hegemonia, coerção e consenso. Quando um grupo social detém o domínio (a coerção) mais a “direção intelectual e moral” (a hegemonia) ele adquire a supremacia dentro de uma formação econômico-social determinada.
Percebe-se então o porquê de a conquista da hegemonia constituir-se num elemento central dentro da estratégia política desenvolvida por Gramsci. Percebe-se também a importância atribuída pelo filósofo às tarefas dos intelectuais. São eles que “organizam a cultura” e elaboram o consenso (hegemonia) sem o qual uma classe social não poderia se tornar dirigente. Ela seria apenas dominante e opressiva, e faltar-lhe-ia o elemento necessário – a liderança intelectual e moral - para exercer o poder.
Conquistar a hegemonia é então fundamental. A classe que exerce domínio numa situação histórica determinada pode perdê-la se os seus valores, concepções de mundo, representações e ideologias sofrerem um profundo abalo. Quando isso ocorre, diz Gramsci, configura-se uma crise de hegemonia, e surge a possibilidade objetiva para que uma contra-hegemonia se afirme em seu lugar. As crises de hegemonia são facilitadas cada vez que emerge no cenário histórico uma crise orgânica, isto é, uma crise que abrange desde o domínio econômico, até o político e o cultural de uma dada sociedade. A crise orgânica pode se resolver com o restabelecimento da hegemonia da classe dominante, ou com as classes dominadas construindo alianças, assumindo a hegemonia e se tornando enfim classes dirigentes.
Com base nisso, uma reflexão que se impõe a nós, intelectuais engajados no projeto de emancipação das classes trabalhadoras, é, creio, a seguinte: A atual conjuntura de crise profunda do sistema do capital, que alguns autores (István Mészáros, Robert Kurz, Immanuel Wallerstein, François Chesnais, Samir Amin) definem como sendo de crise estrutural, não seria um período propício e fecundo para a utilização consciente de meios capazes de organizar e fazer vir à tona uma cultura crítica e questionadora das ideologias vigentes, com base na qual as classes dominadas poderiam desestabilizar a hegemonia das classes dominantes, impor uma contra-hegemonia, orientar suas ações e aspirar assim a se tornar dirigentes?
domingo, 27 de setembro de 2009
domingo, 20 de setembro de 2009
O Curioso Caso do Amor e do Tempo
Acabo de assistir o filme O Curioso Caso de Benjamin Button, a história de um menino que nasce num corpo velho que vai, pouco a pouco, remoçando. Já na infância, Benjamin, garoto com aparência de vovô, conhece Daisy, menina por quem se apaixona, mas que só realizará seus desejos de amor muito mais tarde, quando o tempo se encarregar de dar a Button a beleza e o vigor da mocidade.
Quando isso acontece, os dois vivem um dilema. Ela, maravilhosamente bela e sensual, começa a perceber na pele os traços do destino incontornável da velhice que se aproxima. Ele, cada vez mais jovem, passa a sofrer a vertigem do abismo que se abre entre o seu desejo de permanência e a realidade desejada que se distancia.
Carcome-os o tempo, inimigo oculto, que a tudo corrói com sua implacável ânsia de aniquilamento. A ambos resta apenas o fogo mesmo da sua paixão, do seu afeto, fonte de encanto que colore as horas, dulcifica os dias, e que na brevidade da duração de um contato amoroso coloca em suspenso o movimento dos ponteiros do relógio, redimindo os amantes plenamente.
Então esse amor, fruto do encontro entre duas histórias pessoais cujo sentido inverso as dirige às angústias da separação, subverte astuciosamente sua sina e encontra enfim os meios de perpetuar-se em vida: Daisy dá à luz uma menina, Caroline.
Eis aí uma bela imagem, penso. Por que amamos? Para vencermos as contradições do tempo.
Quando isso acontece, os dois vivem um dilema. Ela, maravilhosamente bela e sensual, começa a perceber na pele os traços do destino incontornável da velhice que se aproxima. Ele, cada vez mais jovem, passa a sofrer a vertigem do abismo que se abre entre o seu desejo de permanência e a realidade desejada que se distancia.
Carcome-os o tempo, inimigo oculto, que a tudo corrói com sua implacável ânsia de aniquilamento. A ambos resta apenas o fogo mesmo da sua paixão, do seu afeto, fonte de encanto que colore as horas, dulcifica os dias, e que na brevidade da duração de um contato amoroso coloca em suspenso o movimento dos ponteiros do relógio, redimindo os amantes plenamente.
Então esse amor, fruto do encontro entre duas histórias pessoais cujo sentido inverso as dirige às angústias da separação, subverte astuciosamente sua sina e encontra enfim os meios de perpetuar-se em vida: Daisy dá à luz uma menina, Caroline.
Eis aí uma bela imagem, penso. Por que amamos? Para vencermos as contradições do tempo.
quarta-feira, 16 de setembro de 2009
A sociedade da destruição e os operários das ruínas
Dia após dia, vejo-os descer pela rua de minha casa. Umas vezes, em bandos brincalhões; Noutras, em mini-comboios; Mas na maioria das ocasiões enxergo-os solitários, calados, sérios, suados e taciturnos. E parece que estão em número cada vez maior. Roupa velha, surrada, em desalinho. Cabelo em desalinho. A marca da dureza do ofício gravada na fronte, a marca também do esquecimento. A firmeza no olhar, e também o cansaço. O pão de cada dia ganho a partir dos restos, das sobras, do excesso e do desperdício daqueles pouquíssimos sujeitos que podem se dar ao luxo de desperdiçar. Uma caixa de papelão aqui, pedaços de uma cadeira velha quebrada ali, uma embalagem plástica acolá, tudo se junta, tudo se aproveita. Tudo se recolhe quase sempre numa carrocinha artesanal, feita em casa mesmo, no improviso, composta a partir de uma síntese irrepetível de materiais arrecadados pelos largos ou estreitos caminhos desta vida.
Desta vida? Que o frequentemente obnubilado significado desta palavrinha difícil não nos engane: muito mais apropriado seria afirmar desta determinada conjuntura histórica e social. Em verdade, o século XXI, com suas crises constantes, trouxe para Santa Maria a realização de algumas das mais fortes tendências existentes no mundo contemporâneo do trabalho: a precarização, a pauperização, o baixo nível de qualificação, a fraca capacidade de negociação, os trabalhos não-estáveis e a informalidade. E os catadores de papel são um exemplo concreto desta terrível e humilhante realidade.
Dentre todas as categorias de trabalhadores verificadas na contemporaneidade, são talvez os que sentem mais diretamente a barbárie, a crueldade e a mesquinhez de um tempo ganancioso, sem escrúpulos e sem coração. Sentenciados pela sociedade a produzir e a reproduzir sua vida em contato direto com os detritos, a imensa maioria deles não se vê, na prática, coberta por tipo algum de direito e não possui um mínimo de segurança. Aliás, direitos na prática seriam mesmo algo inusitado. Pois que direitos poderiam esperar pessoas que quase não são percebidas em sua opaca existência, antíteses dos padrões culturais, que vivem sem voz e nas sombras, que pululam por aí, do centro à periferia, recolhendo nas lixeiras seus precários meios de vida?
A propósito disso, seria interessante questionar se esses meios podem ser tomados efetivamente como proporcionadores de vida? Sim, a vida, fenômeno de conceituação tão incômoda e cuja definição apressada não raro nos turva a vista... Confesso que há momentos em que duvido e chego a crer que a condição desses trabalhadores é muito mais semelhante e próxima da morte do que de qualquer outra coisa.
Bem sei que há sábios e doutores acadêmicos capazes da mais admirável engenhosidade teórica e filosófica a ponto de afirmar que a sujeira, o lixo e a podridão são condições inultrapassáveis da existência social humana sobre a terra. Todavia, acredito que se possa desconfiar dessas proposições tão neutras a fim de se refletir mais detalhadamente sobre o assunto e saber se excrementos, substâncias fétidas, odores nauseabundos e todo tipo de dejetos pútridos podem ser realmente considerados elementos vitais a uma criatura a quem se quer chamar de humana.
Desta vida? Que o frequentemente obnubilado significado desta palavrinha difícil não nos engane: muito mais apropriado seria afirmar desta determinada conjuntura histórica e social. Em verdade, o século XXI, com suas crises constantes, trouxe para Santa Maria a realização de algumas das mais fortes tendências existentes no mundo contemporâneo do trabalho: a precarização, a pauperização, o baixo nível de qualificação, a fraca capacidade de negociação, os trabalhos não-estáveis e a informalidade. E os catadores de papel são um exemplo concreto desta terrível e humilhante realidade.
Dentre todas as categorias de trabalhadores verificadas na contemporaneidade, são talvez os que sentem mais diretamente a barbárie, a crueldade e a mesquinhez de um tempo ganancioso, sem escrúpulos e sem coração. Sentenciados pela sociedade a produzir e a reproduzir sua vida em contato direto com os detritos, a imensa maioria deles não se vê, na prática, coberta por tipo algum de direito e não possui um mínimo de segurança. Aliás, direitos na prática seriam mesmo algo inusitado. Pois que direitos poderiam esperar pessoas que quase não são percebidas em sua opaca existência, antíteses dos padrões culturais, que vivem sem voz e nas sombras, que pululam por aí, do centro à periferia, recolhendo nas lixeiras seus precários meios de vida?
A propósito disso, seria interessante questionar se esses meios podem ser tomados efetivamente como proporcionadores de vida? Sim, a vida, fenômeno de conceituação tão incômoda e cuja definição apressada não raro nos turva a vista... Confesso que há momentos em que duvido e chego a crer que a condição desses trabalhadores é muito mais semelhante e próxima da morte do que de qualquer outra coisa.
Bem sei que há sábios e doutores acadêmicos capazes da mais admirável engenhosidade teórica e filosófica a ponto de afirmar que a sujeira, o lixo e a podridão são condições inultrapassáveis da existência social humana sobre a terra. Todavia, acredito que se possa desconfiar dessas proposições tão neutras a fim de se refletir mais detalhadamente sobre o assunto e saber se excrementos, substâncias fétidas, odores nauseabundos e todo tipo de dejetos pútridos podem ser realmente considerados elementos vitais a uma criatura a quem se quer chamar de humana.
segunda-feira, 14 de setembro de 2009
A crônica socialmente engajada de Eduardo Galeano
Um dos grandes mestres contemporâneos da escrita da história a contrapelo é, sem dúvida, o uruguaio Eduardo Galeano. Isto fica patente a qualquer um que se deixe absorver pela leitura da sua monumental As Veias Abertas da América Latina (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990), relato dramático dos cinco séculos da barbárie “civilizatória” levada a cabo pelos europeus em nosso continente. Este é, como se sabe, seu livro mais famoso e divulgado. Mas vale a pena mencionar algumas das muitas outras pérolas literárias - igualmente penetrantes em sua força crítica e capacidade de desvelamento da realidade que se oculta por trás dos relatos oficiais da história - que possui o célebre escritor. Penso aqui, por exemplo, no magnífico O Teatro do Bem e do Mal (Porto Alegre: L&PM, 2007. 2ª ed.): pequeno no tamanho – apenas 128 páginas -, mas grande na realização e significado para os que almejam um mundo mais emancipado e digno.
O tema é o mundo contemporâneo com sua ampla variedade de contradições. O ponto de vista assumido é o dos oprimidos da história: os párias, os excluídos, os vencidos de todo tipo, aqueles que de qualquer modo foram considerados o oposto do ideal a ser seguido pelas sociedades ao longo dos tempos (“Não haverá o que aprender com os perdedores, como em tantas outras coisas?” - pergunta-se Galeano, num dado momento do livro, deixando transparecer o posicionamento que adota). O intento perseguido é a critica das determinações históricas que permitem que pequenos grupos sociais, econômicos, políticos, étnicos e de gênero dominem e submetam a seus interesses - servindo-se para isso de incontáveis meios - a imensa maioria da humanidade.
As técnicas de escrita utilizadas pelo autor são variadas e dominadas por ele com maestria. Um estudo aprofundado da forma de narrativa desenvolvida por Galeano produziria certamente resultados interessantes e valiosos para aqueles que querem aprender a arte de usar as palavras como armas na batalha cultural em favor da modificação radical do sistema social atualmente vigente. Mencionarei brevemente apenas algumas das que mais me chamaram a atenção durante a leitura de O Teatro do Bem e do Mal.
Penso não estar muito equivocado se disser que Galeano se serve, como um dos seus principais métodos de exposição de idéias, aquilo que Walter Benjamin chamou de imagem dialética, isto é, “capturar” um evento passado, articulando-a com o presente, e fazendo com que ambos, passado e presente, se iluminem e revelem as “conexões ocultas” singulares entre ambos, e que não são perceptíveis a partir de uma perspectiva usual (linear) da história. Por exemplo, logo no primeiro capítulo, intitulado, como o livro, de O Teatro do Bem e do Mal, o autor, escrevendo no período imediatamente após o ataque terrorista ao World Trade Center “revira” do avesso o presente histórico em que se situa (no qual os EUA e o terrorista Osama Bin Laden se posicionam como inimigos) de modo a encontrar nesse presente uma certa marca inusitada do passado, quando estes dois antagonistas eram de fato... aliados. Diz Galeano:
“O flagelo do mundo, agora, chama-se Osama Bin Laden. A CIA lhe ensinara tudo o que sabe em matéria de terrorismo: Bin Laden, amado e armado pelo governo dos Estados Unidos, era um dos principais 'guerreiros da liberdade' contra o comunismo no Afeganistão. Bush Pai ocupava a vice-presidência quando o presidente Reagan disse que estes heróis eram 'o equivalente moral dos Pais Fundadores da América'. Hollywood estava de acordo com a Casa Branca. Na época filmou-se Rambo 3: os afegãos muçulmanos eram os bons. Treze anos depois, nos tempos de Bush Filho, são maus, malíssimos.”
Galeano faz assim um “corte”, uma “cesura” na história, mostrando a interconexão oculta entre dois eventos do passado e do presente. No presente, EUA e Bin Laden se apresentam como inimigos viscerais. No entanto, na década de 1970, quando o comunismo ameaçava se tornar uma ideologia influente entres os pobres países islâmicos, os EUA estimularam naqueles povos todo tipo de visão de mundo ultra-conservadora, dentre elas, a talibã. Quando os soviéticos invadiram o Afeganistão em 1979, foram os EUA que armaram os guerreiros mujahedin a fim de que estes combatessem os russos. Naquele tempo, portanto, eram amigos. O ultra-conservadorismo islâmico foi alimentado cultural e militarmente pelos EUA no Oriente Médio, mas acabou depois de uns anos se voltando contra eles.
Em última instância, os norte-americanos combatem hoje uma de suas próprias criaturas. E esse combate não é de forma alguma indesejado pelos governantes do país de Mickey Mouse, pois, como Galeano afirma logo em seguida num capítulo intitulado Satanases, “quando as guerras vão bem, a economia vai melhor”. Aí se revela a idéia de como a guerra é a política por outros meios, de como a guerra alimenta a economia em crise, e de como, finalmente, a política atende aos interesses econômicos dos mais fortes. Tornam-se claro aos olhos do leitor os interesses econômicos e políticos particulares por trás das práticas aparentemente “neutras” e movidas pela causa da democracia e da liberdade alardeadas pelo discurso oficial norte-americano. Ora, a conclusão a que se chega é a de que uma guerra, tal como a que foi perpetrada contra o Afeganistão em 2001, não é algo ruim em si para os EUA, e muito menos um acidente na história.
Galeano coloca, então, passado e presente lado a lado, mas de uma forma especial. Compõe uma imagem onde fluxo dos acontecimentos é subitamente imobilizado. Quebram-se as supostas linearidade e “naturalidade” da história. Os contextos dos anos de 1979 e 2001 são justapostos de modo que a consciência do observador possa escapar à tirania da aparência de “normalidade” do processo histórico e refletir, assim, criticamente, sobre o sentido atual da realidade observada. A imagem dialética produzida pelo autor de O Teatro do Bem e do Mal provoca desse modo um efeito de choque no sujeito que com ela se depara, desmobilizando momentaneamente uma certa estrutura de sensibilidade originada e cristalizada a partir da longa vivência coletiva no terreno das relações sociais capitalistas de produção, e permitindo assim o surgimento de uma outra diferente.
O escritor uruguaio é um expert em produzir tais efeitos. Um outro recurso de composição de que costuma se servir é o de aproximar duas realidades completamente opostas – e aparentemente sem relação alguma - dentro do presente mesmo. Por exemplo, no capítulo Um tema para arqueólogos temos a seguinte passagem: “A tecnologia, que aboliu as distâncias, permite agora que um operário da Nike na Indonésia tenha de trabalhar cem mil anos para ganhar o que ganha, em um ano, um executivo da Nike nos Estados Unidos, e que um operário da IBM nas Filipinas fabrique computadores que ele não pode comprar.” Galeano prossegue, em várias partes do livro, “aproximando as desigualdades”, fazendo os opostos se tocarem a fim de denunciar as injustiças sofridas por aqueles que trabalham e se situam em posição antagônica e hierarquicamente subalterna em relação ao poder econômico estabelecido.
Por fim, há que se mencionar o magistral toque de humor e ironia que permeia os escritos de Galeano de cabo a rabo, e que lhe permite assim subverter e dessacralizar os discursos oriundos das engrenagens do poder, debilitando e enfraquecendo a seriedade contida nestes e quebrando a força do impacto que estes argumentos poderiam ter sobre a sensibilidade coletiva.
Imagem dialética e ironia, conhecimento da história e posicionamento político, organização das palavras no sentido de causar um certo tipo de mobilização na sensibilidade usual acostumada à resignação e à passividade frente as injustiças do mundo. Crítica, choque e despertar do torpor cotidiano produzido pelas relações sociais capitalistas. Tais são alguns dos elementos de que, segundo creio, se reveste a crônica socialmente engajada de Eduardo Galeano.
O tema é o mundo contemporâneo com sua ampla variedade de contradições. O ponto de vista assumido é o dos oprimidos da história: os párias, os excluídos, os vencidos de todo tipo, aqueles que de qualquer modo foram considerados o oposto do ideal a ser seguido pelas sociedades ao longo dos tempos (“Não haverá o que aprender com os perdedores, como em tantas outras coisas?” - pergunta-se Galeano, num dado momento do livro, deixando transparecer o posicionamento que adota). O intento perseguido é a critica das determinações históricas que permitem que pequenos grupos sociais, econômicos, políticos, étnicos e de gênero dominem e submetam a seus interesses - servindo-se para isso de incontáveis meios - a imensa maioria da humanidade.
As técnicas de escrita utilizadas pelo autor são variadas e dominadas por ele com maestria. Um estudo aprofundado da forma de narrativa desenvolvida por Galeano produziria certamente resultados interessantes e valiosos para aqueles que querem aprender a arte de usar as palavras como armas na batalha cultural em favor da modificação radical do sistema social atualmente vigente. Mencionarei brevemente apenas algumas das que mais me chamaram a atenção durante a leitura de O Teatro do Bem e do Mal.
Penso não estar muito equivocado se disser que Galeano se serve, como um dos seus principais métodos de exposição de idéias, aquilo que Walter Benjamin chamou de imagem dialética, isto é, “capturar” um evento passado, articulando-a com o presente, e fazendo com que ambos, passado e presente, se iluminem e revelem as “conexões ocultas” singulares entre ambos, e que não são perceptíveis a partir de uma perspectiva usual (linear) da história. Por exemplo, logo no primeiro capítulo, intitulado, como o livro, de O Teatro do Bem e do Mal, o autor, escrevendo no período imediatamente após o ataque terrorista ao World Trade Center “revira” do avesso o presente histórico em que se situa (no qual os EUA e o terrorista Osama Bin Laden se posicionam como inimigos) de modo a encontrar nesse presente uma certa marca inusitada do passado, quando estes dois antagonistas eram de fato... aliados. Diz Galeano:
“O flagelo do mundo, agora, chama-se Osama Bin Laden. A CIA lhe ensinara tudo o que sabe em matéria de terrorismo: Bin Laden, amado e armado pelo governo dos Estados Unidos, era um dos principais 'guerreiros da liberdade' contra o comunismo no Afeganistão. Bush Pai ocupava a vice-presidência quando o presidente Reagan disse que estes heróis eram 'o equivalente moral dos Pais Fundadores da América'. Hollywood estava de acordo com a Casa Branca. Na época filmou-se Rambo 3: os afegãos muçulmanos eram os bons. Treze anos depois, nos tempos de Bush Filho, são maus, malíssimos.”
Galeano faz assim um “corte”, uma “cesura” na história, mostrando a interconexão oculta entre dois eventos do passado e do presente. No presente, EUA e Bin Laden se apresentam como inimigos viscerais. No entanto, na década de 1970, quando o comunismo ameaçava se tornar uma ideologia influente entres os pobres países islâmicos, os EUA estimularam naqueles povos todo tipo de visão de mundo ultra-conservadora, dentre elas, a talibã. Quando os soviéticos invadiram o Afeganistão em 1979, foram os EUA que armaram os guerreiros mujahedin a fim de que estes combatessem os russos. Naquele tempo, portanto, eram amigos. O ultra-conservadorismo islâmico foi alimentado cultural e militarmente pelos EUA no Oriente Médio, mas acabou depois de uns anos se voltando contra eles.
Em última instância, os norte-americanos combatem hoje uma de suas próprias criaturas. E esse combate não é de forma alguma indesejado pelos governantes do país de Mickey Mouse, pois, como Galeano afirma logo em seguida num capítulo intitulado Satanases, “quando as guerras vão bem, a economia vai melhor”. Aí se revela a idéia de como a guerra é a política por outros meios, de como a guerra alimenta a economia em crise, e de como, finalmente, a política atende aos interesses econômicos dos mais fortes. Tornam-se claro aos olhos do leitor os interesses econômicos e políticos particulares por trás das práticas aparentemente “neutras” e movidas pela causa da democracia e da liberdade alardeadas pelo discurso oficial norte-americano. Ora, a conclusão a que se chega é a de que uma guerra, tal como a que foi perpetrada contra o Afeganistão em 2001, não é algo ruim em si para os EUA, e muito menos um acidente na história.
Galeano coloca, então, passado e presente lado a lado, mas de uma forma especial. Compõe uma imagem onde fluxo dos acontecimentos é subitamente imobilizado. Quebram-se as supostas linearidade e “naturalidade” da história. Os contextos dos anos de 1979 e 2001 são justapostos de modo que a consciência do observador possa escapar à tirania da aparência de “normalidade” do processo histórico e refletir, assim, criticamente, sobre o sentido atual da realidade observada. A imagem dialética produzida pelo autor de O Teatro do Bem e do Mal provoca desse modo um efeito de choque no sujeito que com ela se depara, desmobilizando momentaneamente uma certa estrutura de sensibilidade originada e cristalizada a partir da longa vivência coletiva no terreno das relações sociais capitalistas de produção, e permitindo assim o surgimento de uma outra diferente.
O escritor uruguaio é um expert em produzir tais efeitos. Um outro recurso de composição de que costuma se servir é o de aproximar duas realidades completamente opostas – e aparentemente sem relação alguma - dentro do presente mesmo. Por exemplo, no capítulo Um tema para arqueólogos temos a seguinte passagem: “A tecnologia, que aboliu as distâncias, permite agora que um operário da Nike na Indonésia tenha de trabalhar cem mil anos para ganhar o que ganha, em um ano, um executivo da Nike nos Estados Unidos, e que um operário da IBM nas Filipinas fabrique computadores que ele não pode comprar.” Galeano prossegue, em várias partes do livro, “aproximando as desigualdades”, fazendo os opostos se tocarem a fim de denunciar as injustiças sofridas por aqueles que trabalham e se situam em posição antagônica e hierarquicamente subalterna em relação ao poder econômico estabelecido.
Por fim, há que se mencionar o magistral toque de humor e ironia que permeia os escritos de Galeano de cabo a rabo, e que lhe permite assim subverter e dessacralizar os discursos oriundos das engrenagens do poder, debilitando e enfraquecendo a seriedade contida nestes e quebrando a força do impacto que estes argumentos poderiam ter sobre a sensibilidade coletiva.
Imagem dialética e ironia, conhecimento da história e posicionamento político, organização das palavras no sentido de causar um certo tipo de mobilização na sensibilidade usual acostumada à resignação e à passividade frente as injustiças do mundo. Crítica, choque e despertar do torpor cotidiano produzido pelas relações sociais capitalistas. Tais são alguns dos elementos de que, segundo creio, se reveste a crônica socialmente engajada de Eduardo Galeano.
sábado, 12 de setembro de 2009
Santa Maria a contrapelo
Como bem explicou Walter Benjamin, escovar a história a contrapelo significa a recusa radical em compartilhar das concepções conformistas, fatalistas e lineares da história, aquelas para as quais o progresso é a norma. É um nadar contra a corrente da versão narrativa oficial dos fatos que auxilia o enfrentamento e superação da forma em vigor hoje de nossa sociedade.
Alguns dos textos que aqui se encontram visam resgatar a tradição dos oprimidos, mostrar o que foi reprimido, esquecido e intencionalmente escondido por todos aqueles que venceram e narraram à sua maneira as lutas históricas. O objetivo que se quer atingir é duplo: criticar a versão institucionalizada dos fatos, e contribuir, ainda que modestamente, para a transformação da estrutura social vigente.
Parto do princípio de que a emancipação humana não acontecerá graças ao “curso natural” das coisas - o “progresso” entendido no preciso significado de desenvolvimento capitalista - e sim pela modificação radical consciente desse conjunto de processos. Deixada à própria sorte, ou acariciada no sentido do pêlo, a história apenas reproduz aquilo que temos verificado pelos séculos afora: guerras, catástrofes, barbárie, opressão. Nesse contexto, tenho constatado que as concepções da história formuladas do ponto de vista dos vencedores tendem inexoravelmente a reafirmar e a reforçar o sentido dessas ações em prática.
Em contrapartida, escovar a história a contrapelo, por assumir a perspectiva dos excluídos, dos párias e dos esfarrapados de todos os tempos, busca apresentar os eventos de uma forma que revele o que ficou escondido sob a capa dos relatos oficiais da história. É um tipo especial de relação que assim se estabelece com o passado por intermédio da rememoração do que foi reprimido pelas forças hegemônicas de nossa sociedade. Penso que isto pode provocar um efeito especial na subjetividade coletiva, um choque capaz de dar à luz posturas negadoras do atual estado de coisas e afirmadoras de algo novo. Trata-se, enfim, de uma experiência com o passado capaz de mudar a percepção do já ocorrido e, ao mesmo tempo, mobilizar energias capazes de desencadear as transformações necessárias ao presente.
Alguns dos textos que aqui se encontram visam resgatar a tradição dos oprimidos, mostrar o que foi reprimido, esquecido e intencionalmente escondido por todos aqueles que venceram e narraram à sua maneira as lutas históricas. O objetivo que se quer atingir é duplo: criticar a versão institucionalizada dos fatos, e contribuir, ainda que modestamente, para a transformação da estrutura social vigente.
Parto do princípio de que a emancipação humana não acontecerá graças ao “curso natural” das coisas - o “progresso” entendido no preciso significado de desenvolvimento capitalista - e sim pela modificação radical consciente desse conjunto de processos. Deixada à própria sorte, ou acariciada no sentido do pêlo, a história apenas reproduz aquilo que temos verificado pelos séculos afora: guerras, catástrofes, barbárie, opressão. Nesse contexto, tenho constatado que as concepções da história formuladas do ponto de vista dos vencedores tendem inexoravelmente a reafirmar e a reforçar o sentido dessas ações em prática.
Em contrapartida, escovar a história a contrapelo, por assumir a perspectiva dos excluídos, dos párias e dos esfarrapados de todos os tempos, busca apresentar os eventos de uma forma que revele o que ficou escondido sob a capa dos relatos oficiais da história. É um tipo especial de relação que assim se estabelece com o passado por intermédio da rememoração do que foi reprimido pelas forças hegemônicas de nossa sociedade. Penso que isto pode provocar um efeito especial na subjetividade coletiva, um choque capaz de dar à luz posturas negadoras do atual estado de coisas e afirmadoras de algo novo. Trata-se, enfim, de uma experiência com o passado capaz de mudar a percepção do já ocorrido e, ao mesmo tempo, mobilizar energias capazes de desencadear as transformações necessárias ao presente.
Lembrança do poeta García Lorca
Cidade de Granada, Espanha, madrugada de 18 (ou 19, não se sabe ao certo) de agosto de 1936. Morria nesse dia, aos 38 anos de idade, Federico García Lorca. Morria? Assassinato é a palavra certa. Por suas opiniões políticas, por sua homossexualidade – motivo pelo qual sofria ataques e perseguições - e certamente por ser poeta.
Naquela época de grandes embates políticos, o general Francisco Franco (1892-1975) chegava ao poder através de um golpe militar que o manteria na condição de ditador por 40 anos.
Por que assassinar um poeta? Porque, quando arrumadas de uma forma especial, as palavras podem se converter em armas perigosas. Num país de profundas desigualdades, de tradições conservadoras, numa conjuntura de ascensão do fascismo e onde a revolução era uma ameaça, um artista declarar publicamente que “neste mundo eu sempre sou e serei partidário dos pobres, eu sempre serei partidário dos que não têm nada e até a tranqüilidade do nada lhes é negada”, e usar a arte para sensibilizar sobre a necessidade de uma transformação social radical, pode se tornar inconveniente para os que detêm o poder.
Nesse caso, a pena não pode ser outra que não a morte. Tal o destino de Lorca: morto e jogado numa vala comum. Seu corpo nunca foi encontrado.
O que isto tem a ver com o Brasil? Simples. Também aqui se condena à morte os artistas. Não pelo fuzil, mas pelo desprezo. Pensemos em Santa Maria: quantos são os que tentam fazer sua arte tocar as sensibilidades alheias e despertá-las para outros sentidos e significados, mas que têm de trabalhar sozinhos e sem reconhecimento? Porque os poderes estabelecidos fingem que inúmeros sujeitos com talento para a criatividade estética não existem. Não seria isto, de certo modo, um tipo de assassinato? Por que isso ocorre? Cada um deve tirar suas conclusões. Parece forçoso admitir, contudo, que se trata de um mau sinal dos tempos quando a sociedade assassina, por tiro ou indiferença, os seus artistas.
Que esses anônimos saibam tirar sua força artística do enfrentamento dessas dificuldades e encontrem meios para superar a morte da vala comum do esquecimento.
Naquela época de grandes embates políticos, o general Francisco Franco (1892-1975) chegava ao poder através de um golpe militar que o manteria na condição de ditador por 40 anos.
Por que assassinar um poeta? Porque, quando arrumadas de uma forma especial, as palavras podem se converter em armas perigosas. Num país de profundas desigualdades, de tradições conservadoras, numa conjuntura de ascensão do fascismo e onde a revolução era uma ameaça, um artista declarar publicamente que “neste mundo eu sempre sou e serei partidário dos pobres, eu sempre serei partidário dos que não têm nada e até a tranqüilidade do nada lhes é negada”, e usar a arte para sensibilizar sobre a necessidade de uma transformação social radical, pode se tornar inconveniente para os que detêm o poder.
Nesse caso, a pena não pode ser outra que não a morte. Tal o destino de Lorca: morto e jogado numa vala comum. Seu corpo nunca foi encontrado.
O que isto tem a ver com o Brasil? Simples. Também aqui se condena à morte os artistas. Não pelo fuzil, mas pelo desprezo. Pensemos em Santa Maria: quantos são os que tentam fazer sua arte tocar as sensibilidades alheias e despertá-las para outros sentidos e significados, mas que têm de trabalhar sozinhos e sem reconhecimento? Porque os poderes estabelecidos fingem que inúmeros sujeitos com talento para a criatividade estética não existem. Não seria isto, de certo modo, um tipo de assassinato? Por que isso ocorre? Cada um deve tirar suas conclusões. Parece forçoso admitir, contudo, que se trata de um mau sinal dos tempos quando a sociedade assassina, por tiro ou indiferença, os seus artistas.
Que esses anônimos saibam tirar sua força artística do enfrentamento dessas dificuldades e encontrem meios para superar a morte da vala comum do esquecimento.
Meditação sobre o amor
Não é raro que eu me pegue pensando no amor, na importância do amor, no seu significado para mim e no quanto eu o anseio e o desejo. Em tardes de chuva como esta, quando saio sozinho às ruas e a meditação me faz demorar as vias perceptivas no cinza pálido dos rostos desconhecidos que passam sem me olhar, toma-me um frio muito mais frio que o normal, e me dou conta que a centralidade desse sentimento para meus objetivos é quase uma questão de vida ou de morte. Perderei a existência física sem amor? Mais provável é que uma morte em vida se afirme em mim, que eu me assemelhe mais a um zumbi, a um vampiro, ou a um míssil tele-guiado pronto para me explodir frente a um qualquer, e dar cabo assim de ambos. Amar, para mim, é uma maneira de impedir que isso aconteça e de afirmar algo diverso. O amor? Eu não saberia defini-lo. Não melhor do que os filósofos ao longo da história. Mas talvez soubesse expressar a minha visão particular dele, o sentido que a ele atribuo, ou alguns traços daquilo que eu denomino de amor.
Mas quem sou eu? Sou o que faço, por certo, e sou fundamentalmente o que faço de mim no tempo e no espaço, vivendo com outros num mundo que não criei, me relacionando com este mundo, com os meus semelhantes, com a matéria e comigo mesmo. Branco, mestiço, 31 anos, solteiro, cabelos e olhos castanhos, gaúcho do interior e vivendo na periferia, filho de trabalhadores, trabalhador também, que teve a oportunidade de estudar, graduado, pós-graduando que almeja uma carreira acadêmica, nascido no fim do século XX, no Brasil, e vivendo o século XXI neste mesmo país, um dos tantos belos países do imenso continente latino-americano. Sou como muitos, portanto, e é nestes muitos com os quais me identifico e me assemelho que ancoro a minha concepção de amor.
Não é, então, do amor em geral que falo e de que tenho necessidade. Não é o amor universal, não é dirigido à humanidade inteira, nem é algo que se pretende válido para todo sempre. É muito mais parcial, embora seja radical na sua parcialidade. Também não é restrito ou circunscrito a limites estreitos. É aberto e em processo. É, enfim, um sentimento particular e, sem dúvida, terreno. Ama as idéias e ama sobretudo a carne. Caminha na matéria e aponta o peito das pessoas – não todas, somente as mais próximas e afins, ainda que essa proximidade e afinidade me leve a identificá-las, quando possível, no lado oposto do globo terrestre. Amor de quem se percebe num mundo contraditório, de quem sabe a sua posição no conflito, de quem se reconhece e sente empatia por aqueles cuja situação é desgraçadamente a mesma. Amor tomado como sentimento capaz de dar conforto, ânimo e vida para este combate, amor cuja falta é a morte e a falência neste mesmo embate.
Porque o amor pode dar vida, sim, pode dar ânimo e pode dar conforto. Pode encher de calor um quarto abandonado, ou uma casa singela, no inverno. Pode ser fogo e facho de luz na escuridão. Pode ser mel nos lábios daqueles que há muito possuem um acre sabor na boca. Pode ser ar fresco para quem se encontra sufocado e só num calabouço imundo. Pode ser o som de uma lira dedilhada para o júbilo dos ouvidos que têm apenas o silêncio diário, o desprezo diário e o esquecimento diário. Pode ser líquido precioso e oásis para o viajor no deserto. Pode ser a vitória contra a melancolia, contra o esmagador sentimento de desânimo e de falta de sentido que este mundo sentencia. Amor para alguém que se encontra num dado lugar especial desta sociedade em que tudo está fadado a virar mercadoria e a ter seu preço, onde as pessoas espontaneamente aprendem a se postar e a tratar a alteridade e a si como coisas, como objetos, como entidades vendáveis, compráveis e descartáveis. Sim, esta é a comunidade da coisificação consumada, da competição desmedida, onde todos são estranhos, onde a solidão campeia e, muitas vezes, vence, deixando-nos na miserável condição de não podermos alimentar nossos espíritos e corpos com aquilo que o nosso igual criou de melhor para si e para o mundo.
Amor só tem sentido para mim - e, penso, para aqueles com os quais me importo - se se realiza como força capaz de transcender essas imposições. Não é, desse modo, o amor que os opressores sentem entre si e por si, não é caridade que os de cima expressam pelos de baixo, atirando suas migalhas por sobre uma barreira que nunca pretendem quebrar. É o amor dos de baixo pelos de baixo, que dá à luz uma magia que os restabelece na luta, que não os deixa sucumbir ao fetichismo do sistema capitalista, que os reergue se acaso caiam e que os impulsiona para a superação das limitações a eles impostas. É este amor de infinitos meios que é fundamental, penso, para a gente simples, para os como eu.
Amor-feitiço, amor-magia, amor-fonte-da-juventude. Amor que faz correr quente o sangue nas veias e provoca pequenos encantos cotidianos, amor multiplicado e repartido de graça, alegria espontânea entre amigos, riso descontraído e fácil, solidariedade sincera e desinteressada, afeto caloroso entre irmãos, carinho preciso e prazer genuíno, acolhimento, amparo e palavra de apoio, ombro oferecido ao parceiro e camaradagem plena, cuidado com os filhos, gratidão, linguagem bem empregada para embelezar as situações corriqueiras, bom humor em doses generosas, união entre iguais na luta, respeito ao coletivo sem detrimento da individualidade, entrega, coragem frente aos medos reais e imaginados, abraço apertado nos pais nos almoços de domingo, preparo do prato predileto do hóspede querido, erotismo autêntico e sem culpa, poesia em forma de bilhete deixada propositalmente no bolso da pessoa amada, sorriso luminoso dado antes mesmo do bom-dia, esquecimento das hierarquias, sonhos justos e generosos de dias melhores que virão, projetos construídos em conjunto, reconhecimento das responsabilidades e assunção da própria vida, perpetuação da chama da esperança, memória das lutas, das derrotas, dos anseios mais sinceros por realização, desejo de superação, fé indestrutível na capacidade humana, na tenaz resistência frente ao inimigo, aprender com os erros, compartilhar experiências com os mais jovens, orgulho necessário a quem quer permanecer humano e recusa a se tornar mais ou menos que humano, raiva necessária para a explosão de uma corrente, negação em se tornar objeto de quantificação e atribuição de valor às pessoas sem status, sem honrarias, sem medalhas, sem patentes e sem títulos.
O amor tem que ser assim, tem que levar a pessoa a sair de si, a desfazer-se da perspectiva que tem o próprio umbigo como horizonte. É desse jeito que penso o amor comum entre os oprimidos deste mundo, entre os que sofrem o jugo deste sistema social mórbido e mesquinho. E é assim que penso também o amor entre duas almas afins. No meu caso, entre homem e mulher, mas que ocorre, para muitos, de muitas outras maneiras bonitas, diferentes e possíveis. Amor-comunhão, pensante e sensível, atuante e paciente, forte e frágil, amor com projeto de futuro, amor consciente, portanto – mas não meramente reduzido a racional, que é diminuir muito, nesse caso, o sentido do amor e da consciência -, amor-louco e amor-paixão, amigo da imaginação e do maravilhoso, do sonho e da vigília, e principalmente do momento em que vigília e sonho se encontram: amor amigo do despertar. Porque esta sociedade nos entorpece e nos bota pra dormir um angustiante sono sem sonhos, obscuro e sem fim.
Disse um poeta uma vez: “Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?… Sempre e até de olhos vidrados amar?” Correto, penso. Mas eu completaria afirmando o desejo de que esse amor não se restrinja a seu micro-cosmo, que não se limite a uma existência individual a dois, que não se circunscreva à vida cotidiana e as suas necessidades imediatas, mas que se volte para o mundo, que grave a sua marca nele, de uma forma ou de outra, para superá-lo e vencê-lo, e que seja capaz de dar ânimo, conforto e vida a todos os que dele se acerquem.
E se lhes entrego estas palavras, é porque vejo em seus olhos um desejo semelhante.
Mas quem sou eu? Sou o que faço, por certo, e sou fundamentalmente o que faço de mim no tempo e no espaço, vivendo com outros num mundo que não criei, me relacionando com este mundo, com os meus semelhantes, com a matéria e comigo mesmo. Branco, mestiço, 31 anos, solteiro, cabelos e olhos castanhos, gaúcho do interior e vivendo na periferia, filho de trabalhadores, trabalhador também, que teve a oportunidade de estudar, graduado, pós-graduando que almeja uma carreira acadêmica, nascido no fim do século XX, no Brasil, e vivendo o século XXI neste mesmo país, um dos tantos belos países do imenso continente latino-americano. Sou como muitos, portanto, e é nestes muitos com os quais me identifico e me assemelho que ancoro a minha concepção de amor.
Não é, então, do amor em geral que falo e de que tenho necessidade. Não é o amor universal, não é dirigido à humanidade inteira, nem é algo que se pretende válido para todo sempre. É muito mais parcial, embora seja radical na sua parcialidade. Também não é restrito ou circunscrito a limites estreitos. É aberto e em processo. É, enfim, um sentimento particular e, sem dúvida, terreno. Ama as idéias e ama sobretudo a carne. Caminha na matéria e aponta o peito das pessoas – não todas, somente as mais próximas e afins, ainda que essa proximidade e afinidade me leve a identificá-las, quando possível, no lado oposto do globo terrestre. Amor de quem se percebe num mundo contraditório, de quem sabe a sua posição no conflito, de quem se reconhece e sente empatia por aqueles cuja situação é desgraçadamente a mesma. Amor tomado como sentimento capaz de dar conforto, ânimo e vida para este combate, amor cuja falta é a morte e a falência neste mesmo embate.
Porque o amor pode dar vida, sim, pode dar ânimo e pode dar conforto. Pode encher de calor um quarto abandonado, ou uma casa singela, no inverno. Pode ser fogo e facho de luz na escuridão. Pode ser mel nos lábios daqueles que há muito possuem um acre sabor na boca. Pode ser ar fresco para quem se encontra sufocado e só num calabouço imundo. Pode ser o som de uma lira dedilhada para o júbilo dos ouvidos que têm apenas o silêncio diário, o desprezo diário e o esquecimento diário. Pode ser líquido precioso e oásis para o viajor no deserto. Pode ser a vitória contra a melancolia, contra o esmagador sentimento de desânimo e de falta de sentido que este mundo sentencia. Amor para alguém que se encontra num dado lugar especial desta sociedade em que tudo está fadado a virar mercadoria e a ter seu preço, onde as pessoas espontaneamente aprendem a se postar e a tratar a alteridade e a si como coisas, como objetos, como entidades vendáveis, compráveis e descartáveis. Sim, esta é a comunidade da coisificação consumada, da competição desmedida, onde todos são estranhos, onde a solidão campeia e, muitas vezes, vence, deixando-nos na miserável condição de não podermos alimentar nossos espíritos e corpos com aquilo que o nosso igual criou de melhor para si e para o mundo.
Amor só tem sentido para mim - e, penso, para aqueles com os quais me importo - se se realiza como força capaz de transcender essas imposições. Não é, desse modo, o amor que os opressores sentem entre si e por si, não é caridade que os de cima expressam pelos de baixo, atirando suas migalhas por sobre uma barreira que nunca pretendem quebrar. É o amor dos de baixo pelos de baixo, que dá à luz uma magia que os restabelece na luta, que não os deixa sucumbir ao fetichismo do sistema capitalista, que os reergue se acaso caiam e que os impulsiona para a superação das limitações a eles impostas. É este amor de infinitos meios que é fundamental, penso, para a gente simples, para os como eu.
Amor-feitiço, amor-magia, amor-fonte-da-juventude. Amor que faz correr quente o sangue nas veias e provoca pequenos encantos cotidianos, amor multiplicado e repartido de graça, alegria espontânea entre amigos, riso descontraído e fácil, solidariedade sincera e desinteressada, afeto caloroso entre irmãos, carinho preciso e prazer genuíno, acolhimento, amparo e palavra de apoio, ombro oferecido ao parceiro e camaradagem plena, cuidado com os filhos, gratidão, linguagem bem empregada para embelezar as situações corriqueiras, bom humor em doses generosas, união entre iguais na luta, respeito ao coletivo sem detrimento da individualidade, entrega, coragem frente aos medos reais e imaginados, abraço apertado nos pais nos almoços de domingo, preparo do prato predileto do hóspede querido, erotismo autêntico e sem culpa, poesia em forma de bilhete deixada propositalmente no bolso da pessoa amada, sorriso luminoso dado antes mesmo do bom-dia, esquecimento das hierarquias, sonhos justos e generosos de dias melhores que virão, projetos construídos em conjunto, reconhecimento das responsabilidades e assunção da própria vida, perpetuação da chama da esperança, memória das lutas, das derrotas, dos anseios mais sinceros por realização, desejo de superação, fé indestrutível na capacidade humana, na tenaz resistência frente ao inimigo, aprender com os erros, compartilhar experiências com os mais jovens, orgulho necessário a quem quer permanecer humano e recusa a se tornar mais ou menos que humano, raiva necessária para a explosão de uma corrente, negação em se tornar objeto de quantificação e atribuição de valor às pessoas sem status, sem honrarias, sem medalhas, sem patentes e sem títulos.
O amor tem que ser assim, tem que levar a pessoa a sair de si, a desfazer-se da perspectiva que tem o próprio umbigo como horizonte. É desse jeito que penso o amor comum entre os oprimidos deste mundo, entre os que sofrem o jugo deste sistema social mórbido e mesquinho. E é assim que penso também o amor entre duas almas afins. No meu caso, entre homem e mulher, mas que ocorre, para muitos, de muitas outras maneiras bonitas, diferentes e possíveis. Amor-comunhão, pensante e sensível, atuante e paciente, forte e frágil, amor com projeto de futuro, amor consciente, portanto – mas não meramente reduzido a racional, que é diminuir muito, nesse caso, o sentido do amor e da consciência -, amor-louco e amor-paixão, amigo da imaginação e do maravilhoso, do sonho e da vigília, e principalmente do momento em que vigília e sonho se encontram: amor amigo do despertar. Porque esta sociedade nos entorpece e nos bota pra dormir um angustiante sono sem sonhos, obscuro e sem fim.
Disse um poeta uma vez: “Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?… Sempre e até de olhos vidrados amar?” Correto, penso. Mas eu completaria afirmando o desejo de que esse amor não se restrinja a seu micro-cosmo, que não se limite a uma existência individual a dois, que não se circunscreva à vida cotidiana e as suas necessidades imediatas, mas que se volte para o mundo, que grave a sua marca nele, de uma forma ou de outra, para superá-lo e vencê-lo, e que seja capaz de dar ânimo, conforto e vida a todos os que dele se acerquem.
E se lhes entrego estas palavras, é porque vejo em seus olhos um desejo semelhante.
A Santa Maria das favelas
Em algum lugar da encosta de um morro da "cidade-cultura", envolto em sombras, vive um cidadão comum. Quem saberá seu nome? Solteiro, 45 anos, desempregado. Deseja arrumar logo um emprego para poder aumentar a casa onde mora. Quarto, sala, cozinha e banheiro divididos em três metros de comprimento por seis de largura. Está confiante. Agora, com seu cantinho garantido, começa para ele uma nova luta. Tal como para muitos.
Em Santa Maria, um fenômeno digno de destaque é o aparecimento de favelas nos últimos anos. Exemplos não faltam: ao redor do morro Cechella existem casas minúsculas, paupérrimas, feitas de papelão, piso de chão batido, algumas delas com três metros quadrados de área, ou nem isto. Outro exemplo: uma favela paralela à rua Silva Jardim, mais ou menos na altura da escola Aracy Barreto Sacchis, no lado direito de quem vai no sentido centro-bairro. É preciso entrar por uma ruazinha para vê-la.
Depois que a Viação Férrea foi privatizada, algumas de suas linhas foram desativadas. No trecho onde passavam os trens entre a rua Sete de Setembro e a Av. Borges de Medeiros, os trilhos foram retirados e em seus lugares brotaram casebres de todo tipo: madeira, tijolos, mistas. Esta realidade acabou por formar, pouco a pouco, um paradoxo. Algumas destas casas, situadas no limite entre a vila Valdemar Rodrigues e o bairro Rosário, estão a meros 5 minutos de uma universidade particular localizada neste mesmo bairro. Apenas centenas de metros separam dois mundos diversos e opostos: o dos que podem pagar para ter formação superior e o dos que desgraçadamente dispõem de condições precárias de habitação. Chocar-se-ão um dia?
Nossa cidade não representa um caso isolado. Segundo a ONU, um bilhão de pessoas vive hoje em favelas pelo mundo. Correspondem a um terço da população urbana do planeta. As estimativas são de que este número aumente para dois bilhões nas próximas décadas. Diante desse quadro, houve sociólogos que afirmaram que a favelização das cidades consiste no evento geo-político mais importante do nosso tempo. Santa Maria expressa, então, uma tendência global.
Em Santa Maria, um fenômeno digno de destaque é o aparecimento de favelas nos últimos anos. Exemplos não faltam: ao redor do morro Cechella existem casas minúsculas, paupérrimas, feitas de papelão, piso de chão batido, algumas delas com três metros quadrados de área, ou nem isto. Outro exemplo: uma favela paralela à rua Silva Jardim, mais ou menos na altura da escola Aracy Barreto Sacchis, no lado direito de quem vai no sentido centro-bairro. É preciso entrar por uma ruazinha para vê-la.
Depois que a Viação Férrea foi privatizada, algumas de suas linhas foram desativadas. No trecho onde passavam os trens entre a rua Sete de Setembro e a Av. Borges de Medeiros, os trilhos foram retirados e em seus lugares brotaram casebres de todo tipo: madeira, tijolos, mistas. Esta realidade acabou por formar, pouco a pouco, um paradoxo. Algumas destas casas, situadas no limite entre a vila Valdemar Rodrigues e o bairro Rosário, estão a meros 5 minutos de uma universidade particular localizada neste mesmo bairro. Apenas centenas de metros separam dois mundos diversos e opostos: o dos que podem pagar para ter formação superior e o dos que desgraçadamente dispõem de condições precárias de habitação. Chocar-se-ão um dia?
Nossa cidade não representa um caso isolado. Segundo a ONU, um bilhão de pessoas vive hoje em favelas pelo mundo. Correspondem a um terço da população urbana do planeta. As estimativas são de que este número aumente para dois bilhões nas próximas décadas. Diante desse quadro, houve sociólogos que afirmaram que a favelização das cidades consiste no evento geo-político mais importante do nosso tempo. Santa Maria expressa, então, uma tendência global.
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