quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Um brinde aos derrotados da história

O processo de formação das sociedades se realiza, muitas vezes, a partir de conflitos encarniçados, cruéis, violentos, e têm como um de seus produtos o fato de que os vencedores passam a contar essa história à sua maneira. Do seu ponto de vista - o de quem teve sucesso na luta -, a história aparece como a sucessão de grandes homens, de grandes feitos, de grandes batalhas, de grandes conquistas, de grandes realizações a serem cultuadas. Enfim, uma história de grandezas, de proezas, de prodígios.

Os monumentos que surgem, aqueles que contemplamos todos os dias pelas ruas, as estátuas, os bustos, os arcos do triunfo, são erigidos sempre em homenagem a estes, os vitoriosos. Com tal tipo de criação cultural, buscam estabelecer sobre a coletividade um certo tipo de memória, de representação, de ideologia estruturada em torno de um significado preciso: todos nós devemos admirar os vencedores, cultuá-los, homenageá-los e tentar repetir as suas façanhas.

Dessa forma, os vencedores estabelecem a sua imagem como padrão a ser seguido, e camuflam, de resto, a concepção de mundo onde a sociedade aparece não como uma sucessão de batalhas, não como a reprodução de desigualdades entre grandes e pequenos e entre fortes e fracos, não como perpetuação da competição entre grupos antagônicos, mas como uma reunião de iguais, cada qual como sujeito do processo social, com dignidade, com honra, com múltiplas possibilidades inerentes a si.

Como numa comuna, por exemplo. Comunas existiram em vários lugares do mundo, em várias formas, ao longo da história. Os primeiros cristãos viveram por trezentos anos em sociedades comunais. Na Europa, durante a Idade Média, houve sociedades onde a propriedade era coletiva, onde a organização social e política era da responsabilidade de todos. Na Alemanha, tinham o nome de “associações de marca”. E não existiram só ali. Também na França, na Inglaterra, na Escandinávia, na Rússia. No Brasil, Palmares foi uma comuna. Alguns consideram que Canudos também. E houve até quem achasse que as Missões Jesuíticas foram algo muito próximo a isso.

Contudo, os vencedores da história, aqueles que herdaram o poder de seus ancestrais, querem dar continuidade à concepção de que, enquanto o gênero humano existir, sempre haverá quem manda e quem obedece, quem tem virtude e quem não tem, quem é dono de alguma coisa e quem não é dono de nada, quem é o modelo a ser seguido e quem é o exemplo a ser negado. Querem acabar com a idéia de uma sociedade que supera os seus conflitos e que vive de forma igualitária e com diversidade.

Os relatos históricos estruturados a partir dessa perspectiva pretendem que em nossa memória prevaleça a imagem do vencedor, e que este se nos apresente como um arquétipo que deve se expressar em nós, por nossos atos. Querem que lembremos somente deles, e que passemos a imitá-los com amor e devoção.

Mas é possível afirmar uma desconfiança em relação a essa idéia e propor que também os vencidos merecem recordação e consideração. Todos os vencidos! Todos os que não se encaixaram nos padrões, que não cumpriram as expectativas, que fracassaram diante dos objetivos. Os que sucumbiram, afinal.

Defendo que também estes têm valor. Os que não tiveram seus nomes escritos nos livros de história, os que não se enquadraram nos padrões de sucesso, de beleza, de normalidade, os que nunca foram o ideal, mas que cultivaram sinceramente a esperança de uma vida digna e feliz.

Quero, então, propor, nesta noite, um brinde. Um brinde aos que não saíram na fotografia, aos que foram esquecidos, aos derrotados da história. Aqueles, principalmente, que sucumbiram diante do processo de formação da Civilização Ocidental. Os negros de várias etnias da África, os muitos grupos indígenas da América, os nativos da Ásia, as mulheres que ao longo da história lutaram para que as de agora pudessem ter direitos – mas que infelizmente ainda hoje não desfrutam de uma emancipação genuína e completa -, os homossexuais perseguidos e discriminados, todos os trabalhadores, das várias partes do mundo, que no passado deram a vida para que os trabalhadores de hoje tivessem uma existência mais bonita e justa.

Um brinde a todos os que batalharam, labutaram, se organizaram, todos os que planejaram, que cultivaram a expectativa de emancipação, todos os que morreram sem ver seus sonhos realizados, todos os oprimidos por tiranos, os escravizados, todos os que foram esquecidos nas prisões, nos quartos de pensões, nos leitos de hospital, os doentes e os deformados, os paralíticos, os deficientes, os aleijados, todos os que mendigaram pelas ruas, os que sofreram de doenças incuráveis e prematuras, os mutilados, os queimados nas fogueiras, os órfãos, os torturados, os desempregados, os perseguidos, os que se suicidaram, os que sofreram na carne o ódio e a violência alheia, os viciados em drogas, os que experimentaram a angústia da solidão, a melancolia do abandono, do desprezo, o infortúnio da pobreza, da miséria, da feiúra e da fome, todos os que foram repudiados, denegridos, raptados, desterrados, exilados, todos os que deram o seu melhor e mesmo assim perderam.

Quero que pensem por um momento em todas essas pessoas cujo nome não sabemos. Quero que mentalizem sua luta, suas aspirações, seus sonhos mais íntimos de desfrutar uma existência verdadeiramente humana e digna, com amor, com afeto, com consideração. Quero que pensem nelas, em seu desespero solitário, durante um breve segundo.

Afirmo que, pela eternidade desse segundo, um sopro do ar frio que envolveu a esses que nos precederam roçará de leve o nosso rosto, e, assim, enquanto esse instante existir, tais pessoas estarão aqui, conosco, e se sentirão redimidas e salvas.

Ergamos nossas taças! Hoje, vamos celebrar a derrota. Um brinde, então, a todos os que se encontram sem pátria, sem lar, sem conforto, sem amparo, sem esperança, sem comida, sem trabalho, sem saúde, sem educação, sem liberdade, sem independência, sem carinho, sem afeto, sem amanhã. Um brinde aos derrotados da história!



Tim-tim!

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Rascunho 1 - texto Agamben

Em 1921, Walter Benjamin escreveu um brevíssimo artigo filosófico que viria a conhecimento público somente após sua morte: “O capitalismo como religião”. Nesse texto, o filósofo procurava distinguir algumas das características essenciais da sociedade em que vivia. O capitalismo era, pois, essencialmente cultual. Nesse meio, o dinheiro, a riqueza, etc., seriam as divindades às quais se deveria impreterivelmente servir. Em segundo lugar, o culto preconizado pela religião capitalista não possuiria um dia ou uma ocasião própria para sua realização. Ele seria, de fato, permanente: “Não há dia que não seja de festa, no terrível sentido da ostentação sagrada, da tensão extrema que reside no adorador”, afirmou Benjamin. O terceiro traço do capitalismo como religião é que o culto que esse sistema produz é culpabilizador, mas sem a possibilidade de expiação. Como conseqüência, as pessoas que vivem sob esse jugo são tomadas de um desespero renitente e cruel.

No período em que escreveu seu ensaio, apesar de receber influência e ter a amizade do filósofo marxista alemão Ernst Bloch, Benjamin estava mais próximo politicamente das concepções românticas e libertárias de Gustav Landauer e de Georges Sorel. Mais tarde, em 1924, o autor de Passagens tomou contato com a obra de Lukács Historia e consciência de classe, aproximou-se das concepções de Marx, deixou de condenar o capitalismo como religião e passou a criticar o culto fetichista da mercadoria, analisando as galerias parisienses como “templos do capital mercadológico” (Cf. Löwy, 2007, p. 180).

Em nossos dias, Giorgio Agamben retoma e desenvolve aquelas reflexões benjaminianas, dando a elas, entretanto, uma fundamentação um pouco diferente. Sim, diz ele, o capitalismo possui cultos; sim, esses cultos são permanentes; e sim, a culpabilização que gera não oferece possibilidade de redenção, e generaliza, por isso, o desespero entre os homens e mulheres que vivem no seu interior. Mas o capitalismo deve ser identificado com uma religião, sobretudo, por estabelecer uma cisão em em sua própria substância que cria a esfera do sagrado em contraposição com o mundo humano. O filósofo italiano vai buscar nos escritos dos juristas romanos a fundamentação teórica para sua reflexão. Na Roma antiga,

“Sagradas ou religiosas eram as coisas que de algum modo pertenciam aos deuses. Como tais, elas eram subtraídas ao livre uso e ao comércio dos homens, não podiam ser vendidas nem dadas como fiança, nem cedidas ao usufruto ou gravadas de servidão. Sacrílego era todo ato que violasse ou ou transgredisse esta sua especial indisponibilidade, que as reservava exclusivamente aos deuses celestes (nesse caso eram denominadas propriamente 'sagradas') ou infernais (nesse caso eram simplesmente chamadas 'religiosas').” (Agamben, 2007, p. 65).

Religião é, então, aquilo que retira coisas, lugares, animais ou pessoas do contato com o vulgo e as transfere para uma dimensão à parte da existência. Não há religião sem separação, diz Agamben, e todo tipo de separação feita nesses moldes contem algo de religioso. Nesse contexto, o sacrifício é o dispositivo que realiza a transposição de um determinado ente do mundo dos homens para as regiões divinas.

Muitas pessoas acreditam que o termo religio deriva de religare (isto é, o que une o humano e o divino), mas essa relação não é verdadeira, afirma Agamben. Religio deriva, de fato, de relegere que significa precisamente “a atitude de escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as relações com os deuses, a inquieta hesitação (o 'reler') perante as formas – e as fórmulas – que se devem observar a fim de respeitar a separação entre o sagrado e o profano” (Agamben, 2007, p. 66). Se se compreende essa questão, perceber-se-á então que religião não é o que une o mundo humano e o mundo divino, mas exatamente aquilo que os separa e reforça a sua distinção. O que restitui verdadeiramente as coisas sagradas ao domínio humano e supera a separação entre essas duas esferas não é o escrúpulo e a deferência em relação ao divino, mas uma certa atitude de “negligência” para com as normas que a religião estabelece. É esta atividade que Agamben, na esteira dos juristas romanos, denomina de profanar: “Profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso particular.” (Agamben, 2007, p. 66). Uma das maneiras de se fazer esse “uso particular” do sagrado e burlar o conjunto de normas que realizam a separação entre mundo humano e divino é o jogo.

Por que o jogo?

“Brincar de roda era originalmente um rito matrimonial; jogar com bola reproduz a luta dos deuses pela posse do sol; os jogos de azar derivam de práticas oraculares; o pião e o jogo de xadrez eram instrumentos de adivinhação. Ao analisar a relação entre jogo e rito, Émile Benveniste mostrou que o jogo não só provém da esfera do sagrado, mas também, de algum modo, representa a sua inversão. A potência do ato sagrado – escreve ele – reside na conjunção do mito que narra a história com o rito que a reproduz e a põe em cena. O jogo quebra essa unidade: como ludus, ou jogo de ação, faz desaparecer o mito e conserva o rito; como jocus, ou jogo de palavras, ele cancela o rito e deixa sobreviver o mito (…) Isso significa que o jogo libera e desvia a humanidade da esfera do sagrado, mas sem a abolir simplesmente. O uso a que o sagrado é devolvido é um uso especial, que não coincide com o consumo utilitarista. Assim, a 'profanação' do jogo não tem a ver apenas com a esfera religiosa. As crianças, que brincam com qualquer bugiganga que lhes caia nas mãos, transformam em brinquedo o que pertence à esfera da economia, da guerra, do direito e das outras atividades que estamos acostumadas a considerar sérias. Um automóvel, uma arma de fogo, um contrato jurídico transformam-se improvisadamente em brinquedos.” (Agamben, 2007, p. 66-7).

Note-se, então, que, no jogo, que é uma das formas exemplares de profanação, as coisas são retiradas de suas relações costumeiras e inseridas em novas relações completamente distintas das primeiras. Um objeto com uma função específica, como uma vassoura, por exemplo, pode virar, numa brincadeira, um cavalo-de-pau. É como se uma estrutura que envolve determinadas práticas sociais e significados se quebrasse para que outra viesse à tona.

Contudo, diz Agamben, o “jogo como órgão da profanação está em decadência em todo lugar.” (2007, p. 67). Em nossos dias de “religião capitalista”, os homens e mulheres já não tomam mais o jogo como meio de restituir o sagrado novamente ao mundo humano. Não que não haja jogos – ou festas, ou danças, também concebidas originalmente como praticas que anulavam a distinção entre sagrado e humano – no contexto contemporâneo. Mas é que, naqueles que existem – os “jogos televisivos de massa”, por exemplo – o objetivo realizado é apenas a instauração de uma nova liturgia, que seculariza por um momento o que nas situações diárias é considerado como objeto de culto e reverência. Mas secularização é diferente de profanação.

“A secularização é uma forma de remoção que mantém intactas as forças, que se restringe a deslocar de um lugar a outro. Assim, a secularização política de conceitos teológicos (…) limita-se a transmutar a monarquia celeste em monarquia terrena, deixando, porém, intacto o seu poder. A profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso.”(Agamben, 2007, p. 68).

A secularização, portanto, muda de lugar um elemento no interior de uma certa estrutura de relações que permanece, por sua vez, intacta. A profanação, ao contrário, quebra essa estrutura mesma. É por isso que é a profanação, e não a secularização, que deve ser perseguida por todos os que não querem se deixar aprisionar pelo culto culpabilizador da religião capitalista.

O capitalismo, diz Agamben, generaliza e absolutiza o princípio definidor da religião. Em todos os âmbitos, pode-se verificar o processo multiforme de separação que o sistema implementa. Nesse contexto, é interessante observar como Agamben, leitor atento de Benjamin, aproxima esse fenômeno – a seu ver, essencialmente religioso – do fetichismo da mercadoria de que falava Marx. Nas palavras do filósofo italiano:

“Na sua forma extrema, a religião capitalista realiza a pura forma de separação, sem mais nada a separar. Uma profanação absoluta e sem resíduos coincide agora com uma consagração igualmente vazia e integral. E como, na mercadoria, a separação faz parte da própria forma do objeto, que se distingue em valor de uso e valor de troca e se transforma em fetiche inapreensível, assim agora tudo o que é feito, produzido e vivido – também o corpo humano, também a sexualidade, também a linguagem – acaba sendo dividido por si mesmo e deslocado para uma esfera separada que já não define nenhuma divisão substancial e na qual todo uso [no sentido de profanação] se torna duravelmente impossível. Esta esfera é o consumo." (Agamben, 2007, p. 71. Grifos nossos).

Portanto, tudo que é feito, produzido e vivido se divide e passa a dar forma a uma existência social estruturalmente dividida entre um plano humano e outro sagrado. Tudo se transforma em mercadoria, forma inerentemente cindida de relação social, e o consumo passa a ser a esfera onde a consagração das coisas se consuma. No consumo, realiza-se e reforça-se a consagração e o fetichismo de tudo aquilo que é cindido no capitalismo.

É preciso, então, fazer um outro uso das coisas. É preciso estabelecer uma forma de relacionamento social que elimine a separação instaurada pelo capitalismo, que faz as pessoas tratarem como sagradas certas produções humanas. É preciso, numa palavra, profanar. "A profanação do Improfanável é a tarefa política da geração que vem", diz Agamben.

Mas talvez não seja apenas tarefa da geração que vem. Talvez seja de todos os que hoje resistem em se deixar absorver pelos imperativos desse sistema monstruso que quer nos obrigar a considerar sagradas, divinas, eternas, imutáveis e intocáveis os processos que realizam a sua lógica.

Referências:

Agamben, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.

Löwy, Michael. O capitalismo como religião: Walter Benjamin e Max Weber. In Jinkings, Ivana e Peschanski, João Alexandre. As utopias de Michael Löwy: reflexões de um marxista insubordinado.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

O asselvajamento do patriarcado (parte II) - Mais algumas palavras sobre o pensamento de Roswitha Scholz

Roswitha Scholz quer compreender a relação entre o capitalismo e o patriarcado, entre a formação social onde predomina a produção do valor e a sujeição das mulheres realizadas pelos homens. Com esse intento, entabula uma investigação a fim de verificar as várias formas de expressão da dominação masculina nas sociedades ocidentais ao longo da história.

O patriarcado é, bem entendido, para Scholz, uma criação cultural e histórica. O patriarcado ocidental ligado à forma-valor teve sua origem, segundo a filósofa, na Grécia antiga, e persistiu durante o Império Romano. Nessas sociedades, as condições sociais vigentes fizeram surgir uma esfera pública que os homens tomaram como exclusividade sua.

“As mulheres atenienses viviam exiladas em casa, de onde deveriam sair o menos possível. A principal tarefa da mulher era conceber um filho; caso isso não ocorresse, sua vida teria sido em vão. A hipóstase da nova esfera pública, que exigia a conduta abstrata e racional, andava de mãos dadas com a degradação da sexualidade em geral. A ascensão do pensamento racional associou-se já desde o berço à exclusão das mulheres. A esfera pública, de quem também fazia parte a formação cultural, necessitava (na figura da esfera privada) de um domínio que lhe fosse contraposto, para o qual pudesse olhar do alto de sua posição. O homem precisava da mulher como 'antípoda', no qual ele projetava tudo o que não era admitido no âmbito público e nas esferas adjacentes. Assim, já na antiga Atenas, a mulher era tida e havida na conta de lasciva, eticamente inferior, irracional, intelectualmente pouco dotada etc. - atributos esses que permaneceram em vigor até à modernidade. ” (Cf. Scholz, 1992. Grifos nossos).

Na Idade Média, condições históricas diversas fizeram com que desmoronasse a antiga diferenciação entre esfera pública e privada. Scholz afirma que na sociedade medieval chegaram a subsistir resquícios “semimatriarcais” no seio do patriarcado, especialmente entre as tribos germânicas, onde as mulheres desfrutavam de uma espécie de “significação mística”. A própria figura da bruxa não era vista de antemão como negativa, pois considerava-se que, se a magia poderia resultar em algo “mau”, também poderia produzir algo “bom”. Nesse período, a mulher era juridicamente subordinada ao marido e podia até ser negociada como escrava ou cabeça de gado. Mas, podia, por outro lado, dedicar-se ao comércio e ocupar-se de um ofício fora do ambiente doméstico (Alta Idade Média). Além disso, possuía ainda certa autoridade no interior da família e tinha a chamada “última palavra” como administradora do lar.

No início da Idade Moderna, a condição das mulheres foi dificultada drasticamente. Isso se deveu ao “renascimento” do antigo mundo espiritual e às respectivas mudanças nos fundamentos da sociedade. “Embora os estágios evolutivos da Idade Média sejam bastante diversos no que respeita às mulheres, sendo muitas vezes contraditórios e avessos a uma imagem uniforme, podemos observar no início da Idade Moderna que a situação das mulheres piorou a olhos vistos, como dão prova as repressões por ela sofridas em todos os âmbitos sociais. Quanto mais se desenvolvem uma esfera pública supra-regional, uma jurisdição estatal e uma ciência institucionalizada, mais nítido se torna o papel marginal atribuído à mulher.” (Becker, apud Scholz, 1992. Grifos nossos).

As transformações desse período já deixavam entrever o capitalismo nascente e a sociedade do valor. O “feminino” sofreu aí uma campanha da aniquilação. Se na figura da bruxa, que vigorou na etapa histórica anterior, ela mantinha uma relação “simpática” com a natureza (e até fazia as vezes de natureza, em certo sentido), agora, com o predomínio da racionalidade do homem moderno, tudo isso precisava ser reconfigurado. Não que a mulher perdesse essa associação com o místico e o natural. Mas, como o próprio “natural” era concebido de forma diferente, como objeto de domínio, também a mulher precisava ser dominada. A Igreja contribuía, nesse contexto, para a sujeição do feminino. Como explica Scholz (1992),

“Não se tratava apenas do fato de os homens expropriarem brutalmente a ciência medicinal empírica das mulheres; antes, o que estava em jogo era um projeto fundamentalmente diverso de relacionamento com a natureza. A fundamentação teórica é fornecida sobretudo pelo chamado Malleus maleficarum (O martelo das bruxas), de 1487, redigido pelos padres H. Kraemer e J. Sprenger. Pais da Igreja, poetas e pensadores antigos eram citados no fito de tornar plausível a inferioridade da mulher e sua predisposição à bruxaria e ao pacto com o demônio. Imputavam-se mais uma vez às mulheres atributos como inconstância, concupiscência, raciocínio débil, extravagância, perfídia e credulidade.” (Grifos nossos)

A ética protestante nesse período também não foi nada benevolente com as mulheres. Para Scholz, a Reforma se empenhou em domesticar a mulher, fazendo com que ela levasse uma vida serena, amável, humilde, controlada pelo patriarcado e encerrada “no claustro do casamento”. (Lutero teria sido um dos principais responsáveis por esta concepção do feminino).

A era do Iluminismo, por sua vez, deu novo impulso a essa “domesticação”. Apesar do fato de que alguns dos filósofos da época defendiam o projeto de uma emancipação igualitária entre os gêneros, tais concepções não foram capazes de se impor na prática, em virtude do peso do tipo de processos sociais nos quais estavam inseridos, “a saber, a progressiva socialização pelo valor.” (Cf. Scholz, 1992. Grifos nossos). Este tipo de socialização exigia, segundo a filósofa, uma certa diferenciação dos papéis patriarcais entre os sexos, onde a mulher deveria destinar-se, “por natureza”, a ser não mais que esposa, dona-de-casa e mãe.

Note-se que, desde o principio da Idade Moderna, verifica-se a persistência e o acentuamento entre a esfera do público e do privado e a restrição da atividade da mulher a este último domínio. Scholz afirma que o período do Iluminismo em especial atribuiu a essa divisão uma nuance peculiar: a polarização de caráter dos sexos.

“Na medida em que à mulher se imputavam novas qualidades como passividade e emotividade (se bem que agora restritas ao círculo familiar burguês) e ao homem, por sua vez, a ação e a racionalidade no espaço público da incipiente sociedade industrial, ocorreu uma "polarização de caráter entre os sexos". A mulher e a família deviam converter-se em pólos de oposição ao mundo externo cada vez mais dominado pela racionalidade instrumental. Cabia à mulher não apenas ser uma dona-de-casa exemplar, mas também tornar agradável a vida do marido com sua assistência, seus cuidados e seu interesse. Essas tarefas adicionais representavam uma inovação. À diferença dos primeiros patriarcados da Antiguidade, presos à forma-valor, em que o homem ainda encontrava sua satisfação na própria esfera pública, elas são testemunha do quanto a racionalidade patriarcal e do valor fugiu ao controle do homem nesse meio tempo, do quanto ele depende agora de um 'bem-estar doméstico' propiciado pela mulher.” (Grifos nossos).

No século XIX, as cisões entre o feminino e o masculino e entre o privado e o público se aprofundam. A “vocação” materna da mulher da sociedade burguesa foi acentuado ainda mais. O sujeito feminino recebeu a tarefa precípua de manter a família em equilíbrio, realizar os afazeres domésticos e dar cabo de tudo que tivesse um cunho mais pessoal na vida conjugal, ao passo que o homem, que tinha no âmbito público seu locus “natural” de atuação realizadora, foi talhado para atividades produtivas em múltiplos campos: ciência, tecnologia, cultura, etc.

O século XIX, contudo, assistiu a proliferação de vários movimentos feministas (muitos deles burgueses) que exigiam a modificação das condições de existência das mulheres. Isso se prolongou no século XX e, especialmente em sua segunda metade, a relação entre os sexos dava a impressão de sofrer grandes mudanças, com as mulheres transcendendo o espaço doméstico/privado no qual os homens queriam lhe confinar a todo custo.

Na contemporaneidade, então, a situação das mulheres estaria melhor? Aqui, há que se ter um pouco de cuidado e atenção para ir além do aparente. Para Scholz, o que se verifica hoje é, na verdade, uma contradição muito mais aguda do que a que ocorria em épocas anteriores. Para entender como isso se dá, é preciso que nos detenhamos sobre sua teoria do valor-dissociação. De que trata tal teoria? A filósofa parte de uma compreensão crítica das concepções de Marx sobre o capital.

De acordo com o pensador alemão, o capital é um sistema que se realiza pela valorização do valor. Para tanto, mercadorias precisam ser produzidas e trocadas no mercado. É necessário, pois, que elas tenham então um valor de troca. No mercado, as trocas de mercadorias só se realizam por valores equivalentes. Ou seja, uma mercadoria só pode ser trocada por outra de mesmo valor. Mas o que é que determina o valor de uma mercadoria? Para Marx, não são é nenhuma característica física específica - capaz de satisfazer certa necessidade humana - (isto é, o seu valor de uso) que determina esse valor. O valor das mercadorias só pode ser determinado pela presença de um elemento que seja comum a todos os tipos de mercadorias. Que elemento é esse? É o trabalho. Nas palavras de Marx, “quando consideramos as mercadorias como valores, vemo-las somente sob o aspecto de trabalho social realizado, plasmado ou, se assim quiserdes, cristalizado. […] os valores relativos das mercadorias se determinam pelas correspondentes quantidades ou somas de trabalho invertidas, realizadas, plasmadas nelas. As quantidades correspondentes de mercadorias que foram produzidas no mesmo tempo de trabalho são iguais. Ou, dito de outro modo, o valor de uma mercadoria está para o valor de outra, assim como a quantidade de trabalho plasmada numa está para a quantidade de trabalho na outra” (1978, p. 74-5).

Para produzir capital, então, o capitalista vai ao mercado e compra matéria-prima, instrumentos de trabalho e força de trabalho (que só pode ser fornecida por trabalhadores dispostos a vendê-la). Essas coisas (que são todas mercadorias) possuem um certo valor determinado (valor este que é definido pela quantidade de tempo de trabalho social passado plasmado nessas mercadorias, inclusive na força de trabalho). Quando os trabalhadores colocam em movimento esses meios de produção, o produto que daí surge possui um quantum de valor maior (porque no produto foram invertidas mais horas de trabalho social) do que aquele presente nas mercadorias no início do ciclo. Este novo valor é trocado no mercado por uma soma de valor exatamente equivalente à sua. Uma parte desse valor em dinheiro obtido pela venda da mercadoria é destinada a repor as mercadorias originais (meios de produção e força de trabalho). A outra parte do valor (a mais-valia) é apropriada pelo capitalista. Como a essência do sistema do capital é produzir valores para serem trocados no mercado, subordinando para esse fim as próprias necessidades dos sujeitos históricos (diz-se que o valor de troca subsume o valor de uso), o processo de formação do valor passa a funcionar por si mesmo, fazendo das pessoas meros apêndices da produção das mercadorias. Então, é como se o próprio capital se torna-se o “sujeito” e as pessoas os “objetos” desse circuito. A este fenômeno Marx denominou de fetichismo. O processo de realização do valor é eminentemente fetichista, pois o capital adquire propriedades de sujeito (se “humaniza”) e as pessoas adquirem características de objeto (se “coisificam”).

No geral, Roswitha Scholz concorda com essa concepção de Marx, embora acredite que, na pós-modernidade, o trabalho abstrato (que é o que gera valor de troca, ao contrário do trabalho concreto, que é o que dá à luz valores de uso), esteja em “crise”. Isso não invalida, contudo, a teoria de que o capital é essencialmente um mecanismo centrado no valor. A filósofa acrescentará apenas que esse processo envolve especificação sexual. Ou seja, é um determinado patriarcado que produz as mercadorias e, nesse movimento, projeta sobre as mulheres certas características que serão dissociadas da formação dos valores. Isto já era visível no patriarcado grego (que mantinha atividades comerciais mercantis). E mais ainda do Renascimento em diante, quando os processos que envolviam a realização do capital foram novamente despontando no horizonte histórico e se consolidando a seguir. É nesse sentido, então, que “o valor é o homem, não o homem como ser biológico, mas o homem como depositário histórico da objectivação valorativa. Foram quase exclusivamente os homens que se comportaram como autores e executores da socialização pelo valor. Eles puseram em movimento, embora sem o saber, mecanismos fetichistas que começaram a levar vida própria, cada vez mais independente, por trás de suas costas (e obviamente por trás das costas das mulheres). Como nesse processo a mulher foi posta como o antípoda objectivo do 'trabalhador' abstracto - antípoda obrigado a lhe dar sustentação feminina, em posição oculta ou inferior -, a constituição valorativa do fetiche já é sexualmente assimétrica em sua própria base e assim permanecerá até cair por terra.”(Cf. Scholz, 1992. Grifos nossos).

Essa dissociação na formação do valor foi responsável por uma divisão das esferas sociais entre público e privado, onde a primeira foi tomada como o campo “natural” de atuação dos homens, e a última, das mulheres. Na segunda metade do século XX, as mulheres conseguiram transcender em parte a clausura do lar e do ambiente privado imposta a elas pelos homens. Contudo, em nossos dias, onde, na visão de Scholz, a família tradicional nuclear tende a se dissolver, as mulheres ainda aparecem numa condição que ela chama de “duplamente socializadas”, isto é, responsáveis tanto pela família como pela profissão. Isso significa que as mulheres ainda aparecem como as principais responsáveis pelas atividades “reprodutivas” (próprias ao ambiente familiar). Juntamente com isso, tem de desempenhar atividades profissionais nas quais ganham menos, recebem menos oportunidades de promoção e assim por diante.

Por essa razão, segundo a filósofa alemã, é errôneo dizer que em nossos dias o patriarcado se enfraqueceu. Para Roswitha Scholz, ele na verdade se asselvajou. Como superá-lo? Ora, se se entende que esse patriarcado observado em nossos dias está relacionado com um tipo de socialização que tem na realização do valor o seu cerne, a superação da dominação de gênero exige também que se supere o tipo de sociabilidade que se vincula à produção de mercadorias, à produção de valor. Nas suas palavras:

“A fim de enfrentar a crise de modo produtivo, há que se constituir uma 'esquerda feminista' que tenha consciência tanto subjetiva e pessoal quanto objetiva e social do mecanismo de cisão [entre os gêneros]. Um feminismo nesses moldes não se pode dar ao luxo de restringir-se às mulheres e ao movimento feminista. Tanto homens quanto mulheres têm de compreender que 'nossa' sociedade é determinada pelo patriarcado e pelo valor. [...] além disso, é urgente a luta feminista de ambos os sexos contra as formas de existência sociais, objetivadas e reificadas das cisões patriarcais produzidas pelo valor. A superação do patriarcado é ao mesmo tempo a superação da forma fetichista da mercadoria, pois esta é o fundamento da cisão patriarcal. O objectivo revolucionário seria portanto um grau mais elevado de civilização, no qual homens e mulheres sejam capazes de fazer pelas próprias mãos sua história, para além do fetichismo e de suas atribuições sexuais.” (Scholz, 1992. Grifos nossos).

O ensaio de Roswitha Scholz é, evidentemente, muito mais rico e cheio de nuances do que essa parca exposição que fizemos. Fica o convite para a leitura de seus textos, muitos dos quais estão à disposição, em português, na internet, no site do grupo intelectual do qual Roswitha faz parte, o Exit (http://obeco.planetaclix.pt/).

Referências:

MARX, Karl. Salário, preço e lucro. In MARX, Karl, Os pensadores (Seleção de textos de José Arthur Gianotti). São Paulo: Abril Cultural, 1978.

SCHOLZ, Roswitha. O valor é o homem – Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos. (1992) In http://obeco.planetaclix.pt/rst1.htm

sábado, 12 de dezembro de 2009

O asselvajamento do patriarcado - Algumas palavras sobre o pensamento de Roswitha Scholz

A filósofa alemã Roswitha Scholz deu o nome de valor-dissociação à sua teoria sobre a discriminação e relação assimétrica de gêneros. Por que essa denominação?

De maneira bem sucinta, costuma-se definir o capital, nas pegadas de Marx, como um processo de mudança do valor, ou, como nos informa Paul Singer (1987, p. 27), o capital é “valor que se valoriza”. Para que ocorra essa “valorização do valor”, a riqueza inicial deve passar por uma metamorfose. O capital-dinheiro inicial deve passar a ser capital-mercadoria (isto é, o capitalista, possuidor do dinheiro, deve adquirir por seu intermédio as seguintes mercadorias: meios de produção e força de trabalho). Os trabalhadores, então, mediante sua força de trabalho (que é uma mercadoria que eles vendem ao capitalista), colocarão em movimento os meios de produção (também mercadorias compradas pelo capitalista) e darão origem a novos produtos (novas mercadorias). Estas, por sua vez, precisarão ser realizadas, isto é, vendidas no mercado a fim de se obter novamente capital-dinheiro. Ao longo desse processo, a mercadoria que aparecerá no fim da cadeia valerá mais que as mercadorias que estavam dadas no início. Nesse contexto, em condições “normais”, também o capital-dinheiro que resultará da venda dessas mercadorias será maior que o capital-dinheiro que o capitalista possuía naquele primeiro momento. (Via de regra, o capital do fim do ciclo será, grosso modo, igual ao capital inicial mais o lucro, que é expressão da mais-valia em dinheiro). O valor acrescido no processo de produção das mercadorias é resultante do trabalho dos trabalhadores. É o trabalho, em suma, que produz esse acréscimo de valor. No fim do ciclo, portanto, o valor se transformou. (Diz-se que o valor se valorizou). Uma parte dessa nova soma é usada para pagar os salários dos trabalhadores, os gastos com a reposição dos meios de produção, os impostos, etc. e restituir assim o valor inicial. A outra parte do valor, o “mais-valor” - ou mais-valia, isto é, o valor que foi produzido pelos trabalhadores sobre o valor tido no início e que não retornou a eles -, é apropriada pelo capitalista.

Segundo Marx, esse processo é eminentemente fetichista. Ou seja, conforme tudo isso se desenrola, as relações sociais mediadas pela troca de mercadorias/dinheiro ganham “vida própria”, parcialmente se autonomizam, se invertem e se voltam contra os trocadores do mercado (sejam eles capitalistas ou trabalhadores). É como se as mercadorias, o dinheiro, o capital, se tornassem os “sujeitos” do seu próprio processo de produção e reprodução, e as pessoas, nesse movimento, se convertessem em “objetos”, apêndices do sistema. (As pessoas adquiririam a condição de “coisas”). É como se, enfim, o valor fosse um atributo das coisas mesmas, e não o produto da atividade de seres humanos no seu processo de vir-a-ser histórico. (As coisas revestir-se-iam, assim, de “propriedades humanas”). Em síntese, o que é uma construção histórica (a formação do valor) passa a se realizar “automaticamente” e vista, nesse contexto, como “natural”.

Roswitha Scholz partirá disso. Acrescentará, contudo, a tese de que, nesse processo, as propriedades que num determinado contexto são relacionadas ao feminino, - que podem consistir, por exemplo, desde a educação dos filhos, passando pelo “trabalho” doméstico, até o “amor” - são dissociadas da produção do valor. Nas suas palavras, “de acordo com a teoria da dissociação-valor, [...] tanto as atividades reprodutivas femininas quanto os sentimentos, qualidades e atitudes a elas ligados ou associados [...] – esta a tese – são dissociados do valor” (Scholz, 2004). Desse modo, o valor-dissociação seria o princípio – ou a lógica - da forma social na qual se realiza o capital.

Roswitha Scholz afirma que, no capitalismo, a formação do valor não obedece apenas a um conjunto de processos econômico e políticos, mas diz respeito sobretudo a uma relação sócio-psíquica específica: “determinadas qualidades, atitudes e sentimentos avaliados como menores (sensualidade, emocionalidade, fraqueza de caráter e de entendimento, etc.) são projectados sobre 'a mulher' e dissociados pelo sujeito masculino, que se constrói como forte, realizador, concorrencial, eficiente e por aí fora. Por isso também tem de ser levada em consideração a correspondente dimensão sócio-psicológica, bem como a dimensão cultural-simbólica, com o que o patriarcado produtor de mercadorias (grifo nosso, DC) há-de ser apreendido como modelo civilizacional, e não apenas como um sistema econômico” (Scholz, 2004 b).

Parecem claras, assim, as conseqüências políticas de uma teoria desse tipo. O capital não é somente uma conjunto de processos econômicos e políticos de produção de mercadorias. É, sobretudo, um sistema patriarcal de formação de valor. E a sua superação em direção a uma comunidade humana emancipada exige que não se perca de vista essas duas dimensões do complexo em questão: a “sexual” (sócio-psíquica) e a econômico-política.

Scholz argumenta que o valor-dissociação é um processo histórico que acompanha o processo de “trabalho abstrato” (produção de mercadorias), por um lado, e “trabalho doméstico”, por outro. Nos tempos contemporâneos, o valor-dissociação apresenta novas características, diferentes das dos primórdios do capitalismo. Segundo a filósofa, “a tradicional família nuclear está a dissolver-se e, com ela, também a clássica relação moderna entre os sexos. Sob muitos aspectos, as mulheres – pelo menos na Alemanha – já se equipararam aos homens, por exemplo no que diz respeito às habilitações escolares e acadêmicas. Contrariamente ao velho ideal da dona de casa, as mulheres ora individualizadas são consideradas 'duplamente socializadas', ou seja, responsáveis tanto pela família como pela profissão.”

É justamente essa “dupla socialização”, que exige da mulher as tarefas de responder às exigências da sua profissão e da família, sem ter por seu trabalho o mesmo reconhecimento que os homens, que configura, não o desaparecimento do patriarcado, como querem algumas teorias, mas o seu asselvajamento. Nas palavras de Scholz (2004), “ao contrário dos homens, elas continuam a ser as primeiras responsáveis pelas atividades reprodutivas dissociadas, continuam a ganhar menos que os homens, têm menos oportunidades de ascensão etc. Portanto, com a era da globalização temos de lidar não com a abolição do patriarcado, mas apenas com o seu asselvajamento (grifo nosso, DC), uma vez que as instituições trabalho e família se diluem cada vez mais na crise do sistema de produção de mercadorias, sem que outras formas de reprodução seja colocadas em seu lugar.”

Em que pese as discordâncias que temos em relação a algumas das concepções teóricas de Roswitha Scholz (p. ex.: o conceito de classes sociais e a categoria de pós-modernidade), acreditamos que suas reflexões são absolutamente pertinentes para que compreendamos a íntima relação entre a dominação econômico-política exercida pelo capital e a discriminação de gênero predominante na sociedade burguesa. Scholz é uma autora que nos adverte de maneira precisa e contundente sobre como, em nossos dias, necessitamos compreender ambas as questões de maneira igual, e colocá-las conjuntamente na ordem do dia das nossas reivindicações históricas. Por isso, o convite que ora realizamos para a leitura e debate de suas formulações críticas.


Referências:

SCHOLZ, Roswitha. A teoria da dissociação sexual e a teoria crítica de Adorno. In: http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz9.htm (2004).

SCHOLZ, Roswitha. A nova crítica social e o problema das diferenças. In http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz3.htm (2004 b).

SINGER, Paul. O capitalismo: sua evolução, sua lógica e sua dinâmica. São Paulo: Moderna, 1987.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Decifrando o fetichismo destrutivo do capital: breve reflexão a partir de Marx e Mészáros

Um dos principais temas desenvolvidos por István Mészáros no livro O desafio e o fardo do tempo histórico diz respeito à forma como o sistema do capital instaura uma temporalidade “reificada” (coisificada) sobre o metabolismo social. O metabolismo social foi um tema tratado já por Marx, em seus escritos, no século XIX, e diz respeito às relações que os homens e mulheres estabelecem entre si e com a natureza no processo de produção e reprodução de suas vidas. Conforme a história humana se processa, as formas que regem esse metabolismo se modificam. Por exemplo: nas antigas comunas rurais que existiram durante quase toda a Idade Média na Inglaterra, na França e na Alemanha (neste país eram chamadas de marks, ou “associações de marca”), onde a terra era propriedade comum e considerada como pátria pelos homens livres da época, a lógica que comandava o metabolismo social era de um tipo. No capitalismo, formação social na qual nos situamos hoje, sistema baseado na propriedade privada dos meios de produção, na exploração do trabalho, na produção de mercadorias, etc., o metabolismo se realiza a partir de uma forma completamente diferente.

O metabolismo social se dá no tempo, e as temporalidades – os ritmos das várias atividades que compõem as múltiplas instâncias das vidas dos indivíduos sociais - de cada formação social são determinadas pela lógica que, em cada momento histórico particular, comanda a relação dos homens entre si e com a natureza no processo de produção e reprodução de suas existências. Conforme modifica-se essa lógica, transformam-se também os “tempos históricos” das pessoas em suas épocas específicas. Daí que o tempo para um sujeito de uma comuna alemã do século XV seria algo bem diverso do tempo para uma pessoa que vive no capitalismo do século XXI. Neste sistema social, a produção, a circulação e distribuição dos produtos, e o seu consumo, são comandados pela lógica do capital, que imprime assim certas características sui generis sobre a temporalidade dos indivíduos. Essa temporalidade passa a ser determinada, justamente, pelos processos de produção de mercadorias, que adquirem preponderância sobre os interesses conscientes das pessoas e as converte em “apêndices” do sistema. Mészáros, na esteira de Marx, dirá que temporalidade do capital absorve e incorpora as atividades dos seres humanos e os transforma em “carcaças do tempo”. Como explica o filósofo húngaro (2007, p. 43),

“no interior da estrutura do sistema socioeconômico existente, uma multiplicidade de interconexões potencialmente dialéticas é reproduzida na forma de dualismos, dicotomias e antinomias práticas perversas, que reduzem os seres humanos à condição reificada (por meio da qual eles são trazidos a um denominador comum com as 'locomotivas' e outras máquinas e tornam-se substituíveis por elas) e à posição ignominiosa de 'carcaça do tempo'."

O capital realiza-se, então, a partir de um conjunto de processos que articula e estrutura os tempos do metabolismo social. Esse fenômeno é provocado pela própria atividade produtiva humana que se organiza hierarquicamente, se divide e se volta contra os sujeitos dessas ações. Os produtos da atividade humana se tornam como “coisas”, como entidades estranhas, apartadas, alienadas dos sujeitos da produção. O capital é, nesse contexto, ele também, o próprio trabalho passado “coisificado” (reificado).

Como é sabido, esses são aspectos de um problema que foi abordado primeiramente por Marx em O capital, o problema do fetichismo. Ao analisar as chamadas “sutilezas metafísicas e argúcias teológicas” da mercadoria, o filósofo alemão explicou que:

“a mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la como relação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho. Através dessa dissimulação, os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais, com propriedades perceptíveis e imperceptíveis aos sentidos. [...] Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar um símile, temos de recorrer à região nebulosa da crença. Aí, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas que mantêm relações entre si e com os seres humanos. É o que ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo a isto de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável da produção de mercadorias.” (Marx, s/d, p. 81)

O fetichismo é assim definido como o processo pelo qual homens e mulheres, durante a produção de suas condições de existência, desenvolvem relações sociais (por exemplo, mercadorias) que, em dado momento, ganham uma vida “independente”, relativamente autônoma, e que se voltam, em seguida, contra os sujeitos dessas ações, submetendo-os. A relação das pessoas no interior desse sistema torna-se, assim, uma relação “coisificada”, pois é como se elas, as pessoas, deixassem de controlar as coisas que produzem e passassem a ser controladas por essas coisas. Em outras palavras, é como se as coisas se tornassem “sujeitos” e os sujeitos, “coisas”. Como conseqüência, a atividade consciente se eclipsa a fim de que adquiram preponderância as relações entre as coisas (mercadorias!). Não há uma escolha livre, social e democraticamente planejada sobre a produção e o consumo global realizado. Há apenas o livre movimentar-se das coisas, das mercadorias, do dinheiro, do capital. As relações sociais de produção e troca como que se “enfeitiçam”, e tudo isso se dá com uma “naturalização” dessas relações num duplo sentido: objetivo e subjetivo.

Isso ainda é observado no século XXI, visto que continuamos vivendo dentro de um sistema de produção de mercadorias. Tal como no século XIX, quando Marx teorizou de forma pioneira sobre esses fenômenos, sofremos os efeitos do fetichismo da mercadoria, do dinheiro, do capital. Mas, se podemos constatar a continuidade desse processo, não haveria também alguma diferença entre a época do autor de O capital e a nossa? O que mudou de lá pra cá? Que se pode dizer sobre o fenômeno do fetichismo em nossos dias? Quais determinações compõem hoje a sua concretude? Acreditamos que a obra de István Mészáros nos fornece algumas pistas.

*

Segundo Mészáros, ocorreram nas últimas quatro décadas transformações importantes que redefiniram os parâmetros produtivos e distributivos do capitalismo em sua inteireza. Nesse contexto, o capital se apresenta, como dissemos, como uma forma de controle do metabolismo social que se define pela submissão dos trabalhadores aos produtos do seu trabalho. Verifica-se, de fato, a presença de um comando sobre o trabalho que se afirma enquanto um poder separado, tanto do trabalhador como do próprio processo de trabalho. Esse fenômeno exige a produção de personificações do capital e do trabalho, isto é, pessoas que, enquanto individualidades e enquanto classe, assumem, como sentido de suas existências, os valores e fins que expressam as necessidades do processo de reprodução ampliada do capital.

O capital é, então, como explica Mészáros, um processo onde “o poder que domina o trabalhador é, de forma circular, o poder do próprio trabalho social transformado”, que “funda a si próprio na ‘situação fetichizada na qual o produto é o proprietário do produtor’”. (Mészáros, apud Lessa, 1998, p. 1). Faz parte desse processo uma tendência expansionista que submete toda a existência social à sua lógica.

Mészáros explica que, depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o principal antagonismo enfrentado pelo capital foi o de, mantendo-se o controle do metabolismo social vigente até então, ampliar o consumo na mesma dimensão com que se desenvolviam as forças produtivas. A fim de resolver essa contradição, o capital lançou mão de algumas estratégias. Em primeiro lugar, procurou aumentar o consumo pela estruturação de um mercado consumidor de massas que teve no Welfare State sua necessária regulamentação política. Em segundo lugar, buscou intensificar o caráter destrutivo do sistema pela adoção da estratégia de obsolescência planejada, que acelerou a tendência à aproximação funcional entre consumo e destruição dos produtos sociais. Esse fenômeno chegou, em dado momento, ao seu ápice e conseguiu mesmo produzir a identificação entre consumo e destruição em setores econômicos da maior importância, como, por exemplo, o Complexo Industrial Militar.

Para Mészáros, contudo, tanto o Welfare State quanto a intensificação da destrutividade – representada tanto pela obsolescência planejada quanto pelo Complexo Industrial Militar - não seriam outra coisa que não a forma que assumiu, no pós-guerra, a crise estrutural do sistema do capital. O Welfare State respondeu pelo primeiro momento dessa crise, de 1945 até meados da década de 1970. Desde então, a crise estrutural enfrenta a sua segunda fase, caracterizada por um continuum de depressão, que tende a abolir mesmo os mecanismos de controle que existiram nas crises passadas. Lessa (1998, p. 2) explica que, para Mészáros, esses acontecimentos comprovam a velha concepção marxiana de que

“a tendência do capital à expansão nada mais é, ao fim e ao cabo, que a tendência à expansão de riqueza humana alienada, — e, nesse sentido, é uma tendência à expansão, intensiva e extensiva, da destrutividade das relações sociais. Ao ampliarem suas forças produtivas sob a regência do capital, os homens terminam por ampliar também sua desumanidade, o que se expressa concentradamente, hoje, na ampliação de suas capacidades de autodestruição. Não apenas pela produção de armas de destruição maciça, mas também pela destruição mais danosa para a humanidade: a de individualidades reduzidas à força de trabalho excedente.”

Assim, reprodução do capital e produção destrutiva se tornaram, hoje, para Mészáros, sinônimos. O sistema do capital de alimenta, hoje, de produzir destruição. Com base, então, no autor de Para além do capital, acreditamos ser possível afirmar que o fetichismo que se verifica nos dias atuais possui um caráter eminentemente destrutivo.

Pensamos, então, que uma grande e importante questão que se coloca, hoje, para as forças sociais que pretendem superar a ordem atualmente estabelecida, é: como resistir e superar aos processos fetichistas e destrutivos que compõem a substância do capital? Isto é, diante da atual condição em que nos encontramos, submetidos a processos sócio-metabólicos dominados por uma lógica essencialmente destrutiva, como é possível organizar-se social e politicamente para enfrentar e ir além do atual estado de coisas?

Nas pegadas de Mészáros, acreditamos que, para transcender essa situação no sentido da construção de uma comunidade humana emancipada, é preciso uma proposta que não se limite a uma atitude defensiva, mas que seja eminentemente ofensiva. Isto é, que não se restrinja às lutas que se desenvolvem meramente no âmbito da política, mas que seja fundamentalmente social. Nesse contexto, as várias possibilidades de intervenção social e cultural que temos à disposição atualmente podem e devem contribuir para esse projeto na medida em que são capazes de fomentar a generalização de um pensamento e ação críticos, que sejam negativos em relação a esta ordem de coisas dada, e que sejam afirmativos a ponto de estabelecer os princípios de construção de uma ordem radicalmente alternativa, sustentável, socialista. A generalização do pensamento e da ação críticos é um dos pontos fundamentais da teoria política de István Mészaros para a superação da ordem do capital, que comentaremos em postagens posteriores.

Referências:

LESSA, Sérgio. Beyond Capital – a atualidade do projeto socialista,1998. In http://www. sergiolessa.com/

MARX, Karl. O capital - Crítica da economia política. Livro primeiro: o processo de produção do capital. Volume 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, s/d.

MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007.

domingo, 22 de novembro de 2009

O Brasil de FHC a Lula: da hegemonia burguesa a hegemonia às avessas – Notas em torno do pensamento de Francisco de Oliveira

Na última postagem em nosso blog, afirmamos que, com as últimas décadas de globalização e neoliberalismo, os países da América Latina acabaram se tornando semelhantes a uma criaturinha curiosa, de desenvolvimento peculiar, que reúne em si um amplo conjunto de elementos desiguais: o ornitorrinco, alegoria criada por Francisco de Oliveira (2004, p. 115) para expressar a concepção de que nosso continente materializa “uma combinação esdrúxula de altas rendas, consumo ostentatório, acumulação de capital comandada pela revolução molecular-digital, pobreza extrema, lumpesinato moderno, avassalamento pelo capital financeiro, incapacidade técnico-científica.”

O Brasil expressa um caso específico dessa transformação da sociedade em “ornitorrinco”, cujo desdobramento no campo da política produziu a situação, em nossos dias, daquilo que o ilustre sociólogo pernambucano chamou de “hegemonia às avessas”. Que vem a ser isso? Acompanhemos o raciocínio de Francisco de Oliveira.

A presença de ditaduras civis e militares ao longo de tantos anos no Brasil indica, dentre outras coisas, a incapacidade das classes dominantes realizarem a hegemonia. A hegemonia é um conceito formulado por Antonio Gramsci em sua teoria ampliada do Estado. Aí, o filósofo italiano faz um diferenciação importante entre sociedade política e sociedade civil. A sociedade política diz respeito aos espaços concernentes ao Estado em sentido estrito, é o “Estado-coerção” por assim dizer, com suas leis e as instâncias que fazem valer essas leis. A sociedade civil, por sua vez, refere-se ao conjunto de “aparelhos privados de hegemonia” (grandes sindicatos, partidos políticos, parlamento eleito por sufrágio, jornais, igreja, escolas, etc.), organismos de participação política aos quais as pessoas aderem voluntariamente e que não se caracterizam pelo uso da opressão. A sociedade civil seria formada, desse modo, pelo conjunto das instituições e instrumentos que possibilitam a organização material da cultura (revistas, jornais, editoras, meios de comunicação de massa, etc.) e a elaboração e difusão das ideologias. Nesse contexto, a hegemonia pode ser entendida como o consenso, a direção intelectual e moral que se realiza a partir dessas mediações. Diante disso, o Estado, no sentido ampliado que lhe atribui Gramsci, é, justamente, a síntese entre a sociedade civil e a sociedade política – portanto, entre hegemonia e coerção. O Estado é, nas sociedades de capitalismo avançado, grosso modo, a articulação entre as instâncias que garantem ditadura e hegemonia, coerção e consenso. (Cf. COUTINHO, 1981). Ditaduras militares indicam, portanto, a incapacidade das classes dominantes exercerem o poder com base num consenso estabelecido em torno de seus interesses.

No Brasil Republicano, como explica Francisco de Oliveira, tal impossibilidade se devia a uma questão estrutural, isto é, a inexistência de classes nacionais (isto é, classes sociais unificadas e estabelecidas em âmbito nacional). Aos poucos, contudo, essa “nacionalização das classes” foi se realizando, e isso fundamentalmente por iniciativa das classes dominadas, que lutaram, se organizaram, se integraram e reivindicaram seus interesses no plano nacional, fato que obrigou a burguesia a se nacionalizar também. Com o fim da ditadura militar dos anos 1964-1985, esse processo de nacionalização estava quase completo (se completaria efetivamente no governo de Fernando Henrique Cardoso, entre 1994 e 2002).

Como explica Francisco de Oliveira (2001), depois do fim do governo Sarney e da Constituinte, as classes dominantes, em vias de completar seu processo de unificação nacional, elegeram Collor e depois FHC. Collor, já sentindo o “problema” de uma classe trabalhadora nacionalmente unificada, criticou largamente a Constituição de 1988 (que representou a expressão do plano jurídico de algumas das conquistas das classes dominadas). Isso se aprofundou no governo FHC, e ganhou contornos práticos no desmonte do Estado que esse governo veio a realizar. Como explica o sociólogo pernambucano (2001, p. 54):

“Com FHC, o susto de 07 graus na Escala Richter produziu, finalmente, uma liderança que retomou o processo que Collor não foi capaz de conduzir. (…) No plano da política, que é o plano que nos interessa, é capaz de devolver à estrutura os elementos de retorno da dominação burguesa. Estamos vendo como é que isso ocorre, com o processo das privatizações. (…) As privatizações são o reforço das condições estruturais da dominação burguesa, que tornavam virtuais a possibilidade de hegemonia no plano político. Cardoso realiza isso com uma qualidade diferente, porque ele não é um outsider, como Collor. FHC está dentro do miolo dessa articulação: veio de São Paulo, onde o PSDB, na verdade, faz as vezes do antigo partidão, o sonho de uma burguesia que é a vanguarda do processo de crescimento nacional. Dessa ironia a história, essa deusa – as mulheres que me perdoem -, toma ironicamente Fernando Henrique para realizar um sonho do velho Partido Comunista (PC), um antigo militante do PC: a grande burguesia como alavanca do processo de desenvolvimento nacional.”

Como resposta, então, à unificação das classes trabalhadoras, as classes dominantes também se unificam e, nesse movimento, FHC realiza aquilo que Collor não conseguira: desmontar o Estado e reforçar assim as condições estruturais da dominação burguesa. Estabelece-se o consenso em torno de certos interesses capitalistas e, desse modo, passam-se muitos anos sem necessidade de golpes e de ditaduras, visto que a hegemonia burguesa, agora com as classes sociais unificadas em âmbito nacional, se torna possível. Esses processos políticos, por sua vez, não ocorrem de forma isolada no mundo. São a expressão direta da globalização. O Plano Real, nesse contexto, como consolidação da dominação e hegemonia da burguesia no Brasil, é expressão do processo de globalização. O neoliberalismo em nosso país abre as portas, dese modo, para que a economia nacional seja controlada pela economia internacional. Francisco de Oliveira (2001, p. 55) explica que:

“Quando FHC implantou o Plano Real, a inflação já estava a 45% ao mês. De repente nós assistimos, como que num passe de mágica, a inflação de 45% ao mês passar a 3%. Que mágica é essa? A mágica é a do policiamento externo controlando os preços internos. A condição é a de que a importação seja aberta e que o movimento de capitais seja livre. [grifo nosso, DC] Ela não é tão livre como na Argentina e no México, até mesmo porque as forças internas conseguem barrar os Gustavos Francos da vida. Mas o movimento da globalização é um movimento que permite que o pacto burguês se articule da forma tal como está articulado, do ponto de vista econômico e do ponto de vista político. O que deu a possibilidade ao pacto dominante foi o susto de 1989. E, de outro lado, o fato de que a estabilidade adquirida rapidamente é a grande arma que o governo tem para articular o arco conservador. [grifo nosso, DC]”

Para a implementação da hegemonia (do consenso), as classes devem estar, então, “nacionalizadas”. Isso se consolida, como vimos, no governo FHC. Mas só isso não basta. É preciso que se dê, também, a estabilidade econômica. Como conseguir isso? Abrindo as portas da economia nacional para a economia estrangeira, que passa a controlá-la e a dominá-la. FHC realiza exatamente isto. O Plano Real vem, então, garantir a estabilidade, que por sua vez é a condição da hegemonia.

Francisco de Oliveira (2001, p. 55-6) assim comenta a especificidade desse processo: “Gramsci ensinou isso de uma forma extraordinária. A dominação burguesa e a hegemonia dependem 80% de consenso e 20% de força física bruta, onde a estabilidade é os 80% de consenso. A estabilidade do pacto dominante está fundamentalmente ancorada na esperança popular de que essa estabilidade – que se transformou num fetiche – se mantenha. As reformas batem como num muro. Um país tão desigual que precisa, urgentemente, de reformas! A população mais pobre transformou-se em conservadora. Por quê? É preciso fazer a pergunta! Porque a experiência de mais de 20 anos de uma inflação avassaladora produziu na subjetividade popular um terror. Uma pedagogia, estamos numa pós-graduação. Trata-se de uma espécie de pedagogia que torna qualquer reforma, na verdade, uma inimiga da grande maioria da população. Esse é o grande trunfo com que a coalizão conservadora conta, ironicamente, paradoxalmente. Mas o sistema capitalista opera assim. Quando ela consegue esse processo hegemônico, a sua grande garantidora é a credibilidade popular. É aí que se batem todos os esforços para mudar o discurso e encontrar as fissuras que possam destruir ou abrir brechas nesse aparente monolitismo neoliberal. Essa é uma tarefa democrática que temos pela frente.”

Com FHC, então, temos estabilidade econômica, classes sociais “nacionais”, domínio da economia brasileira pelo capital estrangeiro e hegemonia das classes dominantes. Com Lula, afirmará Chico de Oliveira, esse ciclo neoliberal (começado com Collor), terá seu ápice, mas com algumas modificações importantes. Acontece o que Francisco de Oliveira (2007) chamou de “hegemonia às avessas”, uma situação em que a classe dominante aceita ceder à classe dominada o discurso político, com a condição de que os fundamentos (econômicos) da dominação que ela exerce não sejam modificados.

Assim, de acordo com o sociólogo pernambucano, verifica-se uma condição contraditória na qual um grupo político, ao chegar ao poder, pratica “políticas que são o avesso do mandato de classes recebido nas urnas”. O mandato conferido ao PT para o governo nacional teria sido, na visão de Oliveira (2009), “reformista no sentido clássico”, isto é, exigia “avanços na socialização da política em termos gerais e, especificamente, alargamento dos espaços de participação nas decisões da grande massa popular, intensa redistribuição da renda num país obscenamente desigual e, por fim, uma reforma política e da política que desse fim à longa persistência do patrimonialismo.”

Os resultados verificados na prática foram o contrário daquilo que o mandato estabelecia. Por que? “O eterno argumento dos progressistas-conservadores - caso, entre outros, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso - é que faltaria, às reformas e ao reformista-mandatário, o apoio parlamentar. Sem sustentação no Congresso, o país ficaria ingovernável. Daí a necessidade de uma aliança ampla. Ou de uma coalizão acima e à margem de definições ideológicas. Ou, mais simplesmente, de um pragmatismo irrestrito.”(Cf. OLIVEIRA, 2009)

Os progressistas-conservadores (como FHC) usam, portanto, a retórica de que sua prática de combinação do atraso com o progresso é determinada pela necessidade de ter o aval do parlamento, fato que levaria o governo a ser pragmático na tentativa de tentar atender às necessidades de todos os grupos que lhe dão sustentação. Nenhum radicalismo, nessa situação, estaria autorizado.

Apesar dessa retórica, que a muitos pode parecer convincente, o problema é mais complexo. Como afirma Oliveira (2009), baseando-se em Luís Werneck Vianna e Caio Prado Jr., “não se governa o Brasil sem o concurso do atraso não apenas por razões parlamentares, mas porque a estrutura social que sustenta o sistema político é conservadora, e não avalizaria avanços programáticos mais radicais [grifo nosso, DC]. Além disso, as fundas diferenças e desigualdades regionais, bem como o modo como, desde a Colônia, fundiram-se o público e o privado (...) tornam quase obrigatório um pragmatismo permanente, que leva de roldão perspectivas mais ideológicas, ou meramente programáticas.”

A estrutura social e política brasileira é conservadora e exige o pragmatismo dos governantes (e o conseqüente escanteamento de qualquer ideologia que tenham alimentado até então – Oliveira usa outro termo gramsciano, o transformismo, para complementar a explicação desses processos. A história republicana brasileira é profícua nessas situações de transformações conservadoras, muitas vezes “pregadas por radicais e realizadas por conservadores”. Os exemplos dados por Francisco de Oliveira são a abolição da escravatura, a Proclamação da República, a Revolução de 1930 e o golpe de Estado de 1964. O ciclo posterior foi o do neo-liberalismo, que começa com Collor e agora se desdobra no governo Lula. Fernando Henrique Cardoso foi, nesse meio tempo, “o progresso mesmo, em pessoa, adornado com os títulos e as pompas da Universidade de São Paulo (...) realizou o que nem a Dama de Ferro tinha ousado: privatizou praticamente toda a extensão das empresas estatais, numa transferência de renda, de riqueza e de patrimônio que talvez somente tenha sido superada pelo regime russo depois da queda de Mikhail Gorbachev.” (Cf. OLIVEIRA, 2009)

Todas essas foram transformações conservadoras, realizadas agora num contexto histórico específico, donde ainda não logramos sair. Lula, nesse ínterim, não pode modificar muita coisa, pois seu governo foi, em larga medida, determinado pela herança deixada pelos seus antecessores. A diferença específica do governo Lula reside apenas no fato de que este descumpriu “um mandato que lhe foi conferido para reverter o desastre FHC.” É nesta situação que opera, segundo Francisco de Oliveira, a “hegemonia às avessas”.

Inserido nessa conjuntura, segue o sociólogo brasileiro, o que o governo Lula pôde produzir foi, no máximo, uma diminuição da pobreza absoluta, mas com aumento da desigualdade (Ver o artigo de Francisco de Oliveira intitulado O avesso do avesso, lançado em outubro último), reforço da “vocação agrícola” do país baseada na exportação de commodities agropecuárias, política do espetáculo levada a cabo pelo governo e expressa no fato de que “o presidente anuncia com desfaçatez avanços e descobertas que no dia seguinte são desmentidos” (Cf. OLIVEIRA, 2009), administração de políticas sociais e co-optação de movimentos sociais. O crescimento econômico é, por fim, menor do que a média da taxa histórica da economia brasileira, mas apresentado com grandiloqüência pelo governo.

Por que o governo Lula é, então, neo-liberal? Porque, situando-se “na senda aberta por Collor e alargada por Fernando Henrique, só faz aumentar a autonomia do capital, retirando às classes trabalhadoras e à política qualquer possibilidade de diminuir a desigualdade social e aumentar a participação democrática [grifo nosso, DC]”(Cf. OLIVEIRA, 2009). Lula segue, portanto, a via de FHC, com a diferença que, se se esperava do governo petista uma organização das classes populares para resistir ao movimento do neo-liberalismo, o que se verifica na prática é exatamente o contrário. Como explica Francisco de Oliveira (2009), “se FHC destruiu os músculos do Estado para implementar o projeto privatista, Lula destrói os músculos da sociedade, que já não se opõe às medidas de desregulamentação.”

O resultado absolutamente perverso que esse quadro produz é o retrocesso da classe trabalhadora, que cada vez mais se precariza “em velocidade espantosa” e a transformação das classes dominantes em “gangues no sentido preciso do termo”. Assim, o quadro atual do nosso tempo histórico é resumido pelo sociólogo brasileiro com as seguintes palavras: “A novidade do capitalismo globalitário é que ele se tornou um campo aberto de bandidagem - que o diga Bernard Madoff, o grande líder da bolsa Nasdaq durante anos. Nas condições de um país periférico, a competição global obriga a uma intensa aceleração, que não permite regras de competição que Weber gostaria de louvar. O velho Marx dizia que o sistema não é um sistema de roubo, mas de exploração. Na fase atual, Marx deveria reexaminar seu ditame e dizer: de exploração e roubo. O capitalismo globalitário avassala todas as instituições, rompe todos os limites, dispensa a democracia.”(Cf. OLIVEIRA, 2009)

Penso que a palavra que melhor pode resumir essa conjuntura na qual nos situamos é de barbárie. É contra essa realidade que deve se opor a classe trabalhadora.


Referências:

COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci. L&PM, Porto Alegre, 1981 (Coleção: Fontes do Pensamento Político).

OLIVEIRA, Francisco de. A nova hegemonia da burguesia no Brasil dos anos 90 e os desafios de uma alternativa democrática. in FRIGOTTO, Gaudêncio e CIAVATTA, Maria (orgs.). Teoria e Educação no labirinto do capital. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. (p. 47-56)

OLIVEIRA, Francisco de. Há Vias Abertas para a América Latina? in BORÓN, Atílio (org.) - 1ª ed. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2004, p. 112.

OLIVEIRA, Francisco de. Hegemonia às avessas. Revista Piauí, janeiro de 2007.

OLIVEIRA, Francisco de. O avesso do avesso. Revista Piauí, outubro de 2009.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A América Latina pode bem ser um ornitorrinco, mas pode bem ser transformada – Notas sobre a conjuntura

A América Latina sofre, há décadas, um fardo que parece às vezes mais pesado que suas forças, o fardo do neoliberalismo, a forma que o capitalismo assumiu em nossa região periférica. Na retórica das classes dominantes, tais transformações prometiam realizar um desenvolvimento justo e constante. Em contrapartida, o que se verifica é que somos hoje o continente de maior desigualdade no mundo, com inúmeros e complexos problemas de ordem social, política e econômica.

Nesse contexto, cada país do continente apresenta particularidades importantes. Francisco de Oliveira (2004, p. 112) dá uma valorosa contribuição para nosso esclarecimento a esse respeito, ao explicar por estas palavras a conjuntura latino-americana desta primeira década de século:

“Sob o diagnóstico geral, escondem-se especificidades: desde a fulminante transformação do México no maior exportador isolado para os EUA nos quadros do NAFTA – o que, entretanto, não o livrou do défault da dívida externa do começo dos 1990 e não vem resolvendo a questão da desigualdade mexicana – até o estrondoso fracasso e incrível retrocesso da Argentina, uma das cinco economias mais importantes do mundo no início do século XX. O Chile conhece o desenvolvimento menos errático desde a ditadura Pinochet, mas seus trabalhadores já experimentam as vinhas amargas – logo no belo país vinícola – da previdência privatizada, agora que é chegada a hora de pagar a conta. De qualquer forma, o isolacionismo chileno em relação à América Latina coloca-o na dependência quase exclusiva do mercado norte-americano, e de fato o Chile regrediu em termos da divisão social do trabalho: voltou à condição de uma economia primário-exportadora, ancorada no bom e velho cobre estatal. As economias uruguaia e paraguaia sofrem os efeitos do retrocesso argentino e do neoliberalismo brasileiro, e o Mercosul não tem sido suficiente, no estado em que está, para devolver-lhes dinamismo. A Colômbia transformou-se numa tragédia, cujas características todos conhecemos, e está em vias de transformar-se num não-Estado e numa não-nação. Equador, Peru e Bolívia têm experimentado espasmos tão violentos que mesmo a ciência social mais cautelosa não se arrisca a nenhuma previsão: pode-se passar do Sendero Luminoso a Fujimori, e deste a Toledo, das experimentações ao estilo de Thatcher avant la lettre a Evo Morales, e da dolarização a fórceps ao movimento indígena anti-capitalista quase sem mediações. A Venezuela sofreu a mais desenfreada corrupção sob o partido mais social-democrata que o continente conheceu, e vem experimentando cotidianamente todas as tentativas de desestabilização de sua revolução bolivariana, passando pelo escandaloso assalto à presidência da República liderado diretamente pelo presidente da associação de empresários.”

Tal quadro é o resultado de um processo levado a cabo pelo sistema do capital desde suas transformações no início da década de 1970 e que tem como um dos principais sintomas a declaração de guerra aberta contra toda e qualquer possibilidade de ação política que vá contra suas exigências. Como o capital faz isso? Provocando a erosão das instituições democráticas e republicanas. O neoliberalismo, conjunto de práticas político-econômicas realizadas com o objetivo de exacerbar a dimensão privada da vida social sob o capitalismo - e, conseqüentemente, enfraquecer a dimensão pública - representa, por isso mesmo, um enfraquecimento da política. A debilitação da esfera pública na América Latina é explicada de forma clara e concisa por Chomsky (2004, p. 24) nestas palavras:

“As privatizações reduzem a arena pública por definição, transferindo decisões da arena pública para as mãos de tiranias privadas que não prestam contas a ninguém. As sociedades anônimas não são outra coisa além disso. E isso, por definição, limita a democracia. Agora estão negociando as privatizações dos serviços. Se isso chegar a se concretizar, a esfera pública seria reduzida a virtualmente nada. Reduzi-la-iam de maneira tão drástica que a democracia formal poderia ser tolerável. Na verdade, foi introduzida na América Latina sem maiores preocupações quanto aos efeitos que podia ter: A extensão da democracia formal na América Latina em anos recentes fez-se acompanhar por uma crescente falta de confiança neste regime (…). Anos atrás, a extensão da democracia formal coincidiu com a aplicação das políticas neoliberais, que desta maneira minaram o funcionamento da democracia. De fato, são políticas elaboradas com esse propósito [grifo nossos].”

Esse quadro foi tomando forma, gradativamente, há algumas décadas atrás. Com o fim das ditaduras militares na América Latina, a liberdade que surgia parecia concorrer para a revitalização da atuação política. A década de 1980 viu surgir movimentos sociais, sindicalismos, partidos de massa com centralidade da classe trabalhadora e até uma reidentificação com o ideal bolivariano de unidade entre as nações, fenômenos que, em virtude da ampla participação popular de que eram compostos, prometiam consolidar a democracia em nosso continente.

Mas a herança das ditaduras militares, nesse contexto, foi deveras pesada. As modificações, por elas perpetradas, na estrutura social, política e econômica dos países latino-americanos, fizeram com que a globalização acabasse por subordinar a democratização. Como explica Francisco de Oliveira (2004, p. 113):

“Talvez na verdade tivéssemos subestimado o 'trabalho sujo' das ditaduras, os estragos produzidos na estrutura social, no aumento das desigualdades, na capacidade estatal de regulação dos conflitos, na identidade entre projeto nacional para as classes dominantes e projeto nacional para as classes dominadas. Uma espécie de assincronia, para dizer o mínimo, tinha-se produzido: as burguesias renunciavam a um projeto nacional, e o espaço da política era, assim, transformado em um confinamento para as classes dominadas. A onda de democratização foi engolfada pela globalização, com todas as suas conseqüências: as ditaduras haviam inserido definitivamente as economias da América Latina na financeirização do capital, o que esterilizam em grau extremado o poder do Estado nessa nova e original democratização.”

As forças políticas que assumiram o poder estatal após o desenlace das ditaduras acabaram por se constituir em epílogos desses regimes. Tudo o que fizeram foi apressar o passo para completar o trabalho de integração das economias nacionais latino-americanas dentro da nova estrutura do capital globalizado. As proteções alfandegárias foram derrubadas, privatizaram-se as empresas estatais, os mercados de trabalho sofreram desregulamentação, o precário Estado de Bem-Estar foi desmontado. Um dos resultados mais graves desses processos foi chamado por Francisco de Oliveira (2004, p. 114) de “estilhaçamento das relações de classe”, fenômeno que se expressou nos altos níveis de desemprego, de informalidade e na formação de um numeroso lumpesinato em nosso continente.

Além disso, a desestruturação das relações de classe gerou em muitos países a implosão dos vínculos existentes entre classes sociais e partidos políticos, fazendo assim com que a política institucional passasse a girar em falso. Desse modo, a globalização, com a financeirização, com a subordinação das economias nacionais aos processos internacionais de acumulação de capital, com o enfraquecimento do Estado em sua capacidade de impulsionar o desenvolvimento econômico, com o aumento das desigualdades e com a lumpenização que produziu, acabou tornando as instituições democráticas – a política institucional – muito débeis. O resultado é descrito por Francisco de Oliveira (2004, p. 115) com estas palavras: “Os bancos centrais são as verdadeiras autoridades nacionais, e eles não são autoridades democráticas. Na definição schmittiana, soberano é quem decide o Estado de Exceção [grifo nosso]. Os Estados nacionais transformam-se em Estado de Exceção: todas as políticas públicas são políticas de exceção. E quem decide entre nós?”

A globalização deu origem, então, a uma situação onde a democracia “se anula”, especialmente no que tange a determinação da economia por parte das classes trabalhadoras. Os grupos chamados de centro-esquerda que chegaram ao poder nos últimos anos acabaram prisioneiros das heranças recebidas de seus antecessores: tornaram-se “os executores da exceção [grifo nosso]: dos superávits combinados com o Fundo Monetário internacional (FMI), da pressa para implementar o tratado de livre comércio (ALCA), da submissão à Organização Mundial do Comércio (OMC), de nossa conversão ao livre-câmbio e ao livre comércio.” (OLIVEIRA, 2004, p. 115).

Desse modo, com o enfraquecimento do Estado em sua capacidade de fomentar o desenvolvimento, restou apenas a possibilidade de administração de políticas de funcionalização da pobreza, políticas que podem ser consideradas, como denominou o sociólogo pernambucano, “de exceção”.

Do ponto de vista social e econômico, observa-se então a momentânea perda da capacidade das forças do trabalho de proporem políticas e afiançá-las, ou de vetar reformas contra seus interesses. Os trabalhadores tornaram-se objetos de políticas compensatórias cujo objetivo precípuo é o de funcionalizar a pobreza. O resultado maior é que, como explica Oliveira (2003, p. 115), as sociedades da América Latina se tornam semelhantes aos ornitorrincos, “uma combinação esdrúxula de altas rendas, consumo ostentatório, acumulação de capital comandada pela revolução molecular-digital, pobreza extrema, lumpesinato moderno, avassalamento pelo capital financeiro, incapacidade técnico-científica.”

*

Mas as classes exploradas latino-americanas não assistiram de braços cruzados a realização desses processos. Houve, de fato, muitos enfrentamentos por parte daqueles que se negavam em sucumbir passivamente diante das engrenagens da globalização. No campo e na cidade, em vários países, as pessoas se organizaram para protestar, combater e reivindicar seus direitos, dando assim seguimento à tradição de luta que permeia a história de nosso continente. Se as últimas décadas verificaram o domínio do neoliberalismo na América Latina, por outro lado também se viram encarniçados combates por parte de todos os grupos sociais que se percebiam explorados pelo capital.

Alguns deles, por exemplo: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), surgido em 1984, no Brasil, resultado de longos anos de trabalho de conscientização e de promoção da auto-organização camponesa pela Comissão Pastoral da Igreja, e que reúne centenas de milhares de militantes, constituindo-se, sem dúvida, no movimento social mais importante e combativo no Brasil na atualidade; O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), surgido no México, na década de 1990, que organizou Encontros Intercontinentais - “Intergalácticos” na linguagem irônica do subcomandante Marcos – que reuniram milhares de sindicalistas, militantes camponeses, indígenas, intelectuais, estudantes e ativistas das diferentes correntes de esquerda, provenientes de quarenta países do mundo inteiro – inclusive muitos da Europa e dos Estados Unidos –, todos com o objetivo de lutar pela humanidade e contra o neoliberalismo; a ascensão de movimentos indígenas no Equador, no Chile, na Bolívia, no Peru, na Guatemala, etc.; os piqueteros na Argentina, a ascensão ao governo de Hugo Chávez, na Venezuela, que retomou a bandeira da unidade antiimperialista – “bolivariana” – dos povos latino-americanos e a perspectiva socialista; a eleição de Evo Morales, na Bolívia, em 2005, dirigente do sindicato dos cocaleros e fundador do Movimento para o Socialismo (MAS); e, sobretudo o movimento altermundista, que é hoje, como afirmam Löwy e Besancenot (2009, p. 118):

“[...] sem dúvida o mais importante fenômeno de resistência anti-sistêmico do início do século XXI. Essa vasta nebulosa, 'movimento dos movimentos', toma forma visível por ocasião dos Fóruns Sociais – regionais ou mundiais – e das grandes manifestações de protesto contra a OMC, o G-8 ou a guerra imperialista no Iraque. Ampla rede descentralizada, ela é múltipla, diversa e heterogênea, associando sindicatos operários e movimentos camponeses, ONGs e organizações indígenas, movimentos de mulheres e associações ecológicas, intelectuais e jovens ativistas. Longe de ser uma fraqueza, sua pluralidade é uma das fontes da força, crescente e em expansão, do movimento.”

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É juntamente com estes que nos situamos. Somente do ponto de vista destes é que se torna visível a necessidade de elaborar uma teoria social, política e econômica que vá além do capital. Acreditamos que, se por um lado a conjuntura é difícil, por outro abre novas possibilidades para a luta. Se sentimos empatia e apostamos nos explorados pelo sistema do capital e na sua capacidade de criar um modo de existência qualitativamente novo, uma das tarefas que se nos apresenta imprescindível na atual conjuntura é a generalização do pensamento crítico que poderá, quiçá, orientar ações igualmente críticas. Por isto, as reflexões desses autores que ora compartilhamos com vocês.

Referências:

CHOMSKY, Noam. Os dilemas da dominação. in BORÓN, Atílio (org.) Nova hegemonia mundial. Alternativas de mudanças e movimentos sociais. 1ª ed. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2004.

LÖWY, Michael e BESANCENOT, Olivier. Che Guevara: uma chama que continua ardendo. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

OLIVEIRA, Francisco de. Há Vias Abertas para a América Latina? in BORÓN, Atílio (org.) Nova hegemonia mundial. Alternativas de mudanças e movimentos sociais. 1ª ed. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2004, p. 112.

domingo, 15 de novembro de 2009

A ditadura: essa nossa oculta (e desconhecida) companhia de todos os dias – Breve reflexão em torno do pensamento de Giorgio Agamben

Em 13 de novembro de 2001, o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, promulgou uma ordem militar que autorizava a “indefinite detention” e o processo perante as “military commisions” dos não-cidadãos suspeitos de atividades terroristas. Alguns dias antes, em 26 de outubro de 2001, o Senado norte-americano havia promulgado o USA Patriot Act, que permitia ao secretário de Justiça desse país manter preso o estrangeiro suspeito de atividades capazes de colocar em perigo a segurança nacional dos Estados Unidos.

A novidade desta ordem estava em “anular radicalmente todo estatuto jurídico do indivíduo, produzindo, dessa forma, um ser juridicamente inominável e inclassificável.” (cf. Agamben, 2004, 14). Isso significa, por exemplo, que um talibã capturado no Afeganistão não pode gozar do estatuto de prisioneiro de guerra, conforme assegura a Convenção de Genebra, assim como também não pode receber o status de acusado segundo as leis norte-americanas. Acaba por converter-se, portanto, em objeto de uma pura dominação de fato, uma detenção indeterminada em relação ao tempo, uma situação totalmente fora da lei e fora do controle judiciário. Semelhante aos judeus nos campos de concentração nazistas, que perdiam, junto com a cidadania, toda a identidade jurídica, apesar de guardarem a identidade de judeus. Esse é exemplo mais claro para ilustrar a realidade do estado de exceção, o paradigma de governo dominante no contexto da política contemporânea, segundo Giorgio Agamben.

O estado de exceção pode ser definido como a suspensão da ordem jurídica levada a cabo em situações “extremas”, com o objetivo de “salvar” essa mesma ordem jurídica. Em outras palavras, é a “suspensão legal” da lei. Nessas condições, a ditadura se instala amparada pela lei e o poder passa a ser exercido de forma arbitrária. O estado de exceção constitui o paradigma de funcionamento das estruturas jurídicas que procuram normatizar o campo da política e da ação social. Os Estados que fazem uso desse mecanismo tornam-se, então, além de garantidores e administradores da ordem, produtores e gestores da desordem. E, se considerarmos que os Estados têm, nos últimos dois séculos, lançado mão cada vez mais freqüentemente desse dispositivo, não poderíamos dizer, com Agamben, que o estado de exceção seria, de fato, a regra?

Esse dispositivo, o do estado de exceção, tem uma longa história. Foi criado pela Assembléia Constituinte Francesa, sob o nome de estado de sítio, em 1791. Inicialmente, era aplicado apenas à praças fortes e portos militares. Em 1811, Napoleão estabeleceu que o estado de sítio era passível de ser declarado pelo imperador a despeito da situação efetiva de uma cidade estar ameaçada militarmente. A partir de então, observa-se um progressivo desenvolvimento de dispositivos jurídicos semelhantes na Alemanha, Suíça, Itália, Reino Unido e EUA, que serão aplicados, ao longo dos séculos XIX e XX, em momentos variados de necessidade política ou econômica. Verifica-se, então, um processo de generalização dos dispositivos governamentais de exceção. Esse processo teria sido, segundo Agamben, o “motor invisível” das democracias ocidentais. A contradição está em que, suspendendo a norma sem necessariamente abolir a norma, o estado de exceção, que pretende, em última instância, salvaguardar a ordem democrática, torna a ordem democrática, de fato, impossível.

Uma pergunta que cabe, nesse contexto, é a seguinte: como o estado de exceção afeta a nós, latino-americanos, na contemporaneidade?

Referências:

1. AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

2. SAFATLE, Vladimir. A política da profanação (entrevista com Giorgio Agamben). Jornal Folha de São Paulo, 18/09/05. http://www.geocities.com/vladimirsafatle/vladi081.htm

domingo, 8 de novembro de 2009

Serão revolucionários os favelados?

O mundo está se favelizando. Esta é a conclusão que se chega ao se ler o artigo do sociólogo norte-americano Mike Davis, publicado há algum tempo atrás na revista New Left Review. De acordo com Davis, o que se observa hoje é que, como resultado dos processos econômicos e políticos do capitalismo global, a maioria das cidades do hemisfério sul tornou-se semelhante à Dublin vitoriana, ou seja, um amontoado de cortiços. As análises de Davis estão baseadas em um relatório publicado em 2003 pelo Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas (UN-Habitat), intitulado The challenge of slums [O desafio das favelas] (daqui em diante apenas Slums), que revela pela primeira vez uma imagem verdadeiramente global da pobreza urbana.

Segundo Davis, o relatório é interessante não só pela abrangência e pela competência técnica com que foi elaborado. Ele é incomum também pela honestidade intelectual. “Um dos pesquisadores contou-me que ‘os tipos de Consenso de Washington (Banco Mundial, FMI, etc.) sempre insistiram em definir os problemas das favelas globais não como resultado da globalização e da desigualdade, mas como resultado do mau governo’ (grifos de Davis). No entanto, o novo relatório rompe a seriedade e a autocensura tradicionais da ONU para condenar abertamente o neoliberalismo, em especial os programas de ajuste estrutural do FMI” (cf. Davis, 2006, 107). O relatório mostra que o resultado dessas ações políticas e econômicas nos últimos vinte anos aumentaram a pobreza urbana e as favelas, e elevaram, por conseguinte, a desigualdade econômica e social.

As condições de vida nas favelas são: excesso de população, habitações pobres ou informais, acesso inadequado à água potável e ao esgoto sanitário e insegurança da posse da terra. O relatório Slums estima que, em 2001, havia 921 milhões de moradores de favelas, no mundo. Eles constituem um terço da população urbana mundial. Pelo menos metade dessa população tem menos de vinte anos. As previsões mais sombrias são de que, em algumas décadas, os habitantes de favelas passem a constituir metade da população urbana mundial.

Como afirma Davis, “os maiores percentuais de moradores de moradores de favelas do mundo são da Etiópia (espantosos 99,4% da população urbana), Tchade (também 99,4%), Afeganistão (98,5%) e Nepal (92%)” (Davis, 2006, 199). Em cidades como Déhli, o absurdo se manifesta em situações como a existência de “favelas dentro de favelas”. E, no Cairo, as pessoas recém-chegadas à cidade podem se acomodar em confortáveis espaços nos telhados, criando, assim, favelas no ar.

Há cerca de 250 mil favelas na Terra. Nas cinco maiores cidades do sul da Ásia (Karachi, Mumbai, Délhi, Kolkata e Daca) existem aproximadamente 20 milhões de pessoas distribuídas nas cerca de 15 mil favelas. Na África, a situação é semelhante, só que pior. No estado de Lagos, na Nigéria, aproximadamente dois terços dos 3577 km² de superfície do estado estão cobertos de barracos e favelas. O estado de Lagos é constituído de um corredor de 70 milhões de favelados que se estende por entre as cidades de Abidjan e Ibadan, provavelmente a maior área de solo coberta de pobreza urbana em nosso planeta. Estimados 57% dos africanos urbanos não tem acesso a saneamento básico. Em Nairóbi, no Quênia, os pobres recorrem freqüentemente a “banheiros voadores” (defecar num saco plástico).

Não bastasse isso, por toda parte as pessoas são obrigadas a habitar terrenos perigosos e inapropriados para a construção – encostas, margens de rios, proximidades de refinarias, indústrias químicas, depósitos de lixo tóxico e nas margens de ferrovias e auto-estradas. Como conseqüência, “a pobreza ‘construiu’ um problema de desastre urbano de freqüência e alcance sem precedentes, como exemplificam as inundações crônicas em Manila, Daca, e Rio de Janeiro; as explosões de dutos na Cidade do México e em Cubatão (no Brasil); a catástrofe de Bhopal, na Índia; a explosão de uma fábrica de munição em Lagos e os deslizamentos fatais em Caracas, La Paz e Tegucicalpa. Além disso, as comunidades de pobres urbanos sem direito a voto são vulneráveis às explosões súbitas de violência estatal, como na famosa destruição, em 1990, da favela praiana de Maroko, em Lagos (‘uma agressão à paisagem para a comunidade vizinha de Victoria Island, fortaleza dos ricos’), ou a demolição, em 1995, sob clima congelante, da grande cidade de ocupantes ilegais de Zhejiangcun, nos arredores de Beijing” (Cf. Davis, idem, 202). Miséria, então, rima com favela, que, por sua vez, rima com tragédia.

A população de favelados cresce, portanto, vertiginosamente ao redor do mundo. Sua existência revela o predomínio de um aspecto peculiar do trabalho no contexto da contemporaneidade: o trabalho informal. As cidades, em verdade, se converteram, ao longo do século XX, em depósitos de lixo que concentram o “excedente de população” que tem que sobreviver mediante trabalho realizado nos mais diferentes setores da informalidade, sem especialização, sem amparo de legislação e com baixíssimos salários. E como garante o relatório Slums, “O crescimento d[este] setor informal é [...] resultado direto da liberalização” (apud Davis, idem, 209).

O número de trabalhadores informais no mundo atinge cifras espantosas: um bilhão de pessoas (número que se sobrepõe, mas não é idêntico ao dos moradores das favelas). O setor informal equivale a dois terços da população economicamente ativa do mundo em desenvolvimento. 57% da força de trabalho latino-americana está nesse setor. Na Indonésia, um dos países mais populosos do mundo, essa cifra chega a 65%. Na África, um pouco menos: 60%. E na Ásia, “apenas” 40%. Em algumas regiões do planeta, como nas cidades sub-saarianas, o “emprego formal” praticamente deixou de existir. Slums estima, ainda, que, na África, nos próximos dez anos, 90% das vagas urbanas de trabalho virão do setor informal. E a tendência macro-econômica real do trabalho informal é a reprodução da pobreza absoluta.

Pode-se esperar dessas pessoas miseráveis, marginalizadas e esquecidas algum movimento radical e transformação em relação à ordem política, social e econômica dominante? Que pensam elas? Em que crêem? Quais as aspirações, expectativas e sonhos que alimentam? Seriam as favelas vulcões em erupção, prestes a derramar sua lava incandescente por sobre a sociedade burguesa do século XXI? Ou manterão seus habitantes um comportamento mais parecido com os processos de competição darwiniana pela vida, lutando e devorando-se uns ao outros, sobrevivendo dos restos e resíduos que conquistam? Enfim, que se pode esperar desses sujeitos e quais projetos cultivam?

Davis não hesita em dizer que, pelo menos por enquanto, “Marx cedeu o palco histórico a Maomé e ao Espírito Santo” (Davis, idem, 214), ou seja, o materialismo revolucionário não é a visão de mundo que tem ganhado espaço entre os trabalhadores informais da sociedade das favelas. O que prolifera, hoje, é uma concepção religiosa do mundo, dividida entre o islamismo populista e o cristianismo pentecostal (cf. Davis, idem, ibidem). Seria este fato motivo para desesperar de transformações mais fundamentais da estrutura social, política e econômica em que vivemos?

É preciso esclarecer que estas visões de mundo têm uma grande diferença: enquanto o islamismo populista enfatiza a continuidade da civilização e prega a solidariedade de fé entre as classes – assumindo, assim, uma postura complacente com o capitalismo globalizado –, o pentecostalismo mantém uma identidade fundamentalmente exílica. Como nos assegura o sociólogo norte-americano, “sua premissa básica é a de que o mundo urbano é corrupto, injusto e impossível de reformar” (Davis, idem, 218). Em outras palavras, a postura implícita dessas pessoas em relação ao mundo profano é de negatividade.

Que se pode esperar, então, dessas comunidades em que prepondera uma religiosidade capaz de fazer o mundo parecer como um lugar hostil e que se deve recusar? Acreditamos que é perfeitamente cabível considerar essas comunidades como uma resistência efetiva contra o sistema econômico, social e político vigente. Em verdade, como afirmou o estudioso Jean Comaroff (citado por Davis, idem, ibidem), elas constituem mesmo uma resistência “mais radical” do que a atividade política sindical formal.

Portanto, se é assim, não poderíamos apostar nelas, nas comunidades de favelados, como um terreno fértil para concepções que, em breve, poderão vir a exigir transformações efetivas e profundas da sociedade de capitalismo globalizado que hoje se estabelece?

Esta parece ser a aposta do filósofo esloveno Slavoj Zizek, em um recente livro: Às portas da revolução, escritos de Lênin de 1917. No prefácio da obra, comentando o crescimento explosivo das favelas ao redor do mundo e considerando este fato como o possível “evento geopolítico crucial do nosso tempo” (Zizek, 2005, 20), visto que, nas favelas, as pessoas estão à margem do controle do Estado - ainda que vivam incorporadas na economia global de várias formas – Zizek se pergunta: “não seriam eles [os bairros e favelas miseráveis das megalópoles da atualidade] os primeiros ‘territórios libertados’, as células de futuras sociedades auto-organizadas?” (idem, ibidem, 17). Ou seja, não seriam esses espaços protótipos de uma comunidade alternativa, que rejeita completamente o espaço do Estado em vigor? Não seria esse, agora, o novo eixo da luta de classes? Mais ainda: “seria a ‘classe simbólica’ [isto é, a classe dominante] inerentemente dividida, a ponto de podermos fazer uma aposta emancipatória na coalizão entre os moradores dos bairros miseráveis e a parte ‘progressista’ da classe simbólica?” (idem, ibidem, 21).

Para Zizek, as favelas do mundo contemporâneo, com seus trabalhadores informais, religiões pentecostais, mendigos, vagabundos e párias de todo tipo, são semelhantes a Canudos, comunidade alternativa existente no sertão brasileiro durante alguns anos da última década do século XIX. “Canudos, liderado por um profeta apocalíptico, era um espaço utópico sem dinheiro, propriedade, impostos ou casamento [...] Tudo deve ser defendido neste caso, até mesmo o ‘fanatismo’ religioso. É como se, nesse tipo de comunidade, o outro lado benjaminiano do progresso histórico, o dos derrotados, adquirisse seu próprio espaço. A utopia existiu ali por um breve período [...]. Até agora, tais comunidades surgiram de tempos em tempos como um fenômeno passageiro, pontos de eternidade interrompendo o fluxo do progresso temporal [...]” (idem, ibid. 17).

Zizek considera que os ecos de Canudos são perfeitamente identificáveis nas favelas contemporâneas. Caberiam aqui, por conseguinte, aquelas palavras de Walter Benjamin, apresentadas na segunda tese sobre o Conceito de História, que parecem nos questionar a nós, os vivos, se, por acaso, “não nos afaga levemente um sopro de ar que envolveu os que nos precederam? Não ressoa nas vozes a que damos ouvido um eco das que estão, agora, caladas?”. Não guardaria, então, o nosso tempo estilhaços de um passado que importa, agora, interpretar? Quem eram os insurgentes do passado? Como viviam aqueles que, em outros tempos, ao perceber que a exceção se tornara a regra, tentavam eles mesmos criar um verdadeiro estado de exceção?

Nesse sentido, é interessante observar a explicação de Hobsbawm sobre a situação de urbanização, pobreza e segregação no contexto imediatamente anterior às revoluções de 1848, na Europa: “Em nosso período [primeiras décadas do século XIX], o desenvolvimento urbano foi um gigantesco processo de segregação de classes, que empurrava os novos trabalhadores pobres para as grandes concentrações de miséria alijadas dos centros de governo e dos negócios, e das novas áreas residenciais da burguesia. A divisão das grandes cidades européias, de caráter quase universal, em zonas ricas localizadas a oeste e zonas pobres localizadas a leste se desenvolveu neste período. E que instituições sociais, exceto a taverna e talvez a capela, foram criadas nestas novas aglomerações de trabalhadores, a não ser pela própria iniciativa dos trabalhadores?” (Hobsbawn, 2002, p. 283-4). E que fizeram estes segregados, derrotados, oprimidos miseráveis? “A alternativa da fuga ou da derrota era a rebelião. A situação dos trabalhadores pobres, e especialmente do proletariado industrial que formava seu núcleo, era tal que a rebelião era não somente possível mas virtualmente compulsória. Nada foi mais inevitável na primeira metade do século XIX do que o aparecimento dos movimentos trabalhista e socialista, assim como a intranqüilidade revolucionária das massas. A revolução de 1848 foi sua conseqüência direta.” (Hobsbawm, idem, p. 285).

A rebelião, a revolta, a insurgência, a revolução, aparecerão, então, como uma alternativa aos que não quiserem ser passivamente esmagados pelo sistema. Será impossível de imaginar revoluções futuras num mundo onde um bilhão de pessoas vive com cerca de um dólar por dia? Não há, porventura, uma correspondência entre a nossa situação de miséria e marginalidade e a dos que viveram antes de nós? Não somos também oprimidos como os de outrora? Não resistimos, também, ativamente? Não alimentamos ora velada, ora abertamente, um sonho de libertação? Não estamos submetidos a uma situação de exceção que se converteu em regra? Não estamos tentando, ainda que de forma e subterrânea e imperceptível ao vulgo, instaurar aquilo que Benjamin chamou de "verdadeiro estado de exceção"?

Se assim é, um encontro secreto está marcado entre as gerações passadas e a nossa. Se assim é, torna-se necessário que agora essa relação entre o passado e o presente se torne visível - ainda que esta seja uma visibilidade fugaz, tal qual a de um raio que reluz efêmero numa noite de tempestade. Essa luz momentânea nos permitirá a organização das energias críticas e uma melhor locomoção dentro dessa tempestade ininterrupta que é a história. Temos que ter bem presente essa realidade, pois, ao que parece, o futuro passa por aí.

Referências:

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. in Löwy, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio - uma leitura sobre as teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo, Boitempo, 2005.

DAVIS, Mike. Planeta de favelas. in SADER, Emir (org.). Contragolpes. Seleção de artigos da New Left Review. São Paulo: Boitempo, 2006.

HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções. 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, 16ª ed.

LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio - uma leitura sobre as teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo, Boitempo, 2005.

ZIZEK, Slavoj. Às portas da revolução. Escritos de Lênin de 1917. São Paulo: Boitempo, 2005